Legado Monumental
Com A Invenção de Hugo
Cabret (2011), o cineasta norte-americano Martin Scorsese prestou seu
júbilo aos pais da primeira filmadora e máquina de projeção, os irmãos Lumière-
Auguste e Louis-, com flasbacks de 1895,
no filme mudo de 50 segundos A Chegada de
Um Trem na Estação, mostrando a entrada de um comboio puxado por uma
locomotiva a vapor em uma estação de trem na cidade costeira francesa de La Ciotat. Nesta inestimável
homenagem, baseada no livro homônimo infantojuvenil de ficção de Brian Selznick
(2007), visava especialmente o carinho justo ao cineasta esquecido e relegado,
na pele de um anônimo proprietário de uma loja de brinquedos na estação, o
notável sonhador do cinema e grande ilusionista George Méliès (1861- 1938),
interpretado com brilhantismo por Ben Kingsley. Ilustrou muito bem com a cena
do garoto Hugo ao lado de seu robô que tentava reconstruir, tendo as imagens do
filme Viagem à Lua (1902), de Méliès,
inaugurando a era do cinema, através de imagens fantásticas para os primórdios
daqueles tempos terrivelmente difíceis.
Agora chegou a vez do cineasta, roteirista e montador Thierry
Frémaux, também diretor geral do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, prestar
uma reverência com tintas eminentemente instrutivas da agradecida cinefilia. Ele
prefere não ser visto como o diretor do magnífico Lumière! A Aventura Começa, seu primeiro longa-metragem, mas como
um crítico e pesquisador desta obra inestimável. Para ele, os verdadeiros
autores são os irmãos Auguste e Louis Lumière. O documentário foi organizado
com extrema precisão em blocos temáticos para uma visão mais ampla e acurada pelo
espectador atento, cinéfilo ou não. Uma produção que mergulha numa jornada
fascinante pelo universo dos fundadores do cinema, os irmãos Lumière. São as
primeiras históricas imagens em movimento restauradas pelo olhar único da
França e do mundo da Era Moderna, através de 108 filmes compilados de 1.428 curtas
resgatados da indústria de produção dos verdadeiros precursores desta magia de
sonhos, que é mostrada em breves 50 segundos cada um e sucessíveis na tela.
Devidamente montados para celebrar o legado da dupla, de 1895, data da primeira
sessão em espaço público de cinema, até 1905, quando a sétima arte se tornaria
mundial e um fenômeno de público no planeta.
Um achado poucas vezes visto é este documentário memorável de
imagens capturadas deste monumental acervo cultural que fisgam os apreciadores
do cinema. Uma homenagem direta e jamais feita na essência com tanta originalidade
à dupla pioneira do cinema. A Chegada do
Trem na Estação e A Saída da Fábrica,
de 1895, são duas relíquias históricas do marco do registro de cinematógrafo
dos irmãos Lumière, que Frémaux parte para visitar o volumoso catálogo. Outro joia
rara incrível é O Regador Regado, com
o banho de mangueira proposital no rapaz que apronta uma travessura. Passa
ainda por cenas que influenciaram velhos mestres como Orson Welles, Alfred
Hitchcock, Elia Kazam, e John Ford que comentou o belo Fila Indiana Numa Geleira com Sapatos de Neve, de 1899, inspiração
para os enquadramentos em plano aberto das câmeras nas planícies e grandes
paisagens dos seus antigos faroestes; as relações íntimas de Yasujiro Ozu em Fumantes de Ópio, em 1899; os passeios
da burguesia em As Escadarias da Pont de L’alma, de 1900, estabelecem
o vínculo de Proust na Paris eterna; até o clássico Encouraçado Potemkim, de Sergueï Eiseisten, bebe nas águas de um
curta sobre os marinheiros. São pequenas preciosidades fascinantes de filmes originais muito bem restaurados desta coletânea, trazendo plena nitidez às imagens originais singulares de mais de 100 anos.
Lumière! A Aventura
Começa tem muito mais ao longo dos rápidos 90 minutos desta seleção
minuciosa organizada em capítulos, como se fossem diamantes brutos que viriam a
ser lapidados. Há cenas marcantes como do primeiro jogo de futebol disputado
Inglaterra, em 1897, com os atletas vestindo uma indumentária exótica, a câmera
estática focando os jogadores sem a bola, com movimentos estranhos para uma
fértil imaginação. Outras cenas inesquecíveis são as lavadeiras na beira do
rio, como um alegórico balé de mãos sincronizadas; o barco à deriva, numa dança
pela sobrevivência; os meninos fazendo poses ao se jogarem nas águas de um
trapiche; a criança brincando com o gato; os cinco mil soldados marchando nos
EUA, sendo que somente três não tinham bigode; e a criança caminhando, tropeça
espontaneamente na frente da câmera. O mundo se estreitava e as distâncias
inimagináveis davam lugar para a o início da globalização pelas telas
cinematográficas. Tudo começava a ficar próximo e os tabus iriam de dissipando.
Os irmãos Lumière e sua equipe de operadores não deixaram de
registrar os franceses trabalhando e se divertindo numa época de poucas opções
de lazer. A cidade de Lyon, cidade natal dos pioneiros, e berço do cinema, foi
o cenário para os primeiros filmetes. Somente depois eles vão para Paris filmar
as pessoas andando pelas ruas de bicicleta em meio das charretes puxadas por
cavalos, com a Catedral de Notre-Dame, o rio Sena, a Torre Eiffel e outros
pontos turísticos como locações referenciais das imagens captadas. Depois vem o
Big Ben em Londres, Egito, Rússia, EUA e Veneza na Itália. O epílogo celebra a
criança e sua felicidade, diante do deslumbramento da garotinha vietnamita na
aldeia em A Vila de
Namo, de 1900, através da câmera posicionada numa liteira. Uma aula de
cinema e cultura geral contada didaticamente por Frémaux sobre os planos
abertos nas grandes locações, bem como os fechados em lugares exíguos. Em toda
narrativa há uma precisão cronológica extraordinária sobre os temas abordados
para serem guardados na memória advindos deste tributo arrebatador de imagens artesanais
históricas protegidas para a posteridade.
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