terça-feira, 28 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Melhor Enlouquecer na Natureza)

 


Os Gêmeos

Com procedência da República Tcheca em coprodução com a Eslováquia, Melhor Enlouquecer na Natureza é um dos bons filmes apresentados nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Baseado no livro homônimo de Aleš Palán, que inclui várias histórias sobre os eremitas de Sumava, na região de montanhas, em um parque nacional localizado no sudoeste da República Tcheca, na fronteira com a Alemanha e a Áustria. Nascido em Ladce, atual Eslováquia, em 1983, o diretor eslovaco Miro Remo também assina o roteiro em parceria com o autor do romance. Estudou na Academia de Cinema da Bratislava, e seu filme de conclusão de curso, Arsy- Versy (2009), premiado no Festival de Sheffield. Entre seus outros longas estão Comeback (2014), Richard Müller: Nespoznany (2016) e At Full Throttle (2021). Em entrevista à Variety, o cineasta afirmou: “Passamos 60 dias com os irmãos ao longo de cinco anos, e comecei a sentir que os animais deles também estavam se comunicando conosco. A maior vantagem era que tudo era possível naquele projeto. Só precisávamos superar nosso medo de convenções”. Foi vencedor do Globo de Cristal de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary.

O enredo tem seu foco total nos irmãos gêmeos Franta e Ondra (interpretado também pelos gêmeos František Klišík e Ondřej Klišík). Os protagonistas são dois eremitas inseparáveis que vivem completamente afastados da civilização naquelas montanhas com suas fantasias e idiossincrasias. Eles estão mergulhados na imersão da natureza, enfrentando a tensão entre o anseio por aventura e a necessidade de segurança. A rotina pacífica e harmoniosa que dividem começa a sofrer abalos quando as diferenças entre eles se tornam evidentes: enquanto Franta anseia por liberdade e aventura, Ondra se agarra à segurança das coisas que não mudam. Essa dupla existência se parte como um espelho, diante das vontades distintas. Há uma dinâmica como uma simbiose entre os dois que compartilham uma vida pacífica na natureza, mas cujas vontades distintas começam a causar pequenos conflitos. No silêncio da paisagem que os rodeiam, se desenha um delicado drama de separação, reconciliação e reencontro. Uma fábula humana adulta de devaneios sobre o que permanece quando os laços que unem começam a fraquejar.

Um painel excêntrico e afetuoso dessa convivência fora da realidade do mundo daqueles personagens barbudos, ásperos e quase míticos envelhecendo juntos. Ora nus no meio do mato, ou discutindo sobre a morte e a própria existência. Eles estão rodeados de vacas, cães, galinhas e árvores. Sonham e discutem filosofia de vida, brigando, bebendo e rindo como se o tempo tivesse parado. O realizador mescla o real e a poesia com um humor sarcástico oriundo da convivência entre algumas cenas com delicadeza e o grotesco. Uma vaca narra algumas cenas, lambe a vasta barba em clima afetuoso, deixando fluir um tom mágico com situações irônicas ao fazer menções contundentes sobre os seus tutores, até que um touro bravo chamado de Tolstói investe contra um dos irmãos, tendo como consequência a perda do antebraço. Há algum encanto na observação do dia a dia dos irmãos sem que haja um definitivo julgamento. Alterna momentos de silêncios contemplativos com risos de preocupação com o futuro. Ou seja, quem vai morrer primeiro e deixar aquela natureza com seus fascínios próprios, captada pelas lentes do diretor de fotografia Dušan Husár, que transforma a floresta em personagem, capturando a luz fria e seus reflexos pelo som dos pássaros, do vento que corta os diálogos entre eles e a iminência da solidão de quem ficar ali por último.

O filme segue uma temática semelhante ao islandês A Ovelha Negra (2015),dirigido por Grímur Hákonarson, que retratou de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores de ovinos. A iminente falência do sustento familiar faz uma reflexão literal do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto. Tanto o longa da Islândia como o da República Tcheca proporcionam uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida.

Melhor Enlouquecer na Natureza é bem atual ao mostrar em uma única cena fora do meio rural a premiação de um dos protagonistas recebendo a láurea pela liberdade e a luta dos povos. No discurso de agradecimento, o homenageado não perde tempo e alfineta com revolta os arroubos autoritários de Vladimir Putin, visto como um novo Adolf Hitler contemporâneo, pela arrogância, pouca sensibilidade e virulência com os países vizinhos. Embora menor que Ovelha Negra, apresenta alguns equívocos de roteiro e edição sem invalidar a obra, tem como ponto alto os diálogos ásperos marcantes dos irmãos broncos, por vezes românticos e saudosistas na aldeia com seus aspectos poéticos contrapondo com a dureza da vida cotidiana. As brigas e provocações soam como combustível para se amarem e se beijarem como característica de gêmeos inseparáveis do instinto da natureza humana. Um não vive sem o outro, pois a solidão seria devastadora sem um deles, que filosofa: “A morte não existe, o que existe á e a vida”. Uma realização que marca pelos diálogos e a fotografia, sendo fundamental pelo sentido existencial do grande amor e ternura fraternal e a relação indissolúvel naquele lugarejo bucólico. Sobra afeto para uma energia humana diante da provável perda de uma das referências do vínculo familiar que se romperá, mas sempre permanecerá o sentimento de carinho entre os gêmeos.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Terra Perdida)

