Resquícios do Racismo
Quentin Tarantino em sua última frase de Bastardos Inglórios (2009) dizia:
"acho que essa é a minha obra-prima". E era mesmo. Um filme recheado
de ironia fina, com uma violência não violenta, apesar do paradoxo, mesmo com a
vingança explícita do massacre da família estampada no rosto da judia-francesa,
reescreveu a história de forma consagradora. Embora houvesse algumas restrições
pela facilidade dos abusos pela força, arrasou com Django Livre (2012), ao dar nova conotação à saga no efervescente e
original faroeste, dando oportunidade aos escravos do Sul dos EUA, dois anos
antes da sanguinolenta guerra civil (1861-1865), em mandar para os ares os
brancos que tanto lhes oprimiram. Foi a vingança escravocrata no Velho Oeste
contada pelo irrequieto e inesgotável cineasta, assim como fizera em Bastardos Inglórios , seguiu a mesma estética
narrativa desde o prólogo com as cenas sequenciais da urdida trama.
Os Oito Odiados veio
para fechar a trilogia das fábulas históricas. Como uma sequência implícita de Django Livre, Tarantino retorna ao
gênero do faroeste apresentando novamente os caçadores de recompensa, que agora
buscam abrigo no Armazém da Minnie, lugar que serve de pousada durante uma
tempestade de neve que durará dias. Ali serão debatidos e questionados resquícios
que sobrevieram da guerra dos confederados entre
sulistas e nortistas nos EUA. John Ruth (Kurt Russell) transporta numa
diligência a prisioneira famosa e barraqueira Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh)
à cidade de Red Rock, que espera trocar por boa quantia de dinheiro aquela
mulher que sofre agressões físicas constrangedoras. No caminho, encontram o
caçador de recompensas major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), único negro do
elenco, que está levando alguns cadáveres para o mesmo destino e receber o
prometido valor em espécie.
No trajeto, darão carona para o futuro xerife Chris Mannix
(Walton Goggins), prestes a ser empossado na mesma cidadezinha que segue a
caravana. Diante da intensa nevasca, o grupo busca alojamento no mesmo local em
que outros desconhecidos estão abrigados sorrateiramente.
O realizador recria um cenário de teatro operístico para um
tiroteio verbal nas primeiras cenas. Uma lavagem de roupa suja sobre os
meandros e consequências da sanguinolenta guerra civil que durou quatro anos,
tendo na figura de Abraham Lincoln, o 16º presidente norte-americano, algumas
ironias e indagações sobre sua conduta de paixão por uma causa que lhe doía,
como a triste cultura escravocrata, representado no longa pelo personagem
magnificamente interpretado por Samuel L. Jackson, enfatizado no epílogo pela
suposta carta que recebeu do presidente, que foi tema do filme Lincoln (2012), de Steven Spielberg. Mas
aos poucos o tom da conversa sobe e há o estouro iminente entre os oito
viajantes enclausurados com suas astúcias à flor da pele. Começam a descobrir
os segredos do passado uns dos outros, ninguém é santo ou bonzinho, a maldade
dos homens está onipresente como num ninho de cobras criadas e sedentas para destilar
o veneno, levando para um inevitável confronto de ideias e provocações entre
eles, como do general confederado racista (Bruce Dern) que adora massacrar
negros, terá no protagonista um encontro inesperado e revelações surpreendentes
sobre o filho do sulista. Fecha o elenco central o caubói silencioso (Michael
Madsen), o carrasco voluntário Mobray (Tim Roth) e o mexicano Bob (Demián
Bichir).
A cena inicial arrebata o espectador com a belíssima trilha
sonora de Ennio Morricone, um craque em composições para westerns. Filmado em 70 mm Panavision, com ênfase
na largura da tela, embora pudesse ser prejudicado pelo sistema digital que não
daria a mesma amplitude, mas que paradoxalmente pouco se nota, tendo em vista
que as imagens não são realizadas a céu aberto, ao apresentar um palco fechado
como num teatro. Tarantino se diverte fazendo cinema e brinca com o espectador
sem perder a seriedade ao satirizar os brancos, cria uma espécie de fábula
moderna colocando os negros como seres em vantagem. Não abre
mão de ser responsável pelos roteiros de seus filmes, por isto já obteve dois
Oscar de originalidade em
Pulp Fiction (1994)
e Django Livre, cria em Os
Oito Odiados um anticlímax com sugestão de um final
antecipado. Divide em atos como numa ópera, deixando para o desfecho o
tradicional banho de sangue exagerado, sendo que antes apresenta diálogos contundentes
em seu lado mais literário.
O faroeste tem os ingredientes de um diretor com seu notável
senso de deboche, embora visto por parte da crítica como precursor da violência
no cinema pela câmera lenta com cor vermelha pelo sangue abundante, faz seu
registro próprio da história reparadora, tem no humor irresponsável uma
presença sempre escrachada nos seus trabalhos convergentes para a crítica
corrosiva. Pode parecer uma falsidade, mas o que interessa é o prazer paradoxal
da ilusória vitória, com a explosão do irresignado negro para seus pseudos dominadores.
Não poupa ninguém, inexistem anjos, sobram malfeitores em profusão. A sequência
de tiros no epílogo remete para Bastardos
Inglórios, com abundância de sangue esguichando dentro de uma violência
incontida presente como ingredientes de uma luta dura, sem ser gratuita. Nada
mais execrável e violento do que o horror da escravidão de uma raça depauperada
brutalmente da escravatura que dá vazão para a vingança e as injustiças contra
a negritude num EUA pré-guerra civil. É a catarse da herança de uma raça
humilhada, mas que pelas tintas fortes do diretor busca a redenção e a
dignidade esfacelada no tempo. São temas encontrados com melhor estilo em Django
Livre pela beleza plástica e a astúcia de um jogo de
xadrez naquele longa magistral e superior. Ao desafiar a história e fazer seu
julgamento próprio nos três filmes da trilogia, abordando situação de pessoas
que pela tolice tornaram-se irracionais ao extremo pelas suas preferências
raciais, retrata um independente cinema de verdades e mentiras num delírio
salutar. Os Oito Odiados é um bom
filme, mesmo com sabor de déjà vu.
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