segunda-feira, 23 de junho de 2014

Avanti Popolo

















Memória Resgatada

Radicado em São Paulo desde 2004, o diretor uruguaio-israelense Michael Wahrmann laureou-se com o prêmio de melhor direção, troféu da crítica de melhor filme e ator coadjuvante (Carlos Reichenbach- morto em 2012) no Festival de Brasília de 2013, com seu primeiro longa Avanti Popolo- título extraído de um hino comunista do século XX-, um misto de drama com documentário, numa abordagem sobre o passado pela visão de um pai à espera do filho mais velho desaparecido em dezembro de 1974.

A trama mostra o cineasta Reichenbach interpretando o papel de um patriarca recluso numa modesta casa protegida por uma simplória grade frontal, com um carro velho enferrujado na garagem, está sempre acompanhado de sua cadelinha Baleia, uma fiel escudeira que brinca com ele e o faz ir procurar uma bola que se esconde, ou desaparece, assim como o rapaz eclipsado num dia qualquer pelo regime militar discricionário que reinava no país. O filho caçula André (André Gatti) volta para casa após se separar da esposa, mas não consegue dialogar com o velho pai. Descobre em rolos antigos de Super-8 algumas passagens peculiares do cotidiano filmadas pelo próprio irmão, antes de sumir do mapa para sempre. Embora busque alternativas de conversas, não há reciprocidade nos diálogos, tendo em vista que o idoso não quer falar sobre o triste episódio que o marca há 30 anos, deixando-o com uma fisionomia em frangalhos, num tom melancólico e desesperador para quem aguarda um retorno impossível.

Wahrmann usa o artifício da narrativa pontilhada por flashbacks, um recurso usual e às vezes carregado de lugar-comum, embora tente fazer como um combustível para aquecer a história, o seguimento utilizado fraqueja e cai na mesmice, quase detonando sua obra. Faz dos personagens criaturas que se confundem com os atores em cena, mesclando realidade com ficção, obtém razoável resultado ao aproximar as características psicológicas e físicas dos intérpretes, embora adquira um tom sombrio resultante dos destroços da existência humana pelo tempo e pelas contingências políticas que afetaram o núcleo familiar de forma arrasadora e implacável.

Há uma referência direta do cineasta ao simpático movimento estético Dogma 95, criado por Thomas Vinterberg em parceria Lars von Trier, em março de 1995, em Copenhague, num manifesto cinematográfico internacional, com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague. Porém, o longa brasileiro peca na forma simples de uma câmera estática captando imagens, com excessos de planos-sequência longos sem um objetivo claro definido, exceto a dor ou a espera linear. Nisto o diretor malaio radicado na China Tsai Ming Lang dá uma aula no recente drama Cães Errantes (2013), como no prólogo e no epílogo há cenas em quadro estático, planos longos, escassos diálogos, como se vê na mãe ao se pentear observa o casal de filhos dormindo languidamente. Wahrmann se optasse por cortes e elipses, não causaria excessos desnecessários em várias cenas dos 72 minutos que se arrastam.

O filme foi realizado com recursos minguados para uma qualidade de imagens distantes e desbotadas que prejudicam o desenrolar da história e cortam o clímax. Mas há uma trilha sonora que salva em muitas situações, não deixando cair totalmente no marasmo, o que seria uma tendência para os diálogos e o cenário predominante no interior da casa antiga de mofos abundantes decorrentes do tempo, na periferia pobre estigmatizada dos paulistanos. Há similitude com A Memória que me Contam (2012), de Lúcia Murat, outro filme sobre a reflexão dos anos de chumbo pós-1964, abordando as utopias do passado de derrotas pessoais e relações doloridas entre familiares e o ciclo de amigos; bem como se aproxima do drama Hoje (2011), de Tata Amaral e seu olhar na sexualidade como uma forma agressiva para se defender do passado que atormenta o futuro; mas bem abaixo do excelente Elena (2012), de Petra Costa, que não deixa escapar a política brasileira nos anos 80 e sua geração que abandonou o país na ânsia da liberdade à procura de novas oportunidades.

Avanti Popolo é uma obra autoral com o propósito claro de mergulhar num ensaio cinematográfico, como um resgate da memória de tempos difíceis e aterradores dos desaparecidos de uma nação em crise política e de um governo sob o regime de exceção, deixa muitas lacunas e perdas de pessoas próximas, que aos poucos vai sendo lembrado e retirado dos estertores do esquecimento de seus arquivos implacáveis. É uma tênue tentativa de cicatrizar traumas e feridas abertas pelos estragos causados na coletividade, embora seja ainda por uma narrativa irregular numa construção genérica e de pouca profundidade, mas de uma significativa contribuição histórica ao cinema sobre os efeitos nefastos de um período antidemocrático, diante do estado de direito extirpado dos cidadãos. Faltou força para levar o tema até o fim, ao buscar soluções sobre um passado de fantasmas que se movem, mas não avança com solidez por um foco profundo de uma sociedade que sofreu os horrores e atrocidades do autoritarismo.

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