sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Roda Gigante


As Escolhas

No apagar das luzes de 2017, surge Woody Allen na sua trajetória de comédias de costumes dramáticas, mantendo-se fiel no sarcasmo e na sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa filmografia, por ser um dos melhores cineastas em atividade no mundo. Roda Gigante é o 49º. longa-metragem do diretor e roteirista que nos remete para a lenda do vinho: “Quanto mais velho é melhor”. Assim como nos filmes anteriores, Café Society (2016) e Homem Irracional (2015), também não atua, mas mantém o vigor e a capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do cotidiano e a análise dele mesmo através desta fascinante história de amores e desamores que é contextualizada no verão dos anos de 1950, num parque de diversões à beira-mar, em Coney Island, praia do bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, sobre uma barraca de tiro ao alvo com vista para uma enorme roda-gigante, onde moram os personagens principais. Mescla elementos de pessimismo com algum otimismo, passando por ideais anacrônicos fundidos numa realidade de devaneios que desembocam em pesadelos, pela narrativa, às vezes, direta ao espectador por um salva-vidas que escreve roteiros para teatro nas horas vagas, quando não está na guarita.

Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma retomada do inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do martírio de sua vida sem graça. Porém, Roda Gigante, assim como a realização anterior, se aproxima das melhores obras do velho mestre que centra seu foco no cenário da frustrada atriz Ginny (Kate Winslet), que trabalha como garçonete e é casada com um operador de carrossel, Humpty (Jim Belushi), que trabalha em um parque nas cercanias. Ela conhece Mickey (Justin Timberlake), o guarda-vidas intelectualizado, que lê e escreve nos momentos de folga, logo se apaixona por aquele trabalhador que sonha em ser um poeta e dramaturgo reconhecido. Ele narra a história como se fosse uma tragédia grega naquela ciranda de ilusões que começa a estremecer e atinge o ápice, quando a filha do marido da personagem central, a destrambelhada enteada Carolina (Juno Temple), uma moça de 25 anos, volta para casa fugindo do esposo, um gângster perigoso da máfia que a persegue sem dar trégua, e ela também irá cair de amores por Mickey.

Habilmente o cineasta forma um quadrilátero amoroso, outra marca de Allen, sem que as duas mulheres percebam no início, mas os desejos giram como a roda do parque e a verdade tomará contornos impiedosos e dramáticos na essência dos vínculos amorosos diante da forte concorrência. Os corações explodem de paixão, mas a protagonista que tem um romance secreto, embora casada, que também já havia traído o baterista de uma banda, pai de seu filho, um adolescente que não gosta de estudar e tem instintos de um incendiário psicopata, percebe que a mãe apanha do padrasto. O painel de elementos neuróticos e de fracassos do dia a dia irão formar motivos brutais para as fantasias serem superadas pela sombria realidade da disfunção familiar. Uma comédia dramática que reflete as esperanças e desilusões dos destinos cruzados que irão ao poucos formatando o imbróglio de situações e enroscos que se apresentam na urdida trama. Explora com sensibilidade os meandros da alma nesta contribuição significativa para o cinema voltado para os acontecimentos rotineiros do amor, da paixão desenfreada, os destroçamentos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas, pelo olhar profundo deste assumido realizador bergmaniano. Ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes reveladas, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do significado existencialista.

Eis um mergulho de boa profundidade nos relacionamentos despudorados, nas traições com método de sedução convencional ou não. As relações interpessoais e os romances fracassados servem de alicerce para explorar uma narrativa densa e presente como uma fórmula que deu certo. Os personagens do cineasta muitas vezes são reescritos, às vezes com razoáveis resultados e em outros se superam. Mais uma vez parte dos desajustes do amor e da paixão para ingressar na melancólica solidão existencial do amargo romance, como no magnífico desfecho teatral protagonizado por Ginny e Humpty (com soberba atuação de Kate Winslet, em uma de suas melhores interpretações da sua carreira, já ganhou o Oscar por O Leitor, e poderá levar novamente como melhor atriz, juntando-se a Diane Keaton, Dianne Wiest, Mira Sorvino, Penélope Cruz e Cate Blanchett, todas ganhadoras da estatueta pela direção de Allen) traídos pelo destino e por caprichos circunstanciais que só o coração direciona e comanda o caminho da agridoce desilusão. Tudo isso regado com apreciável sutileza e a analogia pertinente nas colocações para armadilhas lançadas com primazia no enredo, como típicas características do realizador.

Roda Gigante é deslumbrante visualmente pelas cores fortes marcantes mostrando um cenário típico romantizado pela fabulosa fotografia assinada do veterano fotógrafo italiano Vittorio Storaro, três vezes vencedor do Oscar, com O Último Imperador, Apocalypse Now e Reds, já havia feito parceria com Allen em Café Society. É quase uma fábula sobre pessoas humildes sonhadoras e a impossibilidade da felicidade desfeita pelas circunstâncias periféricas que rondam os destinos marcados, com diálogos primorosos nos encontros e desencontros. Há uma harmonia paradoxal na essência da existência, mas principalmente na felicidade rompida do sonho pela realidade traiçoeira do destino. É difícil apontar, ou achar, algum defeito deste octogenário cineasta cerebral que constrói mais um filme revelador, através de planos longos com aproximações e afastamentos da câmera no ponto certo, por meio da leveza e da suavidade da bela trilha sonora do recorrente jazz para os personagens inquietos pelas andanças e desatinos da vida.

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