Brega com Dignidade
Ana Rieper que estreou com Na Veia do Rio (2002), tem seu segundo longa-metragem voltado para
a música brega, na qual ela se diz uma apaixonada. Questiona seus entrevistados
com linearidade, deixando-os falar seus sentimentos e sonhos com plena
liberdade neste Vou Rifar Meu Coração.
Um painel de relatos contados pela boca de personagens do povo, que tiveram dificuldades
no passado, desde a grande paixão arrebatadora e inesquecível até o pessimista
contumaz.
Um filme que se debruça nas músicas românticas, tendo como
reflexão as mágoas, os desejos, as traições, a solidão de pessoas humildes, a fidelidade,
as angústias e tristezas mescladas com os amores fundidos em felicidades e
recordações amargas ou gostosas, assim como fizera Eduardo Coutinho em As
Canções (2011), que teve o mérito maior saber selecionar
da galeria de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto
de vista humano e com força de um pensamento positivo de esperança.
Embora não seguisse a mesma estrutura de Coutinho, que
buscou num palco com uma cadeira seu cenário, pois a cineasta foi às ruas em
diversos lugares, como cabarés, bares e restaurantes de frequência duvidosa,
para ouvir aquelas simplórias criaturas relatarem suas dores e decepções, ou
ainda os esperançosos com o amor. Uns já desesperançados do romantismo, outros
crentes no grande amor. Histórias pitorescas como do prefeito de uma pequena
cidade que vive com duas mulheres e filhos, mas ensina que: “as duas piores
coisas do mundo são perder a eleição e ter duas famílias”. Assevera que as duas
esposas não são totalmente felizes, vivem pela metade, mas nenhuma desiste do
inusitado. A diretora é hábil e extrai o substrato de cada entrevistado,
fazendo-os cantarolar ou falar das canções tidas como bregas, mas inesquecíveis
para os protagonistas. Há homens machistas na maioria e mulheres submissas que soltam
a língua. Há emoção contida como se fosse uma sessão de terapia. Tanto nos
desamores lembrados como nas grandes recordações amorosas cultivadas e
expressadas com dor, diante de vidas marcadas.
O documentário de 76 minutos tem locações em Pernambuco e
Sergipe, com uma fotografia adequada para o cenário rústico e paupérrimo por
vezes. Ao sair de um ambiente degradante, vai mostrando os caminhos tortuosos
pelas mazelas e aspirações daqueles que nutrem algum fio de esperança no amor. São intercaladamente ouvidos artistas que cultuam a
breguice, que teve seu auge nos anos 60 e 70, como Odair José, Wando, Nelson Ned,
Amado Batista, Agnaldo Timóteo e Lindomar Castilhos, sendo que este empresta o
título de uma de suas canções para o filme. Refutam o estigma sob o argumento
de que a música Negue interpretada
por Nelson Gonçalves vira artigo de luxo quando Maria Bethânia grava. Ou ainda,
como afirma Timóteo “Minha música é brega? Por que não foi composta por Chico
Buarque de Holanda, oriundo de família nobre?”
Vou Rifar Meu Coração
é bem palatável, realizado com dignidade e carinho pela documentarista, na
mesma proporção que Patrícia Pilar realizou Waldick,
Sempre no meu Coração (2008). As músicas desfilam num universo de vidas
conflitadas e amargas, porém sem perder a luz da esperança com as canções
entoadas sem refinamento e tidas por muitos como de mau gosto, por serem
excessivamente populares, num imaginário romântico, com muita afetividade e
erotismo desbragado. No olhar atento e sem preconceito da cineasta, temos o
casal de gays que dança ao som de Deslizes,
por Fagner e da prostituta que foi retirada da zona do meretrício para se casar
e constituir família com um fã apaixonado.
Rieper demonstra conhecimento estético sem grandes arroubos
e se impõe como diretora, com elipses sempre na hora certa. Não há bruscas
interrupções, conduz com sensibilidade o documentário, que se insere como
daqueles de boa aceitação pelo grande público, pois faz por merecer, diante da
suavidade como conduz. O resultado se não é dos melhores, está longe da
decepção, sendo bem razoável pela simplicidade, desapego e leveza.
Um comentário:
Lembrei do saudoso Joãozinho Trinta, na época, carnavalesco da Beija Flor, que fazia desfiles luxuosos e dizia que suas criações eram assim porque "as pessoas gostavam de coisas bonitas, bem feitas, caprichadas, as pessoas gostavam de luxo".
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