sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Lumière! A Aventura Começa


Legado Monumental

Com A Invenção de Hugo Cabret (2011), o cineasta norte-americano Martin Scorsese prestou seu júbilo aos pais da primeira filmadora e máquina de projeção, os irmãos Lumière- Auguste e Louis-, com flasbacks de 1895, no filme mudo de 50 segundos A Chegada de Um Trem na Estação, mostrando a entrada de um comboio puxado por uma locomotiva a vapor em uma estação de trem na cidade costeira francesa de La Ciotat. Nesta inestimável homenagem, baseada no livro homônimo infantojuvenil de ficção de Brian Selznick (2007), visava especialmente o carinho justo ao cineasta esquecido e relegado, na pele de um anônimo proprietário de uma loja de brinquedos na estação, o notável sonhador do cinema e grande ilusionista George Méliès (1861- 1938), interpretado com brilhantismo por Ben Kingsley. Ilustrou muito bem com a cena do garoto Hugo ao lado de seu robô que tentava reconstruir, tendo as imagens do filme Viagem à Lua (1902), de Méliès, inaugurando a era do cinema, através de imagens fantásticas para os primórdios daqueles tempos terrivelmente difíceis.

Agora chegou a vez do cineasta, roteirista e montador Thierry Frémaux, também diretor geral do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, prestar uma reverência com tintas eminentemente instrutivas da agradecida cinefilia. Ele prefere não ser visto como o diretor do magnífico Lumière! A Aventura Começa, seu primeiro longa-metragem, mas como um crítico e pesquisador desta obra inestimável. Para ele, os verdadeiros autores são os irmãos Auguste e Louis Lumière. O documentário foi organizado com extrema precisão em blocos temáticos para uma visão mais ampla e acurada pelo espectador atento, cinéfilo ou não. Uma produção que mergulha numa jornada fascinante pelo universo dos fundadores do cinema, os irmãos Lumière. São as primeiras históricas imagens em movimento restauradas pelo olhar único da França e do mundo da Era Moderna, através de 108 filmes compilados de 1.428 curtas resgatados da indústria de produção dos verdadeiros precursores desta magia de sonhos, que é mostrada em breves 50 segundos cada um e sucessíveis na tela. Devidamente montados para celebrar o legado da dupla, de 1895, data da primeira sessão em espaço público de cinema, até 1905, quando a sétima arte se tornaria mundial e um fenômeno de público no planeta.

Um achado poucas vezes visto é este documentário memorável de imagens capturadas deste monumental acervo cultural que fisgam os apreciadores do cinema. Uma homenagem direta e jamais feita na essência com tanta originalidade à dupla pioneira do cinema. A Chegada do Trem na Estação e A Saída da Fábrica, de 1895, são duas relíquias históricas do marco do registro de cinematógrafo dos irmãos Lumière, que Frémaux parte para visitar o volumoso catálogo. Outro joia rara incrível é O Regador Regado, com o banho de mangueira proposital no rapaz que apronta uma travessura. Passa ainda por cenas que influenciaram velhos mestres como Orson Welles, Alfred Hitchcock, Elia Kazam, e John Ford que comentou o belo Fila Indiana Numa Geleira com Sapatos de Neve, de 1899, inspiração para os enquadramentos em plano aberto das câmeras nas planícies e grandes paisagens dos seus antigos faroestes; as relações íntimas de Yasujiro Ozu em Fumantes de Ópio, em 1899; os passeios da burguesia em As Escadarias da Pont de L’alma, de 1900, estabelecem o vínculo de Proust na Paris eterna; até o clássico Encouraçado Potemkim, de Sergueï Eiseisten, bebe nas águas de um curta sobre os marinheiros. São pequenas preciosidades fascinantes de filmes originais muito  bem restaurados desta coletânea, trazendo plena nitidez às imagens originais singulares de mais de 100 anos.

Lumière! A Aventura Começa tem muito mais ao longo dos rápidos 90 minutos desta seleção minuciosa organizada em capítulos, como se fossem diamantes brutos que viriam a ser lapidados. Há cenas marcantes como do primeiro jogo de futebol disputado Inglaterra, em 1897, com os atletas vestindo uma indumentária exótica, a câmera estática focando os jogadores sem a bola, com movimentos estranhos para uma fértil imaginação. Outras cenas inesquecíveis são as lavadeiras na beira do rio, como um alegórico balé de mãos sincronizadas; o barco à deriva, numa dança pela sobrevivência; os meninos fazendo poses ao se jogarem nas águas de um trapiche; a criança brincando com o gato; os cinco mil soldados marchando nos EUA, sendo que somente três não tinham bigode; e a criança caminhando, tropeça espontaneamente na frente da câmera. O mundo se estreitava e as distâncias inimagináveis davam lugar para a o início da globalização pelas telas cinematográficas. Tudo começava a ficar próximo e os tabus iriam de dissipando.

Os irmãos Lumière e sua equipe de operadores não deixaram de registrar os franceses trabalhando e se divertindo numa época de poucas opções de lazer. A cidade de Lyon, cidade natal dos pioneiros, e berço do cinema, foi o cenário para os primeiros filmetes. Somente depois eles vão para Paris filmar as pessoas andando pelas ruas de bicicleta em meio das charretes puxadas por cavalos, com a Catedral de Notre-Dame, o rio Sena, a Torre Eiffel e outros pontos turísticos como locações referenciais das imagens captadas. Depois vem o Big Ben em Londres, Egito, Rússia, EUA e Veneza na Itália. O epílogo celebra a criança e sua felicidade, diante do deslumbramento da garotinha vietnamita na aldeia em A Vila de Namo, de 1900, através da câmera posicionada numa liteira. Uma aula de cinema e cultura geral contada didaticamente por Frémaux sobre os planos abertos nas grandes locações, bem como os fechados em lugares exíguos. Em toda narrativa há uma precisão cronológica extraordinária sobre os temas abordados para serem guardados na memória advindos deste tributo arrebatador de imagens artesanais históricas protegidas para a posteridade.

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