sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Biutiful



Redenção na Escuridão

O irrequieto e talentoso diretor mexicano Alejandro González Iñarritu, com Biutiful, realiza seu quarto longa-metragem e o primeiro separado de seu roteirista predileto Guilhermo Arriaga, que produzira antes filmes com roteiros interligados como quebra-cabeças, como Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006). Traz as assinaturas no roteiro, além da sua, de Armando Bo e Nicolas Giacobone.

Desta feita o cineasta mergulha no submundo da esplendorosa e festejada metrópole que é a cidade espanhola de Barcelona, para mostrar todo seu leque de situações inusitadas, sem o glamour sempre presente de realizações de outros diretores. Aqui são expostas as vísceras de um problema social quase que insolúvel, como os habitantes clandestinos africanos e chineses, especialmente num mundo que vai de belas mulheres que dançam nas boates regadas por bebidas importadas, sob a direção do irmão do protagonista principal. Mas a contradição está logo ali estampada naquele horroroso e mal cheiroso depósito que morrem 25 pessoas tragicamente por asfixia, como nos campos de concentração do Nazismo, decorrente de escapamento de gás dos aquecedores baratos e sem nenhuma segurança, vendidos de forma absurda e sem controle. Embora previsto desde o início, ninguém toma uma atitude, sendo os valores da vida questionados, diante do estarrecedor genocídio pelo acidente.

O mote da trama é a comovente vida de cachorro que leva o casal protagonista e seus dois filhos pequenos. O marido é Uxbal (Javier Bardem) e cabe um comentário à parte, para esta atuação antológica e digna da imortalidade deste papel de doente terminal, deixando para trás personagens inesquecíveis como em Antes do Anoitecer (2000), Segunda-Feira ao Sol (2002), Mar Adentro (2004) e Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007). Sua mulher no drama é uma prostituta bipolar (Maricel Álvarez, simplesmente magnífica) que espanca o filho menor (Guillermo Estrella, convincente) por fazer urinar na cama, sob o olhar cândido da irmã Ana (Hanaa Bouchaib, em papel elogiável), que tudo assiste e tenta se solidarizar com a iminente morte do pai, convalescente de um câncer de próstata com metástase nos ossos e no fígado, que busca uma saída no escuro, numa luta desesperada pela redenção familiar.

Numa família desestruturada, embora com a figura do pai presente, leva-se uma vida atormentada, pior que de um cão vira-lata, tendo em Uxbal vivendo de intermediações de forasteiros e suas vendas de produtos piratas e o inevitável envolvimento com drogas. Os dias passam, a doença avança e degenera o pai e a bipolaridade da mãe não cede; mas aquela mãe negra de um filho órfão do pai assassinado nas ruas de Barcelona como um delinquente comum, tentando salvar a mercadoria, surge como uma luz no fim do túnel e uma esperança no horizonte, para tomar conta daquelas crianças adolescentes sem um futuro promissor. Luta contra a vontade de ir embora que é forte e arrebatadora, mas a dúvida aumenta e o contraste também deixa suas feridas abertas, restando uma doce compaixão mesclado ao amor materno como provas cabais e presentes. Mesmo que para isso, contraditoriamente, tenha que viver naquele mundo de excluídos e marginalizados de uma sociedade que os jogou na rua como porcos na pocilga.

Mas o filme não é somente isso, pois tem também a estupenda abordagem da morte, quando pai e filho se encontram na floresta coberta pela neve em flocos no prólogo e no epílogo, com a finitude rondando através da coruja e a fábula do fogo cuspido de sua boca, contada inúmeras vezes, para elucidar a existência humana e o destino dos que partem para a eternidade. Há uma influência de Ingmar Bergman evidente, como nos diálogos doloridos de Gritos e Sussuros (1972) e Morangos Silvestres (1957); bem como sua admiração é inarredável por Pedro Almodóvar, pelo filme Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

A morte é vista com resistência por Uxbal que implora para ficar aqui entre nós, em cenas comoventes e delirantes de uma dignidade inimaginável. O prenúncio do fenecimento vem com os pássaros negros que adornam o céu e o trágico desaparecimento dos clandestinos constroem um painel, levando com clareza para um desfecho de choque, tanto nos olhos como nas almas dos espectadores. Os temas são encaixados naturalmente e sem artificialismos corriqueiros, como se a naturalidade espontânea dos fatos fossem avançando. Iñarritu é um diretor que se credencia como dos mais notáveis da era moderna do cinema e nos brinda com esta verdadeira obra-prima deste fantástico longa Biutiful, celebrizado pelas imagens e pelos diálogos construídos entre pais e filhos, como a inesquecível cena do reencontro do filho com o pai morto e embalsamado, após longínquos 40 anos de espera, ao ser retirado do túmulo, que fora vendido para obter dinheiro.

É um filme obrigatório para ser assistido, tanto pela abordagem da morte e a passagem para o além, com toda a dor e a recepção num mundo que aparenta ser mais acolhedor, sem pieguice ou conformismo mas com muita emoção e impacto; como também pela denúncia explícita de valores perdidos, onde a dignidade de vencer os obstáculos se sobrepõe e o impacto da morte só é absorvido, quando a ternura e o carinho atenuam a perda.

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