sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Um Conto Chinês



Solidariedade Entre Solitários

Já está se tornando rotina dizer que o cinema da Argentina tem uma característica muito peculiar nas suas abordagens sutis e sensíveis nos temas discutidos, embora muitas vezes o cenário fique em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e a sua eficácia numa temática aparentemente simples, mas sempre de uma boa reflexão como meta a ser atingida. Diretores como Carlos Sorín com Histórias Mínimas (2002), O Cachorro (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel coma obra-prima O Pântano (2001), Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka, (2002); Mariano Cohn e Gastón Duprat com O Homem ao Lado (2009), e outros tantos que se podem dizer como cineastas comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida, muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares, é que faz a diferença essencial da escola argentina.

Vem do país vizinho esta bela comédia de costumes Um Conto Chinês, conduzido com elegância e sutileza por Sebastián Borensztein, em seu terceiro longa-metragem. Dirigira antes sem bons retrospectos La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010). Este é um filme com uma temática aparentemente simplezinha, mas enganosa no aprofundamento da mesma; faz lembrar um bom blockbuster, mas não é e está longe de ser, embora tenha levado na Argentina mais de um milhão de espectadores.

A trama traz Jun (Ignácio Huang) que perde a noiva morta por uma vaca que cai na sua cabeça, dentro de um barco num bucólico rio na China, no exato momento do noivado, antes mesmo de colocar as alianças, numa cena tragicômica. Aparece por acaso na vida de Roberto (Ricardo Darín- numa atuação monumental deste ator que é uma instituição patrimonial de seu país), um veterano da Guerra das Malvinas, que vive do comércio de ferragens em Buenos Aires, um tipo estranho que conta todos os parafusos nas caixas ao receber do fornecedor e briga com eles pela falta de produtos exatos. Sujeito extremamente metódico, pois apaga a luz no rádio-relógio minuciosamente sempre às 23h, recorta notícias bizarras dos jornais de todo o mundo e não é cortês com os clientes.

O personagem Roberto é um bronco e ranzinza por natureza, rude e austero, vive enclausurado como um eremita, sofre o assédio amoroso da encantadora Mari (Muriel Santa Ana), mas sempre despista a moça com evasivas, mas leva flores no túmulo dos pais no cemitério e cultua a imagem da mãe em casa com presentes nos aniversários. Há muitas semelhanças com o personagem Victor (Daniel Aráoz), no filme O Homem ao Lado, que também era um homem abrutalhado, de voz poderosa, só que este era metido a conquistador barato, por ser um colecionador de armas tinha um tom assustador, porém generoso e de bom coração e solidário, como se evidencia na cena final. Roberto mostra sua solidariedade e seu lado afetuoso com Jun, ao acolhê-lo em sua casa e buscar uma solução para seu caso na Embaixada, pois este procura um tio na Argentina, não tem parentes, está sem dinheiro e sua vida é complicada.

Tem uma reflexão magnífica sobre a incomunicabilidade de dois seres, sendo que um fala espanhol e o outro mandarim, comunicando-se por sinais e gestos, onde as relações numa sociedade civilizada hoje cobram que cada indivíduo fale no mínimo dois idiomas. O paradoxo harmônico das comunicações interrompidas estão em conflito e os valores são dados às vidas e as amizades, exautando-se com brilhantismo a ética e a solidariedade.

A película ainda mostra a burocracia na polícia, na cena em que os dois tentam resolver o impasse da melhor forma possível, a perseguição do policial e a agressão violenta como visto nos filmes O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella e em Abutres (2010), de Pablo Trapero, onde a corrupção e os desatinos da justiça andam de mãos dadas, em uma brutal agressão aos direitos humanos.

Borensztein não perdoa o recente passado de seu povo, como a Guerra das Malvinas, faz alusão da vaca em queda livre com o discurso de um dirigente russo- já nos créditos finais- com um fato pitoresco igual, que poderia ser a verdadeira causa do absurdo que torna-se real nas batalhas sangrentas entre os homens; do inverossímil de Kafka para a realidade que bate à porta de Roberto, vindo do Oriente para o Ocidente.

A magia que prevalece e dita Um Conto Chinês é a sutileza e os rumos que são destinados aos personagens. Descarta as muitas obviedades e tempera o gelo do relacionamento dos dois homens com a doçura de Mari, tornando palatável e deliciosa esta comédia exemplar de costumes e críticas sempre bem fundamentadas, numa prazerosa reflexão sobre os desiguais e incomunicáveis seres humanos solitários que buscam seus destinos e encontram seus vínculos familiares.

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