segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Film Socialisme















A Contestação de Godard

O octagenário Jean-Luc Godard nunca foi um diretor acomodado ou de filmes fáceis. Notabilizou sua filmografia por um estilo sempre recheado de alegorias e metáforas, como em Nossa Música (2004), Elogio ao Amor (2001) e Nouvelle Vague (1990); porém seu longa menos denso, discursivo e por vezes enigmático, talvez seja o magnífico O Acossado (1979).

Em Film Socialisme não foge a regra e deslumbra com seu magnetismo singular, diante das citações filosóficas, buscando nas lembranças de um passado repleto de acontecimentos históricos, que aos poucos irão se desnudando e o mosaico de fatos contestados vão desfilando em imagens colocadas na cabeça do espectador, fazendo-o imaginar e dar vida as mesmas, viajando pelo mundo de tantas injustiças e segregações. Godard dividiu seu longa em momentos cruciais, como se fosse uma ópera bufa. Ou seja, o primeiro Coisas Assim, se passa numa viagem pelo Mar Mediterrâneo num cruzeiro, com conversas em vários idiomas entre os passageiros; o segundo movimento é Nossa Europa, onde há o questionamento de dois irmãos, refletindo sobre a liberdade, igualdade e a fraternidade, lema da Revolução Francesa em 1789; o terceiro e o melhor sem dúvida é Nossas Humanidades, sobre a falsidade e a verdade de alguns mitos de países que são visitados, como Egito, Palestina, Grécia, Odessa, Nepal e Barcelona, servindo como uma revisão histórica pelo cinema.

A viagem se inicia pelo cruzeiro que singra calmamente aquele mar num tom azulado esplendoroso, de Alger a Barcelona, com passagens por Nápoles e algumas cidades do Oriente Médio, tendo em seu interior as distorcidas imagens captadas como se fossem por uma câmera de segurança. Ali há diálogos desencontrados e dispersivos em idiomas diversos, tendo um criminoso de guerra, uma ex-oficial da ONU, uma cantora negra americana, um embaixador da Palestina, um filósofo, e tantos outros. Os personagens vão se encontrando e as multietnias se interagem, com questionamentos exemplarmente confrontados e contestados. Nada escapa da câmera, como o som abafado e a falta de diálogos na boate do cruzeiro, apenas os corpos rebolando e dançando freneticamente, tendo nos garçons e barmans amplamente focados, demonstrando um certo desinteresse e às vezes pasmados com as tolices ouvidas de pseudos intelectuais.

Inicialmente o filme gira e anda pelos corredores, passando do quarto para o convés, da pista de dança para os diálogos entrecortados e murmurados como se as legendas derivassem de escritas de povos alienígenas, numa crítica social a própria Europa que se enche de orgulho e rejeita os demais como se fosse a toda poderosa e dominadora. Começa naquele mar turvo e revolto e aos poucos vai ao encontro da placidez e da calmaria das águas azuis-turquesa. No segundo ato ou momento, o mais fraco deles, mostra uma equipe de TV registrando as peculiaridades e o dia a dia de uma família interiorana da França. A jornalista branca representa uma Europa decadente, tendo ao seu lado a fotógrafa negra como simbologia da África, observadas atentamente no posto de gasolina por um burro e um dromedário, indiferentes as loucuras da humanidade. Já na cena anterior uma referência a Honoré Balzac, através do livro Ilusões Perdidas, como metáfora de uma geração desiludida.

Em seguida, passamos para o terceiro ato, com as cenas chocantes das guerras e golpes militares, enfatizando com clarividência o Nazismo, a bolsa de valores com o suposto dinheiro de ganho fácil, tendo suas consequências nefastas e antiéticas. Há frases de efeito sobre o dinheiro inventado para que os homens não precisassem olhar nos olhos dos coirmãos. Menciona o excesso de livros e a literatura num continente fora da realidade, voltado para o irreal e fictício. E a não menos bela cena da visita à escadaria de Odessa, que serviu de cenário do filme- que teve a cena antológica do berço do bebê que teve a mãe assassinada descendo pelos degraus, no famoso massacre dos marinheiros- a obra-prima Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Ensenstein, sobre a Revolução Russa de 1905, contra a tirania do regime czarista.

Godard deixa o filme fluir num roteiro que parece frouxo e prolixo por vezes, mas retoma e estrutura os três momentos com grande eloquência, dando eficiência, não deixando os enigmas sem solução ou uma posição como resposta aos diversos questionamentos lançados no prólogo. Inegavelmente não podemos deixar de lembrar de Manoel de Oliveira, na obra-prima Um Filme Falado (2003), como inspiração e porque não uma homenagem ao jovial centenário cineasta portugês. Um tributo merecido, ainda que de modo sutil, mas com todo frenesi e amor ao cinema.

Não é um filme para neófitos ou aqueles acostumados com uma estrutura de roteiro convencional de início, meio e fim. É uma película que aborda nas entrelinhas os preconceitos raciais e as diferenças entre povos de etnias diversas, bem como os valores éticos e morais literalmente feridos e arranhados, colocando com precisão as elipses entre as cenas sequenciais. Não há pieguices, embora esteja atento as peculiaridades, mas dentro de seu estilo formal e irreverente paradoxalmente. Às vezes, com rigor e em outras solta a câmera, dentro de seu modo de conduzir com sutileza, resultando neste inventário de suas obras para uma posteridade digna e merecedora de todos os aplausos, mesmo que restrito a uma seleta gama de espectadores.

Dizer que é um filme perturbador é pouco; dizer que é um inventário histórico, filosófico e intelectual, também seria um análise de reconhecimento menor, deste diretor irrequieto, desde os tempos que participou da célebre Nouvelle Vague na década de 50, insatisfeito com as rumos da indústria cinematográfica, juntamente com outros cineastas, tais como: François Truffaut, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette. Enfim, a abrangência no relato e na busca em flasbacks de episódios passados que permanecem marcantes, demonstram a qualidade da obra, que se insere desde já como um dos melhores filmes do ano.

2 comentários:

João Gomes disse...

Muito bom este artigo sobre o grande filme de Godard.
Gostaria de saber se posso utilizá-lo no meu site de cinema.
Obrigado.

Roni Figueiró disse...

Não há problema em publicar a crítica do filme de Godard em seu site. Obrigado pela leitura e atenção.
Um abraço
Roni Figueiró