quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Inverno da Alma



A Dor da Dignidade

O longa-metragem Inverno da Alma tem em sua essência o puro cinema, sem invenções mirabolantes ou inovações estéreis e desconexas, onde muitas vezes o filme torna-se prolixo e chato, deixando escapar a chance de fixar uma proposta contundente. Não é à toa que foi o grande Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Sundance de 2010, categoria Drama; também é serio candidato a Melhor Filme no Oscar deste ano.

A jovem e independente diretora americana Debra Granik é estranha a Hollywood e é considerada uma espécie de patinho feio, como se fosse uma alienígena para os apreciadores de filmes comerciais e comprometidos com as diretrizes e normas hollywoodianas, bem como para os acadêmicos do Oscar. É uma cineasta preocupada com o sincronismo, a emoção dosada e a lucidez dos diálogos com suas elipses, tendo como marca uma clara e notável harmonia de ideias e reflexões, sendo uma crítica ácida e até áspera com os americanos ortodoxos e nacionalistas. Pode-se observar na cena em que mostra as camisas estampadas com bandeiras dos EUA, num tom desproporcional e de uma realidade contrária para arroubos e delírios patrióticos.

A trama é simples e o clímax é crescente neste magnífico drama, em que a garota de 17 anos Ree Dolly (Jennifer Lawrence- em grande atuação e indicada ao Globo de Ouro como melhor atriz dramática) procura pelo pai, um fora da lei, que deixou-a cuidando de seus dois irmãos também menores e da mãe com problemas mentais; tal qual a enfermidade de seu país que paga adiantado pelo alistamento dos jovens para entrarem na guerra, ou estarem em lugares bem longe da família. Ficou bem evidenciado nos diálogos no Setor de Recrutamento do Exército, quando tentara fazer sua inscrição para abocanhar uma razoável quantia em dinheiro e pagar as dívidas remanescentes do genitor que deixou a residência, uma pequena propriedade rural, totalmente alienada, com a promessa de apresentar-se na audiência de instrução, por estar em liberdade condicional.

A procura é estafante pelo pai que é intimado peremptoriamente. Os parentes de sangue também começam a abandonar a causa, deixando-a numa situação constrangedora e comovente que leva Ree ao desespero. Surge o auxílio tímido no início e abrangente no final do tio Tardrop (John Hawkes- numa maiúscula atuação que levou-o a indicação de melhor ator coadjuvante no Oscar). É um viciado em cocaína, mas de coração mole que assume aos poucos a figura paterna da sobrinha e de seus irmãos, naquela comunidade sombria, de pessoas esquisitas e estranhas, obstinadas pela arrogância e o intuito da violência explícita à flor da pele, de gestos e atitudes atemorizantes. O envolvimento é quase que completo de todos, inclusive daquele obscuro xerife, com atitudes e demonstrações de cumplicidade naquele imenso conluio de ilegalidade no tráfico de drogas. A lei do silêncio impera e quem transgride terá sua sentença irrevogável decretada. Por isso os tiros ao alvo dados por Ree e o ensinamento às crianças são uma defesa imposta, ainda que incivilizada.

O longa vai atingindo um crescendo numa atmosfera própria de temor e dor, de compreensão e complexidade, sem nunca cair no efêmero ou na obviedade, como na cena do pântano, em que Ree entra naquela pequena embarcação com aquelas mulheres que lhe surraram barbaramente, na busca frenética pelo corpo do pai e no corte das mãos com a serra elétrica- seria uma punição para as mãos que cortam e devastam as florestas?-, atinge momentos de dramaticidade e suspense com a verossimilhança que os fatos vão se ajustando aos poucos, embora fique a dúvida da veracidade da informação, diante da expectativa da cilada que se esgota somente na cena final. Há todos os ingredientes necessários, tais como a noite escura tendo dentro dela o barco deslizando suavemente pelas águas lodosas, tendo nas sombras das árvores atuando como se fossem criaturas escondidas e prontas para atacarem.

Outra cena de eloquência e rara beleza é aquela em que o tio Tardrop leva os dois pintinhos e deposita-os nas mãos daquelas duas crianças desprotegidas, mas que saberão fazer com seus presentes simbólicos, numa clara alegoria dos irmãos com os filhotinhos recém-nascidos, que não podem ser abandonados, assim como a irmã mais velha recebe o dinheiro sujo, também se vê na obrigação de cuidar e dar afeto para com seus manos e a mãe doente, reconstruindo o núcleo familiar.

Inverno da Alma tem a beleza e o encanto das cenas num cenário de campos, animais e árvores que compõem aquela bela floresta seriamente ameaçada de extinção pelo homem e a sua motossera, numa manifesta denúncia em defesa da natureza. Sem esquecer a cena simbólica da vizinha ao acolher o cavalo de Ree, que estava sem comer há quatro dias, divide o feno caro e raro de seus equinos como prova de solidariedade e amor ao próximo. Um pequeno grande filme que marca pela sensibilidade e sutileza, com o intuito da exuberante paixão pelo cinema de Debra Granik, evidenciando o acerto em cheio da diretora, deixando a reflexão sobre as perdas pela vida e a ameaça à natureza, assim como a continuação pela dignidade de viver se solidifica como um grande achado.

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