terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Os Oito Odiados


Resquícios do Racismo

Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia: "acho que essa é a minha obra-prima". E era mesmo. Um filme recheado de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a vingança explícita do massacre da família estampada no rosto da judia-francesa, reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse algumas restrições pela facilidade dos abusos pela força, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova conotação à saga no efervescente e original faroeste, dando oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança escravocrata no Velho Oeste contada pelo irrequieto e inesgotável cineasta, assim como fizera em Bastardos Inglórios, seguiu a mesma estética narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama.

Os Oito Odiados veio para fechar a trilogia das fábulas históricas. Como uma sequência implícita de Django Livre, Tarantino retorna ao gênero do faroeste apresentando novamente os caçadores de recompensa, que agora buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada durante uma tempestade de neve que durará dias. Ali serão debatidos e questionados resquícios que sobrevieram da guerra dos confederados entre sulistas e nortistas nos EUA. John Ruth (Kurt Russell) transporta numa diligência a prisioneira famosa e barraqueira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) à cidade de Red Rock, que espera trocar por boa quantia de dinheiro aquela mulher que sofre agressões físicas constrangedoras. No caminho, encontram o caçador de recompensas major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), único negro do elenco, que está levando alguns cadáveres para o mesmo destino e receber o prometido valor em espécie. No trajeto, darão carona para o futuro xerife Chris Mannix (Walton Goggins), prestes a ser empossado na mesma cidadezinha que segue a caravana. Diante da intensa nevasca, o grupo busca alojamento no mesmo local em que outros desconhecidos estão abrigados sorrateiramente.

O realizador recria um cenário de teatro operístico para um tiroteio verbal nas primeiras cenas. Uma lavagem de roupa suja sobre os meandros e consequências da sanguinolenta guerra civil que durou quatro anos, tendo na figura de Abraham Lincoln, o 16º presidente norte-americano, algumas ironias e indagações sobre sua conduta de paixão por uma causa que lhe doía, como a triste cultura escravocrata, representado no longa pelo personagem magnificamente interpretado por Samuel L. Jackson, enfatizado no epílogo pela suposta carta que recebeu do presidente, que foi tema do filme Lincoln (2012), de Steven Spielberg. Mas aos poucos o tom da conversa sobe e há o estouro iminente entre os oito viajantes enclausurados com suas astúcias à flor da pele. Começam a descobrir os segredos do passado uns dos outros, ninguém é santo ou bonzinho, a maldade dos homens está onipresente como num ninho de cobras criadas e sedentas para destilar o veneno, levando para um inevitável confronto de ideias e provocações entre eles, como do general confederado racista (Bruce Dern) que adora massacrar negros, terá no protagonista um encontro inesperado e revelações surpreendentes sobre o filho do sulista. Fecha o elenco central o caubói silencioso (Michael Madsen), o carrasco voluntário Mobray (Tim Roth) e o mexicano Bob (Demián Bichir).

A cena inicial arrebata o espectador com a belíssima trilha sonora de Ennio Morricone, um craque em composições para westerns. Filmado em 70 mm Panavision, com ênfase na largura da tela, embora pudesse ser prejudicado pelo sistema digital que não daria a mesma amplitude, mas que paradoxalmente pouco se nota, tendo em vista que as imagens não são realizadas a céu aberto, ao apresentar um palco fechado como num teatro. Tarantino se diverte fazendo cinema e brinca com o espectador sem perder a seriedade ao satirizar os brancos, cria uma espécie de fábula moderna colocando os negros como seres em vantagem. Não abre mão de ser responsável pelos roteiros de seus filmes, por isto já obteve dois Oscar de originalidade em Pulp Fiction (1994) e Django Livre, cria em Os Oito Odiados um anticlímax com sugestão de um final antecipado. Divide em atos como numa ópera, deixando para o desfecho o tradicional banho de sangue exagerado, sendo que antes apresenta diálogos contundentes em seu lado mais literário.

O faroeste tem os ingredientes de um diretor com seu notável senso de deboche, embora visto por parte da crítica como precursor da violência no cinema pela câmera lenta com cor vermelha pelo sangue abundante, faz seu registro próprio da história reparadora, tem no humor irresponsável uma presença sempre escrachada nos seus trabalhos convergentes para a crítica corrosiva. Pode parecer uma falsidade, mas o que interessa é o prazer paradoxal da ilusória vitória, com a explosão do irresignado negro para seus pseudos dominadores. Não poupa ninguém, inexistem anjos, sobram malfeitores em profusão. A sequência de tiros no epílogo remete para Bastardos Inglórios, com abundância de sangue esguichando dentro de uma violência incontida presente como ingredientes de uma luta dura, sem ser gratuita. Nada mais execrável e violento do que o horror da escravidão de uma raça depauperada brutalmente da escravatura que dá vazão para a vingança e as injustiças contra a negritude num EUA pré-guerra civil. É a catarse da herança de uma raça humilhada, mas que pelas tintas fortes do diretor busca a redenção e a dignidade esfacelada no tempo. São temas encontrados com melhor estilo em Django Livre pela beleza plástica e a astúcia de um jogo de xadrez naquele longa magistral e superior. Ao desafiar a história e fazer seu julgamento próprio nos três filmes da trilogia, abordando situação de pessoas que pela tolice tornaram-se irracionais ao extremo pelas suas preferências raciais, retrata um independente cinema de verdades e mentiras num delírio salutar. Os Oito Odiados é um bom filme, mesmo com sabor de déjà vu.

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