quarta-feira, 24 de junho de 2009

A Festa da Menina Morta



Festa Mórbida

Matheus Nachtergaele que sempre se destacou por suas grandes interpretações como um ótimo ator, desta vez vai para trás das câmeras e obtém vários prêmios com A Festa da Menina Morta, produção de 2008, que levou 10 anos para ser finalizada, em uma história crua da alienação de uma população ribeirinha e o delírio fanatizado do sincretismo religioso. O neófito diretor que também escreveu esta história parte de um episódio que conheceu no interior da Paraíba, sobre uma comunidade que venerou pedaços de um vestido de uma menina desaparecida, tem como cenário Barcelos, cidade às margens do Rio Negro, na Amazonas, onde a civilização se restringe a barcos, luz elétrica e uma temperatura superior a 40 graus. Filme multi premiado em festivais, como Gramado, Cannes, EUA, Portugal e outros países.

Santinho é interpretado extraordinariamente por Daniel Oliveira, ganhador do prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, dá vida ao seu personagem afeminado e temperamental, alter ego confessado por Nachtergaele, em desempenho digno da galeria da antologia do cinema brasileiro. Já brilhara em 2004 na pele de Cazuza-O Tempo Não Para. Sua fama de milagreiro logo se espalha na comunidade, tendo em vista que foi ele quem recebeu da boca de um cachorro as vestes rasgadas da irmã supostamente morta e ora desaparecida. No mesmo período, sua mãe (Cássia Kiss) teria se suicidado, embora a grande verdade fluirá no decorrer do filme, pois fora enxotada pelo marido e pai de Santinho (Jackson Antunes), por traição, se alojando em uma casa de prostíbulo. Seu retorno e a afronta da homenagem, causará momentos de fúria no filho, que entrará em mais um de seus rotineiros e escrachados transes. O corte na mão sangrando, ao amassar o copo, indica o fim definitivo do relacionamento mãe e filho. Seu irmão Tadeu (Juliano Cazarré) casado com a magnífica (Dira Paes) questiona a celebração e o uso indevido da imagem da irmã celebrizada como protagonista dos ditos milagres de Santinho e de uma seita sem limites. Protagoniza o casal, talvez uma das mais belas cenas do filme, quando se encontram na escada de uma casa dentro rio que com suas águas lângidas passam suave e silenciosamente, levando vegetações, aguapés e pedaços de árvores para seu leito.

A Festa da Menina Morta é um filme instigante e complexo por suas revelações e morbidez, pelo luto festivo e toda a preparação para uma grande manipulação religiosa, com toda a preparação minuciosa para o grande dia que se aproxima, de mais um transe coletivo, tem por cenário o interior da modesta casa do suposto milagreiro, com um cenário interior que lembra muito o colorido desbravado dos filmes de Almodóvar. As centenas de luzinhas penduradas nos postes e barracões são elementos de uma fé que se busca pelo ingenuidade de um povo. Os gritos estridentes dos porcos abatidos para o banquete religioso que se avizinha são chocantes. O ir e vir dos trabalhadores para a construção do cenário exprimem todo o ritual é aguardado com tamanha devoção e expectativa

O diretor não faz concessões e polemiza na cena mais polêmica do filme, do incesto de Santinho com seu pai, sob um aguaceiro memorável, com requintes de ternura e violência pelo abuso sexual. Para muitos, um exagero; para outros, apenas licença poética. Há um forte questionamento das relações adúlteras e incestuosas, como o castigo evidenciado das relações não convencionais.

É inegável que o cinema nacional ganhou um grande diretor, com qualidades de um artesão de mão firme, através de um cinema invulgar, com um estilo próprio e de bom gosto, dando abertura para questões a serem debatidas, tais como o incesto, traição e religião. Não são palatáveis os temas abordados, mas expor suas vísceras de forma crua e artística, requer um talento que se encontra em bem poucos cineastas. Eis uma revelação na direção, que não usa a demasia dos clichês surrados, nem incrementa com acessórios desnecessários sua obra prodigiosa.

O final demonstra todo o fervor de uma fé, que sufoca e acalenta pelo delírio de pessoas humildes, à espera de milagres que estão incutidos nos seus corações e mentes, estigmatizados pela alienação fanática da religiosidade. Nem o trágico fim de seu santo é percebido, pois o transe veda os olhos, deixando a esperança para o próxima culto que virá, em mais um dia de glória, com revelações da menina morta, rezas e realizações que deverão acontecer.

Estamos, portanto, diante de uma pequena obra-prima do cinema brasileiro, digna e merecedora de todos os aplausos dos cinéfilos e ovação da crítica especializada, que se rendeu para este surpreendente filme.

Nenhum comentário: