terça-feira, 10 de março de 2015

Nostalgia da Luz


As Origens no Deserto

O cineasta chileno radicado na França Patricio Guzmán é um dos mais badalados documentaristas em atividade no cinema mundial. O mais recente filme O Botão de Pérola (2015) foi um dos premiados no recente Festival de Berlim como melhor roteiro e Prêmio do Júri Ecumênico. É o diretor do fabuloso A Batalha do Chile (1975-1979), dividido em três partes, no qual passa a limpo o processo político-social anterior ao golpe militar de 1973 de seu país, bem como as nefastas consequências posteriores. É dele também o documentário Salvador Allende (2004).

Agora com Nostalgia da Luz, melhor documentário do European Film Awards, esta invejável produção de 2010, que só agora chega ao mercado exibidor brasileiro, num atraso incompreensível, retrata com discernimento por uma notável analogia sobre a existência da espécie humana e suas origens relacionadas com a religião, a política e a ciência do infinito que se fundem, para propor uma reflexão poderosa e profunda sobre os restos humanos encontrados no Deserto de Atacama, uma grande mancha marrom da terra mais seca do planeta vista do espaço no pé da Cordilheira dos Andes, que funciona como uma porta de um triste passado. Os vestígios humanos são oriundos do genocídio de pessoas contrárias ao sanguinolento tirano, que ali eram jogados para desaparecerem para sempre, e em outras vezes despejados no mar. São importantes questões levantadas para um resgate das memórias da conturbada história chilena.

O mérito maior do realizador é saber selecionar da série de depoimentos aqueles mais consistentes e adequados ao tema, sob o ponto de vista humano e com a força das descrições contadas pela boca de personagens do povo e por cientistas sobre as origens colocadas na temática, sem ser piegas ou definitivo, longe disto, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista como um emérito questionador, ao deixar as pessoas à vontade para falarem algo interessante e os enigmas guardados com fervor e paixão pelos remanescentes que procuram indícios de vida seus familiares encravados naquele deserto infinito com seus mistérios do passado. Um grande exemplo de narrativa sóbria e equilibrada são as duas mulheres que falam com o coração e buscam soluções para as dúvidas mencionadas. Às vezes, em comoventes devaneios para continuar lutando com as forças que ainda restam para atingirem seus objetivos vistos como impossíveis. Embora o cientista afirme que é mais difícil encontrar soluções no universo do que achar corpos ali naquele lugar inóspito entre as montanhas.

Na recente premiação de O Botão de Pérola, em entrevista coletiva para a imprensa chilena, Guzmán denota sua preocupação com o passado político, o que já fizera em No e Nostalgia da Luz, ao afirmar que: “Me interessa muito a geografia chilena e creio que se podem fazer metáforas por meio desses elementos. O que mais me interessa é a memória. Me interessa lutar contra a amnésia do Chile.” O documentário proposto tem a essência do cinema, diante das poderosas imagens captadas num cenário distante e sombrio para dar cores fortes de uma realidade que existiu e deixou marcas por cicatrizes incuráveis que as informações desfilam na tela para o espectador refletir sobre uma brutalidade advinda de um processo deformado que atinge em cheio vidas que ficaram pelos caminhos tortuosos de um poder nefasto, como no sincero depoimento de um astrônomo, ao enfatizar o medo dos militares pelo estudo científico quer os deixavam atordoados. Mas Guzmán não é movido pelo discurso panfletário maniqueísta, longe disto, seu cinema busca o equilíbrio e a racionalidade do tema do tempo e da memória por um resgate histórico imparcial.

Com brilho poético, o cineasta demonstra toda sua sensibilidade para um mergulho sobre a existência humana e as questões metafísicas dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos e situações da política e as consequências sociais que faz abrir um debate contextualizado. Com as imagens da Lua refletindo sobre Atacama, o longa traz uma ideia estética que nos remete para 2001- Uma Odisseia no Passado (1968), de Stanley Kubrick, ao encenar no prólogo a evolução da vida em nosso planeta pela semelhança de uma proposta ficcional cósmica e seus elementos temáticos da evolução humana. É difícil não lembrar e relacionar algumas semelhanças com Terrence Malick, no seu extraordinário drama existencial A Árvore da Vida (2011), sobre o sentido da vida, interligando religião com a perda de um dos filhos, questionando a opressão do pai e todo um rigor de disciplina severa ao preparar as crianças para as adversidades da vida.

O filme é um retrato sensitivo da tecnologia que coloca o ser humano diante das suspeitas existenciais, numa mescla de poesia com a verdade pelo impacto sensorial em quase todo o desenrolar da trama com o grande enigma da vida. Há uma tentativa buscada pela arqueologia nos instintos primitivos, bem como os reflexos da energia da explosão do Big Bang e o seu processo de espaço-tempo, tendo no nascimento do universo, a formação das galáxias e planetas e os primeiros movimentos da vida e sua evolução, a Terra com os humanos e suas contradições. Atacama não é apresentado como um bonito cenário para campos de experiências em Nostalgia da Luz, porém, é visto como um cemitério escondido para colocar presos políticos descontentes com o regime truculento de extermínio. A cena do corpo descoberto é reveladora como uma forma de livrar-se do estorvo e dá provas da barbárie, abandonando naquele momento as origens para demonstrar um passado bem presente, advindas de um contexto arbitrário perverso e doentio. Dá luz para um olhar panorâmico e perturbador, decorrentes deste inesquecível documentário.

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