quarta-feira, 1 de abril de 2015

Se Fazendo de Morto


A Reconstituição

O cineasta francês Jean-Paul Salomé tem em sua filmografia Arsène Lupi- O Ladrão Mais Charmoso do Mundo (2004) e Contratadas para Matar (2008), mostra alguns méritos em torno da expectativa criada na reconstituição de homicídios com toques e reviravoltas na trama, ao estilo consagrado do mestre Alfred Hitchcock, deixa o espectador confuso e muitas vezes é conduzido para uma solução enganosa, na comédia Se Fazendo de Morto. Sugere um clima investigativo de bom suspense de crimes perfeitos como nos velhos policias noir, com suas regras sendo investigadas à distância e nada minuciosamente pela corporação, tendo na magistrada encarregada de elucidar os fatos vários erros grosseiros na sua condução. As evidências são quase que montadas e os artifícios do inquérito direcionam como uma verdade absoluta à espera de uma conclusão convencional pelos interessados na grande farsa, como também foi bem demonstrado pelo estreante inglês Barnaby Southcombe no longa Eu, Anna (2011).

O imbróglio investigativo tem na figura central o ilusório ator de 40 anos Jean (François Damiens, astro belga conhecido por A Família Bélier) que ganhou o prêmio César de revelação em 1987, o maior do cinema da França, mas por questões de escolhas equivocadas o levaram para uma carreira fracassada e com terríveis condições de sobrevivência no mercado artístico. Como não surge um convite significativo, diante de uma proposta inusitada para fazer o papel de um morto na reconstituição de crimes violentos no norte do país, apesar de contrariado, aceita a árdua tarefa quase que humilhante e acaba se envolvendo de corpo e alma, ao mergulhar na tragicômica situação. Bate de frente com a charmosa juíza Noémie Desfontaines (Géraldine Nakache, de Os Infiéis-2012), que não gosta das sugestões dadas pelo protagonista nas investigações feitas pelo policial suspeito Lamy (Lucien Jean-Baptiste), tendo em vista um acidente que vitimou seu filho num teleférico irregular.

O realizador conduz sutilmente a plateia para as intrincadas revelações de um roteiro enxuto e bem construído do fictício personagem em decadência profissional, agora obcecado pelos crimes, busca afirmação na carreira e quer deixar para trás a pecha de suas atuações constrangedoras em comerciais de televisão. Salomé faz aflorar as circunstâncias que poderão incriminar o representante da polícia e absolver o acusado, mas centra o foco na obstinação tresloucada de Jean e o compulsivo direcionamento para a culpabilidade de um inocente, através das colocações sórdidas que são apresentadas para as causas e consequências dos crimes e a perspicácia na abordagem da matéria com domínio amplo sobre o que é explicitado na versão contada. Há boa similitude na essência da narrativa com Tese Sobre um Homicídio (2013), do argentino Hernán Goldfrid, para retratar cenas que seguem um clímax da perda da lucidez, com a ficção se misturando em meio aos fatos reais ocorridos, com a ausência de imparcialidade na investigação policial contrastando com as decisões da afoita magistrada.

Com boa clareza e suavidade, o cineasta mostra um princípio de caos nas improvisações que vão desde a polícia até o judiciário inócuo, com o objetivo de resolver dois homicídios e um atentado com lesões graves. É a falência de toda uma conjuntura estrutural de um sistema decadente, no qual atua como uma alegoria para a destruição de todos os setores e organismos das células de uma sociedade. A vida pessoal do protagonista entra em descompasso e retrata um indicativo de insegurança, razão pela qual o desfecho da aproximação íntima com a magistrada e o vulnerável emprego no hotel são colocados como questões num labirinto de dúvidas e a lucidez se esvaindo, diante da imersão abalada no aspecto emocional e com a razão sendo colocada num plano secundário.

Se Fazendo de Morto aborda a temática crítica ao sistema com concessões, embora não fuja dos questionamentos lançados, busca uma cumplicidade do espectador para desvendar os crimes e indicar elementos com subsídios para associar o prólogo com o desfecho romanesco, neste bom e significativo policial tragicômico que instiga pela narrativa que destaca um falho conjunto operacional, causa humor na decadência dos princípios éticos e morais revelados, à medida que a corrupção e o desemprego são destacados com boa ênfase pelo cineasta. Faz refletir sobre a iminência da perda do domínio do poder e a submissão num subemprego, além de uma suposta ausência de imparcialidade investigativa pelo abalo emocional que destrói a racionalidade.

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