Inquietações Tridimensionais
Um contestador nato, um revolucionário da gema, assim é o francês
Jean-Luc Godard, aos 84 anos, um diretor nada acomodado, distante de filmes
fáceis. Adeus à Linguagem destaca-se
pela beleza de imagens pontuais, muito pela forma com a qual foram retratadas
nesta metalinguagem cinematográfica, facilitada pelo fato de ter apenas 70
minutos e filmado pela primeira vez em 3D pelo cineasta. Dizer que é um filme
perturbador é pouco; dizer que é um inventário histórico, filosófico e
intelectual, também seria uma análise de reconhecimento menor deste realizador
irrequieto, desde os tempos que participou da célebre Nouvelle Vague na década
de 50, insatisfeito com os rumos da indústria do cinema, juntamente com outros
cineastas, tais como: François Truffaut, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude
Chabrol e Jacques Rivette.
A abrangência no relato de episódios passados que permanecem
retumbando, como as guerras mundiais devastadoras, os genocídios e as
perseguições pelas intolerâncias marcantes nos séculos XX e XXI, demonstram a
qualidade superior da obra. Godard deixa o filme fluir num roteiro que parece
frouxo e prolixo por vezes, mas retoma e estrutura os momentos íntimos do casal
em crise, em nu frontal, com grande eloquência, dando eficiência, deixando os
enigmas aparentemente sem solução transparecer como uma posição tímida de
alento no futuro da humanidade, como resposta aos diversos questionamentos
lançados no hermético roteiro, que leva sua assinatura, mas com todo frenesi e amor
ao cinema. É um ensaio experimental visual na essência revolucionária sem
concessões, que aborda nas entrelinhas os preconceitos e as diferenças
diversas, bem como os valores éticos e morais literalmente feridos e
arranhados, colocando com precisão as elipses entre as cenas sequenciais do
cotidiano, mas dentro de seu estilo formal e irreverente, embora paradoxal.
O longa traz como resultado uma estranha ironia, ao mesmo
tempo em que põe em xeque as crises do mundo e o próprio cinema pelo uso do 3D,
utiliza-se deste recurso como um artifício próprio e renovador para colocar
suas ideias na tela, de quem conduz com lucidez um inventário de suas realizações
para a posteridade digna e merecedora de todos os aplausos, mesmo que restrito
a uma seleta gama de espectadores. Notabilizou sua filmografia por um estilo
sempre recheado de alegorias e metáforas, como em Nossa
Música (2004), Elogio
ao Amor (2001) e Nouvelle Vague (1990);
porém seu longa menos denso, discursivo e por vezes enigmático, talvez seja o
magnífico O Acossado (1979).
Anteriormente foi muito radical com Film Socialisme (2010), mas com Adeus
à Linguagem superou-se, ao atingir o topo do radicalismo, mas com poesia e
luxúria nas analogias entre natureza morta e natureza animal, ao observar e
contextualizar a nudez, dando relativa importância aos protagonistas (Héloïse
Godet e Kamel Abdelli) na sua intimidade compartilhada na casa, mas enfatizando
com carinho o carisma do cão Roxy Miéville- ganhador do Palma de Cachorro no
Festival de Cannes ano passado, além da láurea do Prêmio Especial do Júri para
o filme no mesmo festival- que os acompanha e faz uma espécie de intermediação
metafórica com a natureza e os dois que conversam sobre a questão da linguagem e
sua origem, enquanto que o animal a tudo observa passivamente.
Busca-se nas lembranças de um passado repleto de
acontecimentos históricos, que aos poucos irão se desnudando num mosaico de
fatos para desfilar nas cenas colocadas na cabeça do espectador, fazendo-o
imaginar e dar vida às mesmas, viajando pelo mundo de tantas injustiças e
segregações. As colagens já existentes em Film
Socialisme também estão presentes, assim como sons e as cores
deslumbrantes aleatórias e o passeio pelo navio que singra calmamente aquele
mar num tom azulado esplendoroso. Uma trama que aborda as questões conceituais sob
o ponto de vista filosófico, bem caracterizadas no romancista, dramaturgo e
historiador russo Alexander Soljenítsin, contrastando com as pesquisas na
internet. Às vezes soam de forma desconexa, mas o longa propõe ao espectador
uma esperança no desfecho, após brindá-los com pequenas partículas nada elementares
das crises existentes sobre a temática reflexiva.
Não há a intenção primordial da compreensão com
clarividência sobre suas inquietações exibidas, tanto que o diretor pediu que
nem todas as falas fossem traduzidas na legenda. A retórica do ensaio que pode
confundir, ou dificultar por vezes, como as distorções de imagens e a visão
diferente pelos dois olhos, ou ainda, como se vê no título subvertido na tela em
terceira dimensão (o letreiro de “adeus” se reorganiza como “ah, Deus” e o “au
langage” é visto como “oh, linguagem”). Não é um filme para neófitos ou aqueles
acostumados com uma estrutura convencional de início, meio e fim. Faz parte do
experimentalismo da inverossimilhança que é a própria realização no histórico
do cinema de Godard, feito para cinéfilos cultuadores de seu estilo provocativo
de marca registrada.
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