sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Adeus à Linguagem


Inquietações Tridimensionais

Um contestador nato, um revolucionário da gema, assim é o francês Jean-Luc Godard, aos 84 anos, um diretor nada acomodado, distante de filmes fáceis. Adeus à Linguagem destaca-se pela beleza de imagens pontuais, muito pela forma com a qual foram retratadas nesta metalinguagem cinematográfica, facilitada pelo fato de ter apenas 70 minutos e filmado pela primeira vez em 3D pelo cineasta. Dizer que é um filme perturbador é pouco; dizer que é um inventário histórico, filosófico e intelectual, também seria uma análise de reconhecimento menor deste realizador irrequieto, desde os tempos que participou da célebre Nouvelle Vague na década de 50, insatisfeito com os rumos da indústria do cinema, juntamente com outros cineastas, tais como: François Truffaut, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette.

A abrangência no relato de episódios passados que permanecem retumbando, como as guerras mundiais devastadoras, os genocídios e as perseguições pelas intolerâncias marcantes nos séculos XX e XXI, demonstram a qualidade superior da obra. Godard deixa o filme fluir num roteiro que parece frouxo e prolixo por vezes, mas retoma e estrutura os momentos íntimos do casal em crise, em nu frontal, com grande eloquência, dando eficiência, deixando os enigmas aparentemente sem solução transparecer como uma posição tímida de alento no futuro da humanidade, como resposta aos diversos questionamentos lançados no hermético roteiro, que leva sua assinatura, mas com todo frenesi e amor ao cinema. É um ensaio experimental visual na essência revolucionária sem concessões, que aborda nas entrelinhas os preconceitos e as diferenças diversas, bem como os valores éticos e morais literalmente feridos e arranhados, colocando com precisão as elipses entre as cenas sequenciais do cotidiano, mas dentro de seu estilo formal e irreverente, embora paradoxal.

O longa traz como resultado uma estranha ironia, ao mesmo tempo em que põe em xeque as crises do mundo e o próprio cinema pelo uso do 3D, utiliza-se deste recurso como um artifício próprio e renovador para colocar suas ideias na tela, de quem conduz com lucidez um inventário de suas realizações para a posteridade digna e merecedora de todos os aplausos, mesmo que restrito a uma seleta gama de espectadores. Notabilizou sua filmografia por um estilo sempre recheado de alegorias e metáforas, como em Nossa Música (2004), Elogio ao Amor (2001) e Nouvelle Vague (1990); porém seu longa menos denso, discursivo e por vezes enigmático, talvez seja o magnífico O Acossado (1979).

Anteriormente foi muito radical com Film Socialisme (2010), mas com Adeus à Linguagem superou-se, ao atingir o topo do radicalismo, mas com poesia e luxúria nas analogias entre natureza morta e natureza animal, ao observar e contextualizar a nudez, dando relativa importância aos protagonistas (Héloïse Godet e Kamel Abdelli) na sua intimidade compartilhada na casa, mas enfatizando com carinho o carisma do cão Roxy Miéville- ganhador do Palma de Cachorro no Festival de Cannes ano passado, além da láurea do Prêmio Especial do Júri para o filme no mesmo festival- que os acompanha e faz uma espécie de intermediação metafórica com a natureza e os dois que conversam sobre a questão da linguagem e sua origem, enquanto que o animal a tudo observa passivamente.

Busca-se nas lembranças de um passado repleto de acontecimentos históricos, que aos poucos irão se desnudando num mosaico de fatos para desfilar nas cenas colocadas na cabeça do espectador, fazendo-o imaginar e dar vida às mesmas, viajando pelo mundo de tantas injustiças e segregações. As colagens já existentes em Film Socialisme também estão presentes, assim como sons e as cores deslumbrantes aleatórias e o passeio pelo navio que singra calmamente aquele mar num tom azulado esplendoroso. Uma trama que aborda as questões conceituais sob o ponto de vista filosófico, bem caracterizadas no romancista, dramaturgo e historiador russo Alexander Soljenítsin, contrastando com as pesquisas na internet. Às vezes soam de forma desconexa, mas o longa propõe ao espectador uma esperança no desfecho, após brindá-los com pequenas partículas nada elementares das crises existentes sobre a temática reflexiva.

Não há a intenção primordial da compreensão com clarividência sobre suas inquietações exibidas, tanto que o diretor pediu que nem todas as falas fossem traduzidas na legenda. A retórica do ensaio que pode confundir, ou dificultar por vezes, como as distorções de imagens e a visão diferente pelos dois olhos, ou ainda, como se vê no título subvertido na tela em terceira dimensão (o letreiro de “adeus” se reorganiza como “ah, Deus” e o “au langage” é visto como “oh, linguagem”). Não é um filme para neófitos ou aqueles acostumados com uma estrutura convencional de início, meio e fim. Faz parte do experimentalismo da inverossimilhança que é a própria realização no histórico do cinema de Godard, feito para cinéfilos cultuadores de seu estilo provocativo de marca registrada.

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