quarta-feira, 23 de março de 2011

Terra Deu, Terra Come



O Sertão de Seu Pedro

O diretor Rodrigo Siqueira nascido em Minas Gerais e radicado em São Paulo há nove anos, estreou com o pé direito no circuito comercial, com este grandiloquente documentário Terra Deu, Terra Come, embasado na obra maravilhosa do inesquecível Guimarães Rosa. Faz uma verdadeira visita ao universo e ao reino da terra tão cultuada pelo escritor mineiro e cria uma autêntica obra autoral.

Foi escolhido para ser o condutor da película Pedro de Alexina, 81 anos, figura carismática do Sertão de Minas Gerais e que faz parte do programa chamado Tesouros Humanos Vivos, onde pessoas que ao morrerem levam juntas os conhecimentos culturais, já reconhecido e homologado pela Unesco. O documentário faz alusões ao rico e mitológico universo do autor de Grande Sertão: Veredas, contando entre tantas histórias, talvez a mais famosa e promissora que dá ponto de partida ao filme, como a convivência até certo ponto pacífica entre Deus e o Diabo, sob o olhar das almas que vigiam os diamantes da mineração, pairando silenciosamente no ar, tudo observando e mandando mensagens ao vivos. Existe uma união entre as pessoas da região e a solidariedade salta aos olhos. Ninguém fica marginalizado, todos fazem parte da comunidade ativa.

Há também o pacto entre Cristo e São Pedro, em referências às lendas difundidas após serem ouvidas de boca em boca. Teria Cristo criado a morte, após São Pedro querer levar todos os idosos que se arrastavam pelas redondezas, sem força para viver. Porém, não poderia levar todos os velhinhos de uma vez só, pois estes deveriam ensinar aos mais jovens seus conhecimentos adquiridos na existência. A morte ao levar um velho faria o clássico equilíbrio natural da humanidade, mas fora presa num quarto e lhe retirada a foice, causando a superpopulação, com mais gente e menos chão. Mas ela teria se soltado e voltou o equilíbrio.

O diretor admite que foram 40 horas de filmagens exaustivas e Pedro de Alexina, ou somente Seu Pedro, foi figura fundamental na edição do filme, levando por merecimento seu nome nos créditos e que arrebatou o prêmio de grande vencedor do festival de documentários É Tudo Verdade, ganhou ainda os festivais de Belém, Belo Horizonte, Gramado, Uruguai e Alemanha. Além de toda sua aptidão natural para interpretar os cânticos afros no ritual fúnebre, com condução esplendorosamente fidedigna, como na morte de João Batista, de 120 anos, dando cachaça para o corpo ficar mais leve, conduzindo com uma tora de bananeira para o repouso definitivo na gruta.

Há uma encantadora mescla de realidade e representação numa fantasia ficcional ou seria uma sequência real, mas sempre com hábil técnica, beirando a perfeição, para o documentário ser cantado, gritado e louvado por Seu Pedro. Sempre deixando margens para interpretações em aberto, sem jamais fechar questão, com elipses no tempo certo e apropriadas. Terra Deu, Terra Come nasceu da intenção do diretor em levar às telas os vissungos, um dialeto praticamente extinto, em que músicas de trabalho de matriz africana, chamadas de banguela, se misturam com rituais fúnebres. Há, portanto, uma junção perfeita de dialetos, em que a língua africana se mescla com o português, entre os séculos XVIII e XIX. O banguela era uso comum nos cânticos dos negros garimpeiros ao extraírem ouro e diamantes nas minas.

O filme não afasta e deixa fluir a forte sensação da parceria entre Deus e o Diabo, mas quando os moradores se referem ao demônio, usam o "Sujo e "Ele", sem mencionar uma palavra mais jocosa, em sinal de respeito ou medo. É citada a parceria do avô de um homem branco e dono de todas terras do Sertão mineiro com o "Sujo", restando aos negros se contentarem com o garimpo, sendo colocada pelo diretor, desta forma, a discriminação racial em xeque nos séculos passados. O cineasta é um apaixonado pelas coisas do interior de sua terra e constrói um mundo surreal e imaginário, com regras imprecisas da tradição local, sem se preocupar com o que é lenda ou realidade e até dá alguns pitacos em algumas cenas. Seu acerto está em fazer o relato fiel, contado por aquele homem negro e um dos últimos conhecedores do dialeto vissungo e de talento ímpar.

Seu Pedro é um condutor magnífico e sabe lidar com as lendas, os cânticos, os ritos fúnebres. Vai se soltando e construindo a memória daquele lugar aconchegante do Quartel de Indaiá, na deslumbrante região de Diamantina. É um ator amador carismático, espontâneo pelo seu brilho próprio e que com seu jeito fácil de se comunicar faz o tempo voar neste estupendo documentário, que traz um jeito novo de filmar e inova, saindo da mesmice dos demais.

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