quarta-feira, 23 de maio de 2012

As Neves do Kilimanjaro



Solidariedade com Fé

O diretor Robert Guédiguian já realizou obras diversas e temas pungentes ou doces. Foi otimista em Marius e Jeannete (1997); um tanto pessimista como em A Cidade Está Tranquila (2000); terno e sensual em Marie Jo e Seus Dois Amores (2002); ou ainda apresentando com ternura a biografia de François Mitterrand atormentado pela doença terminal, com algumas lições sobre política, história, amor e literatura do ex-presidente em O Último Mitterrand (2004). Seus filmes são basicamente com o mesmo elenco que está com ele há mais de 30 anos na sua cidade natal, a portuária Marselha, onde sua mulher Ariane Ascaride, os atores Jean-Pierre Daroussin- foi o sensível comissário em O Porto (2011), de Aki Karismäki-, e Gerard Meylan formam um elenco com vínculos.

Nesta sua última produção de 2011, As Neves do Kilimanjaro, está baseada numa adaptação livre do poema Os Pobres, de Victor Hugo, não confundir com o conto clássico de Ernest Hemingway. O drama é aparentemente modesto com traços de ingenuidade e um sentimentalismo quase que piegas, mas o cineasta vai se livrando com alguma maturidade das armadilhas do roteiro que levam para pessoas bondosas e desprovidas de maiores voos e ambições pessoais, surgem a todo o momento desprendidas, mas vão acomodando os problemas e os percalços da vida e suas surpresas de última hora, beirando quase ao simplório.

A trama está centrada no líder sindical portuário Michel (o magnífico Daroussin) sendo demitido num sorteio, aonde vem a perder o emprego, pois alguém teria que sair, e apesar de sua estabilidade, colocou seu nome no rol dos concorrentes e acabou “contemplado”. Diante de uma aposentadoria compulsória, teve o apoio irrestrito da mulher Marie-Claire (a irrepreensível Ascaide) com sua generosidade, trabalha para ajudar na composição da renda da família. Vivem rodeados dos filhos e netos e são premiados na bonita cerimônia de aniversário de casamento no sindicato com uma viagem para o monte Kilimanjaro, na África, além de uma significativa soma em dinheiro. A festa foi organizada pelo melhor amigo Raoul (Meylan), regada a vinho rosé, mas a frustração vem logo, ao ser roubado por um ex-colega de trabalho também demitido, sob a canhestra alegação de pagar as contas atrasadas e ter recursos para criar os dois irmãos menores abandonados pelos pais.

Guédiguian busca no abandono familiar de uma mãe tresloucada e de um pai totalmente omisso dar o tom no longa, com os problemas sociais do desemprego de uma França enfraquecida pelos desmandos de uma burguesia ultrapassada, ajudada por uma esquerda que perde o horizonte crítico por suas idiossincrasias, sofre seriamente com a crise europeia. A cena do reencontro ente vítima e réu revela os dissabores do agressor e sua mágoa remanescente com a condução do sindicato sem ética, que usa meios discutíveis para atingir fins nebulosos e contraditórios de um discurso de igualdade, afastado de uma política salarial condizente e sem acautelamentos nas demissões sumárias. Fica latente a acusação burguesa a Michel, que recebeu euros para ver animais na África e com a bela alegoria aos franceses tomando banho no mar e as ácidas comparações.

Discussões à parte da conduta sindical, o cineasta traz à baila o problema do microcosmo familiar sendo questionado como o abandono de crianças, surgindo neste ínterim a figura fraterna de Marie-Claire com seu bom coração para afagar os desamparados, numa atividade que deveria ser de uma assistente social do governo, tendo a anuência explícita do marido. É um filme interessante pelos questionamentos e a exposição de feridas abertas longe da cicatrização, que remete para uma reflexão imparcial, embora o filme peque estruturalmente na profundidade, um tanto quanto rasa e sem um grande debate.

Elogiável o ótimo elenco, uma trilha sonora adequada por ser correta e sem interferir nos diálogos. Ainda assim o drama não deslancha e a temática fraqueja por alguns excessos de bom-mocismo e uma altivez desproporcional, diante de um discurso quase que religioso de um futuro do mundo com muita fé e sem pessoas más, desnecessário e inconsequente para um realizador de um retrospecto de credibilidade, mas que não chega a liquidar com a obra, embora tenha andado perto.

Nenhum comentário: