terça-feira, 15 de maio de 2012

As Praias de Agnès



















Um Autorretrato

A diretora Agnès Varda promete que As Praias de Agnès é seu último filme, ganhador do prêmio César de melhor documentário. Dificilmente são encontradas ou exibidas suas obras no circuito comercial brasileiro. Este é o segundo longa-metragem autobiográfico e realizado como um documentário obteve um resultado fabuloso, numa narrativa sensível e poética que passeia pelas praias que de certa forma marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar a vida. Além de lançar um olhar breve de lembranças do passado, não deixa de mostrar seu presente e a alegria de dizer “estou viva, e eu me lembro” e na mais bela frase do filme que resume seu amor imensurável pela sétima arte, assevera “o cinema é minha casa”.

A trajetória do documentário começa com sua infância ao lado dos pais na Bélgica, lembra da falta da figura paterna que lhe faz quando morre o pai num cassino, após perder uma boa quantia em dinheiro. Logo vem o período de uma expressiva fotógrafa e da artista plástica; o engajamento na causa feminista, diante dos estupros e submissões frequentes das mulheres; há as belas viagens que lhe foram dando bons subsídios para sua imaginativa criação de filmes que marcaram sua carreira prodigiosa.

Não deixa de prestar um belo tributo ao seu marido morto de Aids, em outubro de 1990, o magistral Jacques Demy, autor de obras como Lola, A Flor Proibida (1961), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) com a beleza rara e já estonteante de Catherine Deneuve e Duas Garotas Românticas (1967). Demy foi seu grande e único amor e quando fala dele embarga a voz, bem como ao prestar a homenagem com pétalas de flores e afirmar que é a pessoa que mais lhe faz falta na convivência diária, numa cena comovente. Menciona sua participação junto com o marido no movimento Nouvelle Vague, ao lado de Jean Luc Godard, François Truffaut e Alain Resnais.

A cineasta define seu filme como autobiográfico documental e enfatiza “se você abrir uma pessoa irá achar paisagens; se me abrir, irá achar praias”. Faz uma revisita em sua própria história com entrevistas de personagens como Philippe Noiret, Gérard Depardieu e Michel Piccoli de seus grandes filmes que ficaram mais velhos como Cleo das 5 às 7 (1962), As Duas Faces da Felicidade (1965), Teto sem Lei (1985) e Os Catadores e Eu (2000). Também emociona com as aparições de Jane Birkin e o marido Serge Gainsbourg, entre tantas celebridades que desfilam seus rostos no painel do tempo da diretora e colocados novamente na tela neste mosaico do passado, onde aparecem intercalados com seus gatinhos de estimação. Sempre bem acompanhados de belas fotografias, reportagens e trechos fragmentados de filmes de sua autoria ou de Demy. Ou ainda a alegoria em que ela monta um teatro circense à beira-mar e faz alusão a figura de Jonas na barriga da baleia.

Um verdadeiro passeio pela história do cinema e seu fascínio, com um a aula acoplada para os apreciadores devotados, sob a batuta de Varda que completara 80 anos ao realizar este documentário instigante. Há a linda cena da homenagem dos atores e da equipe técnica como uma reverência carinhosa e digna da “baixinha fofa” que mantém a alegria de viver como uma jovem serelepe e altaneira, estando agora com 83 anos. Está sempre atenta ao mundo e suas modificações e inovações, nem parece aquela garota que viu bombas explodirem da 2ª. Guerra Mundial, ao deixar Bruxelas sua terra natal e ir para a França buscar agasalho; presenciou crianças judias serem levadas para os campos de extermínio, além de outras adversidades como a prematura morte do marido. Mas ao filmar os dois filhos com os netos, genro e nora todos de branco e a cineasta de preto, está implícita a fantasia decorrente da beleza de uma paz interior de seu espírito criativo e leve, sem mágoas ou ressentimentos do passado da mãe e avó afetuosa.

O grande amor pelas praias demonstrado à exaustão neste brilhante As Praias de Agnès, a reverência à família e, em especial, ao inesquecível companheiro Demy com uma vida dedicada exclusivamente ao cinema são elementos de amor e paixão pela vida e pelo que faz, que se fundem como uma simbiose, neste ensaio em forma de apresentação dos resultados dos trabalhos realizados em torno de um tema, que desfila como recordações mostradas como um autorretrato de uma artista realizada com o que faz e que não pode parar, pois tem muito ainda para dar. Um filme notável sobre a essência da vida, seus ensinamentos reflexivos e emoções existenciais.

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