quarta-feira, 18 de março de 2015

Depois da Chuva


A Redemocratização

Com uma produção modesta de R$1,4 milhão, Depois da Chuva é um filme rodado na Bahia, que traz na direção a dupla de estreantes Cláudio Marques e Marília Hughes, retrata um período pouco mostrado no cinema, a transição da ditadura militar para a democracia. Aborda traços autobiográficos do diretor Marques que viveu a efervescência política desta época e sua iniciação amorosa em Salvador naqueles anos conturbados. Diante do enfraquecimento do regime ditatorial nos anos de 1980, a trama acompanha Caio (Pedro Maia), um jovem rebelde de 16 anos de um colégio de classe média e seu idílio com a colega de aula (Sofhia Corral). O garoto vive alguns conflitos ideológicos no processo de amadurecimento político, e ainda tem que harmonizar a relação com os pais separados, especialmente a convivência com a mãe (Aícha Marques), que tem a guarda judicial.

Didático e cronológico na história, o longa direciona o foco para os jovens enamorados que estão vivendo uma fase histórica de mudanças no país pelo contexto político, com as eleições diretas para Presidente, no auge da campanha das Diretas Já, que levou multidões às ruas em 1984, bem como a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral com a redemocratização e o fim do regime militar (1964-1985). Mostra a vigília cívica na agonia da doença do primeiro presidente civil eleito desde João Goulart, ao morrer sem tomar posse, restando ao seu vice, José Sarney assumir e comandar a propalada Nova República. Em meio aos percalços políticos, há a descoberta sexual transitando com o fim da adolescência e os ideais utópicos pululando nas mentes da juventude entediada por caminhos obscuros no futuro.

Depois da Chuva venceu o Festival de Brasília de 2013 nas categorias de melhor ator- apesar da pífia atuação de Maia-, roteiro e trilha sonora, é um painel de uma sociedade em turbulência num tempo difícil para os jovens, diante das prerrogativas de uma política castrada por um sistema alienante e sem direitos na sua plenitude. O protagonista tenta entender o que se passa naqueles momentos de tensão. De anarquista e apaixonado por música punk contestadora ao extremo, sente por vezes toda sua fragilidade e a falta do livre direito de expressão, como o radialista agredido num show, além da discussão com colegas pela direção do grêmio estudantil e a clássica música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, entoada com ardor, levantando uma massa sedenta de liberdade com os braços levantados em sinal de protesto.

Além dos anos de exceção bem contados no Brasil, eis um drama sobre os reflexos e consequências danosas e utópicas de uma juventude adormecida por um regime extremamente castrador. São os anseios pela manutenção da integridade e do núcleo democrático derrotados por uma expressa vontade dos anos que sucederam aquela ebulição e os desfazimentos dos sonhos aflorados, rompe-se a continuação de um futuro almejado e de valores plantados num país em derrocada num cenário sombrio dos movimentos estudantis, como o protagonista que ingenuamente quer modificar o mundo num sistema conservador. A transformação almejada por jovens que clamam mudanças numa sociedade estagnada são objetivos imediatistas, através de um tom poético pela ruptura do vínculo com o sistema, com a desconstrução de jovens idealistas, embora utópicos em suas angústias e tristezas de um tempo que ficou para trás, restando somente a ilusão de um futuro a ser construído, partindo-se do marco zero.

É quase impossível não se comparar Depois da Chuva com filmes similares sobre temas idênticos, tendo em vista as enormes semelhanças de conteúdo e proposta, como Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci; ou com Amantes Constantes (2005), de Philippe Garrel, no cenário de 1969, um grupo de jovens se dedica ao ópio depois de ter vivido os acontecimentos de 1968, e dentro do grupo nasce um louco amor entre um casal que se conheceram durante a revolução. Mas a semelhança temática maior está em O Estudante (2011), de Santiago Mitre, um drama argentino pontilhado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa, quando realizado dois anos antes da produção nacional, ao sintetizar com maturidade sobre a política estudantil bem próxima da partidária, com debates políticos recheados de conchavos, coligações e falcatruas, num universo de sujeira, traição e interesses pessoais.

Os diretores filmam com clareza e fazem uma crítica razoável ao velho sistema em frangalhos, na qual uma mentalidade arcaica corroída dava seus últimos suspiros e impiedosamente se extinguia. Embora com alguns clichês recorrentes num notório clima de déjà vu, entre os quais a velha cantoria de roda de violão, o uso de drogas, ou o clipe de uma música punk para o protagonista apaixonado que praticamente não fala, apenas olha e observa tudo com cara de sonso. Bem que para o papel poderia ser um ator da qualidade de Chay Suede, Ravel Andrade, Jesuíta Barbosa, só para mencionar alguns talentos brasileiros, sem falar no astro Louis Garrel, porque já seria um exagero desproporcional. Também o didatismo exagerado resulta uma obra acadêmica e divorciada de uma realidade mais impositiva, crítica e questionadora para tornar-se reflexiva. Porém, o longa apontado por alguns críticos afoitos como o melhor da década, apesar de alguns equívocos, tem a essência de cinema com bons méritos, ao deixar sua marca como um registro histórico o epílogo dos anos de chumbo para ser esquecido para sempre, traz no prólogo a cláusula pétrea da sonhada democracia.

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