As Escolhas
No apagar das luzes de 2017, surge Woody Allen na sua
trajetória de comédias de costumes dramáticas, mantendo-se fiel no sarcasmo e na
sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa filmografia, por ser
um dos melhores cineastas em atividade no mundo. Roda Gigante é o 49º. longa-metragem do diretor e roteirista que
nos remete para a lenda do vinho: “Quanto mais velho é melhor”. Assim como nos
filmes anteriores, Café Society
(2016) e Homem
Irracional (2015), também não atua, mas
mantém o vigor e a capacidade de construção de um cinema voltado para as
inquietações angustiantes do cotidiano e a análise dele mesmo através desta
fascinante história de amores e desamores que é contextualizada no verão dos
anos de 1950, num parque de diversões à beira-mar, em Coney Island , praia do
bairro do Brooklyn, em
Nova Iorque , sobre uma barraca de tiro ao alvo com vista para
uma enorme roda-gigante, onde moram os personagens principais. Mescla elementos
de pessimismo com algum otimismo, passando por ideais anacrônicos fundidos numa
realidade de devaneios que desembocam em pesadelos, pela narrativa, às vezes,
direta ao espectador por um salva-vidas que escreve roteiros para teatro nas
horas vagas, quando não está na guarita.
Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra
uma retomada do inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela
que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo
ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do
martírio de sua vida sem graça. Porém, Roda
Gigante, assim como a realização anterior, se aproxima das melhores obras do velho mestre que centra seu
foco no cenário da frustrada atriz Ginny (Kate Winslet), que trabalha como
garçonete e é casada com um operador de carrossel, Humpty (Jim Belushi), que
trabalha em um parque nas cercanias. Ela conhece Mickey (Justin Timberlake), o guarda-vidas
intelectualizado, que lê e escreve nos momentos de folga, logo se apaixona por aquele
trabalhador que sonha em ser um poeta e dramaturgo reconhecido. Ele narra a
história como se fosse uma tragédia grega naquela ciranda de ilusões que começa
a estremecer e atinge o ápice, quando a filha do marido da personagem central, a
destrambelhada enteada Carolina (Juno Temple), uma moça de 25 anos, volta para
casa fugindo do esposo, um gângster perigoso da máfia que a persegue sem dar
trégua, e ela também irá cair de amores por Mickey.
Habilmente o cineasta forma um quadrilátero amoroso, outra
marca de Allen, sem que as duas mulheres percebam no início, mas os desejos
giram como a roda do parque e a verdade tomará contornos impiedosos e
dramáticos na essência dos vínculos amorosos diante da forte concorrência. Os
corações explodem de paixão, mas a protagonista que tem um romance secreto,
embora casada, que também já havia traído o baterista de uma banda, pai de seu
filho, um adolescente que não gosta de estudar e tem instintos de um incendiário
psicopata, percebe que a mãe apanha do padrasto. O painel de elementos
neuróticos e de fracassos do dia a dia irão formar motivos brutais para as
fantasias serem superadas pela sombria realidade da disfunção familiar. Uma
comédia dramática que reflete as esperanças e desilusões dos destinos cruzados que
irão ao poucos formatando o imbróglio de situações e enroscos que se apresentam
na urdida trama. Explora com sensibilidade os meandros da alma nesta
contribuição significativa para o cinema voltado para os acontecimentos rotineiros
do amor, da paixão desenfreada, os destroçamentos do ser humano e o pessimismo
com o mundo das pessoas amarguradas, pelo olhar profundo deste assumido realizador
bergmaniano. Ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes
reveladas, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do
significado existencialista.
Eis um mergulho de boa profundidade
nos relacionamentos despudorados, nas traições com método de sedução
convencional ou não. As relações interpessoais e os romances fracassados servem
de alicerce para explorar uma narrativa densa e presente como uma fórmula que
deu certo. Os personagens do cineasta muitas vezes são reescritos, às vezes com
razoáveis resultados e em outros se superam. Mais uma vez parte dos desajustes do
amor e da paixão para ingressar na melancólica solidão existencial do amargo
romance, como no magnífico desfecho teatral protagonizado por Ginny e Humpty (com
soberba atuação de Kate Winslet, em uma de suas melhores interpretações da sua
carreira, já ganhou o Oscar por O Leitor,
e poderá levar novamente como melhor atriz, juntando-se a Diane Keaton, Dianne
Wiest, Mira Sorvino, Penélope Cruz e Cate Blanchett, todas ganhadoras da
estatueta pela direção de Allen) traídos pelo destino e por caprichos
circunstanciais que só o coração direciona e comanda o caminho da agridoce
desilusão. Tudo isso regado com apreciável sutileza e a analogia pertinente nas
colocações para armadilhas lançadas com primazia no enredo, como típicas características
do realizador.
Roda Gigante é
deslumbrante visualmente pelas cores fortes marcantes mostrando um cenário típico
romantizado pela fabulosa fotografia assinada do veterano fotógrafo italiano Vittorio
Storaro, três vezes vencedor do Oscar, com O
Último Imperador, Apocalypse Now
e Reds, já havia feito parceria com
Allen em Café Society. É quase uma fábula sobre pessoas
humildes sonhadoras e a impossibilidade da felicidade desfeita pelas
circunstâncias periféricas que rondam os destinos marcados, com diálogos
primorosos nos encontros e desencontros. Há uma harmonia paradoxal na essência
da existência, mas principalmente na felicidade rompida do sonho pela realidade
traiçoeira do destino. É difícil apontar, ou achar, algum defeito deste octogenário
cineasta cerebral que constrói mais um filme revelador, através de planos
longos com aproximações e afastamentos da câmera no ponto certo, por meio da leveza
e da suavidade da bela trilha sonora do recorrente jazz para os personagens
inquietos pelas andanças e desatinos da vida.
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