Novamente a cineasta Margarethe Von Trotta faz parceria com
a excelente atriz Barbara Sukowa no seu último longa-metragem Hannah Arendt, coprodução da Alemanha
com a França. Em 1986, Barbara interpretou Rosa
de Luxemburgo, de Margarethe e dividiu a estatueta de melhor atriz em
Cannes com a brasileira Fernanda Torres. Sua carreira decolou com o genial
diretor alemão Rainer Werner Fassbinder em Berlin
Alexanderplatz (1980) e Lola
(1981). Está impecável e atua magistralmente no papel da filósofa judia-alemã
cinebiografada (1906-1975). Dá vida e emoção no desenrolar do filme, mostra-se
madura e de um potencial inato de interpretação exuberante, como poucas vezes
visto no cinema e arrasa. Há algumas expressões faciais, além do sorriso tímido
que lembram Marieta Severo.
A narrativa foge do linear e vai traçando um painel
diversificado da protagonista, com flasbacks
do passado e sua relação amorosa com o festejado filósofo Heidegger, seu grande
mestre de influência acadêmica, intercalando no aparente casamento sólido com o
crítico Heinrich Blutcher (Alex Milberg), dando uma dimensão natural e singular.
Hannah é uma mulher feminista para a época, sempre com um cigarro na boca, embora
refutasse esta definição, assim como renegava ser chamada de filósofa. A
trajetória de escritora se desenvolveu rápido por frequentar ambientes de
intelectuais renomados. É imperioso destacar que o sionismo sempre esteve presente
em suas obras literárias e ao escrever artigos para a revista norte-americana
The New Yorker, pois fora contratada para cobrir o julgamento do carrasco
nazista Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela morte de seis milhões de
judeus nos campos de concentração, que foram reunidos no polêmico livro Eichmann em Jerusalém, em 1963.
Consagrou-se com a expressão “a banalidade do mal” e publicou ainda As Origens do Totalitarismo, publicado
em 1951, mas foi acusada ainda assim de antissemita, embora tenha no passado se
exilado na França, com fuga para os EUA em 1941, para se livrar da fúria do
nazismo.
A cinebiografia com uma dramaticidade em alto estilo retrata
a controversa polemizada pela publicação dos artigos nos EUA, ao escrever que
nem todos os criminosos de guerra eram os monstros que se faziam crer e que
Eichmann não era nenhum Mefisto, em referência ao famoso romance Fausto de Goethe, afirmando que o
julgamento em Jerusalém era de fachada e não passava de uma farsa. Causou
grande celeuma, com cartas sendo enviadas para sua residência e para a revista
com protestos de ira e ódio, inclusive ameaças de morte.
Hannah foi marcante como pensadora no século XX, por ter
ideias corajosas, avançando na discussão pela reflexão sobre “pensar”,
invocando Platão e Sócrates para defender sua tese, onde afirma que o homem que
se submete a cumprir ordens superiores para executar crimes contra a
humanidade, deixa de ser racional e age mecânica e instintivamente sem ser
adepto da maldade. Além de Heidegger, teve influência na carreira o mentor
sionista alemão Kurt Blumenfeld (Michael Degen), com quem discute num café em
Jerusalém, sobre os rumos do julgamento imparcial do acusado em Israel, que
fora sequestrado em Buenos Aires. Há fidelidade na trajetória contada pelos
pensamentos liberais, porque embora não postulasse inocência do executor por
não saber o que estava fazendo, aprovou a condenação na forca pelo ato da
consumação. Sua teoria direcionava para a política de assassinatos em massa e
que o algoz apenas cumpria ordens superiores, tendo em vista que o fato de já
ser uma besta humana o impedia de pensar.
Hannah Arendt é um
filme sobre a intolerância para com o raciocínio da escritora que ama as
pessoas e não os povos, como afirma numa cena. A diretora deixa fluir as
fragilidades da protagonista, como do mal desafiando o pensamento do bem, ou a
burocracia se sobrepondo ao livre modo de expressão de uma intelectual. São
colocadas questões como as contradições do mestre Heidegger aderindo ao
nazismo, embora a independência das ideias Hannah seja execrada pelos incautos,
sofre uma campanha urdida por incomodar na teimosia de posicicionar-se
livremente, utilizando seu sarcasmo e frieza para desmontar o estatuto moral
das vítimas, diante da mediocridade do revanchismo sem freios e por mencionar a
culpa indireta em falsos líderes judeus no genocídio.
Um filme polêmico e ao mesmo tempo instigante pela forma e o
conteúdo em desbravar um universo de mentiras e calúnias, por isso uma
extraordinária obra para ser vista e discutida, ao retirar os véus da
linearidade e abordar com pluralismo de opiniões, sem cometer excessos ou
devaneios inconsequentes de uma mulher fascinante, de bom gosto literário,
senso crítico apurado, determinada e que nunca se submete aos caprichos dos que
pretendem lhe tirar alguma vantagem. Contundente nas recordações sobre os desdobramentos
da vida, seus ensinamentos reflexivos e as emoções existenciais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário