Solidariedade Pragmática
Eric Toledano e Olivier Nakache adaptaram para o cinema uma
história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário
tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, um imigrante do Senegal que
busca seu reingresso social na França dos brancos. O filme Intocáveis tem um toque de humor cáustico na busca pela igualdade
entre duas pessoas opostas social e intelectualmente.
A comédia retrata o aristocrata Phillippe Pozzo di Borgo
(François Cluzet- de atuação sóbria), autor do livro O Segundo Suspiro, onde conta ter sofrido um acidente num parapente
que lhe causa uma moléstia irreversível e o faz andar de cadeira de rodas, com
uma vida beirando à vegetativa. É um homem culto e de bom gosto musical, ouve
Vivaldi Johann Bach, Chopin. É rico e tem vários carros potentes de último tipo
na garagem. Do outro lado está Driss (interpretado magistralmente pelo ator
Omar Sy, sendo o primeiro negro a ganhar o César, o Oscar francês), um jovem
negro espirituoso de porte atlético, de hábitos rudes e com passagem pela
polícia por assalto, mora num pequeno apartamento com seu irmão, um rapaz com
problemas de conduta e com atividades ilícitas. Às vezes chega a ser um
brutamonte, usa da violência física para colocar ordem na casa e na vizinhança,
mas tem uma índole bondosa, é romântico e sedutor, não pode ver um rabo de saia
que se derrete e vai atrás. Driss tem uma alma iluminada pelo alto astral, pois
nunca deixa a peteca cair, indo sempre ao encontro das belezas encantadoras da
vida. É contratado pelo ricaço como cuidador-enfermeiro, logo o casamento
torna-se perfeito com Phillippe, pois levanta o astral do patrão, como numa
leitura motivacional de autoestima pela sabedoria da escola da vida mesclada
com pitadas de autoajuda.
Intocáveis aborda
um tema universal que é o reingresso na sociedade de um ex-apenado, tendo
agravada a situação por ser um imigrante naturalizado, oriundo de um país
africano e ex-colônia francesa. As piadas são razoáveis, às vezes beira a
grosseria e rudeza, mas no contexto funciona como um elemento de descontração e
bom humor. O filme é simples na sua estética, deixando as metáforas afastadas
do enredo, indo direto ao ponto como o choque cultural, sem grandes rodeios ou
simbologias das desgraças sociais.
Porém há uma clara intenção dos diretores de usar no roteiro
alegoricamente as clássicas frases da Revolução Francesa, de 1789. A começar pela fraternidade,
clara e expressa entre os protagonistas; a igualdade entre pessoas
diferentes de classes sociais e culturais, sendo atraídas pela solidariedade de
uma amizade pura; e finalmente a liberdade como símbolo da união entre
aqueles dois seres distintos que saem para voar num parapente, como se fosse
uma volta ao passado que vitimou o aristocrata, bem como andar em alta
velocidade pelas ruas de uma perplexa Paris, diante do elo selado entre os dois
amigos advindo de uma relação de trabalho inverossímil. Para o empregado há o
complemento do vigor daquela fortaleza física, também sua humanidade e do modo
extrovertido de levar a vida, curtindo suas benesses patrocinadas pelo seu
chefe; já para o paraplégico existe a compensação retribuída pelo dinheiro,
poder e a relação com a arte das pinturas de Goya e Dali e a ópera ofertada
para Driss, numa interação complementar da relação sadia, bem como de sua
solidariedade fraternal que causa o estreitamento e a aproximação para a
atitude de amor e carinho, ao aproximar Phillippe de sua grande paixão
platônica, através da grande qualidade do cuidador, que é o pragmatismo para
tudo no cotidiano. Ensina que deve ser deixado de lado as frases requintadas e
rebuscadas de efeitos vazios lançadas nas correspondências virtuais ou por
cartinhas, onde o resultado é pífio.
O longa não tem a profundidade de um filme como O Porto (2011), do finlandês Aki
Karismäki, que aborda o sofrimento e a ojeriza de uma casta que vira as costas,
fruto da xenofobia racial, com um olhar de misericórdia e esperança, nem de
Claire Denis no instigante Minha Terra,
África (2009); ou do arrasador O
Segredo do Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do
contundente Cachê (2003), de Michael
Haneke.
Eis um filme que recebeu nove prêmios César e é fenômeno de
público e já alcançou mais de 20 milhões de espectadores na França, sendo a
segunda maior bilheteria de todos os tempos em seu país, ficando atrás somente
de A Riviera Não é Aqui (2010), de
Dany Boon, que ultrapassou os 21 milhões. Há méritos inegáveis ao abordar uma
relação solidária de duas pessoas opostas que se conhecem por acaso e que são
amigas até hoje. Embora a reinclusão social seja um dos temas, não há uma
profundidade acentuada, longe de um resultado reflexivo além do razoável como
lição de vida, gratidão e superação, nesta obra que se afasta do politicamente
correto e acena num mergulho superficial nas licenciosidades e extravagâncias
para buscar-se a alegria de viver numa amizade louca, cômica e faiscante, tida
pelos dogmas normativos como improvável.
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