Memória Resgatada
Radicado em
São Paulo desde 2004, o diretor uruguaio-israelense Michael
Wahrmann laureou-se com o prêmio de melhor direção, troféu da crítica de melhor
filme e ator coadjuvante (Carlos Reichenbach- morto em 2012) no Festival de
Brasília de 2013, com seu primeiro longa Avanti
Popolo- título extraído de um hino comunista do século XX-, um misto de drama com documentário, numa abordagem sobre o passado
pela visão de um pai à espera do filho mais velho desaparecido em dezembro de
1974.
A trama mostra o cineasta Reichenbach interpretando o papel
de um patriarca recluso numa modesta casa protegida por uma simplória grade frontal,
com um carro velho enferrujado na garagem, está sempre acompanhado de sua
cadelinha Baleia, uma fiel escudeira que brinca com ele e o faz ir procurar uma
bola que se esconde, ou desaparece, assim como o rapaz eclipsado num dia
qualquer pelo regime militar discricionário que reinava no país. O filho caçula
André (André Gatti) volta para casa após se separar da esposa, mas não consegue
dialogar com o velho pai. Descobre em rolos antigos de Super-8 algumas
passagens peculiares do cotidiano filmadas pelo próprio irmão, antes de sumir
do mapa para sempre. Embora busque alternativas de conversas, não há
reciprocidade nos diálogos, tendo em vista que o idoso não quer falar sobre o
triste episódio que o marca há 30 anos, deixando-o com uma fisionomia em
frangalhos, num tom melancólico e desesperador para quem aguarda um retorno
impossível.
Wahrmann usa o artifício da narrativa pontilhada por flashbacks,
um recurso usual e às vezes carregado de lugar-comum, embora tente fazer como
um combustível para aquecer a história, o seguimento utilizado fraqueja e cai
na mesmice, quase detonando sua obra. Faz dos personagens criaturas que se
confundem com os atores em cena, mesclando realidade com ficção, obtém razoável
resultado ao aproximar as características psicológicas e físicas dos intérpretes,
embora adquira um tom sombrio resultante dos destroços da existência humana
pelo tempo e pelas contingências políticas que afetaram o núcleo familiar de
forma arrasadora e implacável.
Há uma referência direta do cineasta ao simpático movimento
estético Dogma 95, criado por Thomas Vinterberg em parceria Lars von
Trier, em março de 1995, em Copenhague, num manifesto cinematográfico internacional,
com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de
castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista
e menos comercial. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague.
Porém, o longa brasileiro peca na forma simples de uma câmera
estática captando imagens, com excessos de planos-sequência longos sem um
objetivo claro definido, exceto a dor ou a espera linear. Nisto o diretor
malaio radicado na China Tsai Ming Lang dá uma aula no recente drama Cães Errantes (2013), como no prólogo e
no epílogo há cenas em quadro estático, planos longos, escassos diálogos, como
se vê na mãe ao se pentear observa o casal de filhos dormindo languidamente. Wahrmann
se optasse por cortes e elipses, não causaria excessos desnecessários em várias
cenas dos 72 minutos que se arrastam.
O filme foi realizado com recursos minguados para uma
qualidade de imagens distantes e desbotadas que prejudicam o desenrolar da
história e cortam o clímax. Mas há uma trilha sonora que salva em muitas
situações, não deixando cair totalmente no marasmo, o que seria uma tendência
para os diálogos e o cenário predominante no interior da casa antiga de mofos
abundantes decorrentes do tempo, na periferia pobre estigmatizada dos
paulistanos. Há similitude com A Memória
que me Contam (2012), de Lúcia Murat, outro filme sobre a reflexão dos anos
de chumbo pós-1964, abordando as utopias do passado de derrotas pessoais e
relações doloridas entre familiares e o ciclo de amigos; bem como se aproxima
do drama Hoje (2011), de Tata Amaral e seu olhar na sexualidade
como uma forma agressiva para se defender do passado que atormenta o futuro;
mas bem abaixo do excelente Elena
(2012), de Petra Costa, que não deixa escapar a política brasileira nos anos 80
e sua geração que abandonou o país na ânsia da liberdade à procura de novas
oportunidades.
Avanti Popolo é
uma obra autoral com o propósito claro de mergulhar num ensaio cinematográfico,
como um resgate da memória de tempos difíceis e aterradores dos desaparecidos
de uma nação em crise política e de um governo sob o regime de exceção, deixa
muitas lacunas e perdas de pessoas próximas, que aos poucos vai sendo lembrado
e retirado dos estertores do esquecimento de seus arquivos implacáveis. É uma
tênue tentativa de cicatrizar traumas e feridas abertas pelos estragos causados
na coletividade, embora seja ainda por uma narrativa irregular numa construção
genérica e de pouca profundidade, mas de uma significativa contribuição
histórica ao cinema sobre os efeitos nefastos de um período antidemocrático,
diante do estado de direito extirpado dos cidadãos. Faltou força para levar o
tema até o fim, ao buscar soluções sobre um passado de fantasmas que se movem,
mas não avança com solidez por um foco profundo de uma sociedade que sofreu os
horrores e atrocidades do autoritarismo.
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