 

Os Irmãos

Vem do Japão em coprodução com a Malásia, a França e a Alemanha o filme Terra Perdida, um surpreendente drama social sobre a imigração nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com a fascinante fotografia de belas imagens captadas pelas lentes do competente fotógrafo Yoshio Kitagawa. Venceu o Prêmio especial do júri da seção Horizontes em Veneza. A direção e o roteiro são do japonês Akio Fujimoto, formado em cinema na Visual Arts Academy em Osaka, onde nasceu. Sua realização mescla ficção e documentário com uma abordagem humanista ao retratar dois irmãos menores que viveram em um campo de refugiados e acabam entrando numa jornada rumo à Malásia na esperança de se reunirem à família. Frequentemente, o diretor trata da vida de pessoas que vivem à margem da sociedade. Tem em sua filmografia os longas-metragens Passage of Lif (2017), vencedor dos prêmios de melhor filme e direção na seção Asian Future do Festival de Tóquio, e Along the Sea (2020), apresentado no Festival de San Sebastián.

A trama gira em torno de Somira (Shomira Rias Uddin Muhammad), a irmã astuta de 9 anos e Shafi (Muhammad Shofik Rias Uddin), o simpático irmão de 4 anos. Depois de viverem em um campo de refugiados em Bangladesh, os inseparáveis irmãos são colocados num barco pela própria mãe rumo à Malásia com um grupo de outros refugiados rohingya, A crise deles é humanitária que começou com a intensificação da violência contra a minoria rohingya no pequeno país Mianmar em agosto de 2017, forçando mais de 750.000 pessoas a fugirem para Bangladesh. Na esperança de se reunirem com sua família, os manos passam dias intermináveis em um barco de contrabandistas superlotado, até que um incidente no mar os deixam sozinhos e perdidos na Tailândia. Mas existe alguma bondade em pessoas com o mesmo foco que encontram aleatoriamente pelo caminho, aliada aos seus espíritos resilientes, mostram que não estão sozinhos no mundo e a distância de casa pouco importa. O sonho de encontrar os parentes biológicos é mais forte, tendo em vista que foram separados pelas dificuldades por onde andaram. No entanto, jamais poderiam imaginar que o trajeto seria altamente perigoso pelas circunstâncias alheias.

O realizador em sua narrativa dramática retrata, de forma sutil e sensível, sem usar recursos de clichês recorrentes em realizadores incompetentes, mostra cenas dos imigrantes à procura de um lugar melhor para se estabelecerem, sem as apelações usuais. Conta a história das crianças e seus parceiros de ocasião que vira uma verdadeira epopeia entristecedora, como o confronto com a polícia costeira tailandesa; a tempestade em alto-mar que dizimou vários refugiados, entre eles, o rapaz sonhador que queria ser dono de uma escola e o jovem que desejava ser professor. As amarguras e contratempos são confrontadas com a esperança de uma solução pragmática em uma sociedade doente em ruínas. Fujimoto aproxima a câmera nos rostos dos personagens para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias que brotam e se espalham pelos olhares, como dos imigrantes dentro do atulhado barco quase à deriva em busca da liberdade e de um horizonte tênue. As crianças correm e se divertem ingenuamente numa comunidade logo após o acidente com a embarcação, logo se integram a um novo grupo que também procura o retorno para a Malásia. A cobrança de valores exagerados de agentes mesquinhos misturados a facções inescrupulosas sem pudor, sendo mal recebidos e extorquidos, fazem vítimas com alguns sendo executados como exemplo.

Tudo anda em compasso de espera até a abrupta separação dos irmãos pela brutalidade objetiva com ingredientes de um realismo cruel. O novo lar do menininho não o consola e seus sonhos com a irmã são reveladores para um destino de procura incessante da desaparecida. A dor, a lembrança e a esperança andam juntas, porque nada substitui o afeto e o vínculo rompido pela separação involuntária. Um relato triste e realista de uma situação da pobreza extrema na busca de novas perspectivas, que remete para o espetacular longa italiano Eu, Capitão (2023), do badalado cineasta Matteo Garrone. A similitude é muito próxima pela temática da desagregação familiar diante da separação pela imigração ao especular um mundo melhor. A crença religiosa em Alá, o Deus muçulmano em que acreditam para exprimir os sentimentos de confiança, alegria e vitória, no qual é venerado, intuindo que este nunca os abandonarão. Serve como um puro combustível potente para seguir a saga da fé e da resistência nesta luta dolorosa de pouca perspectiva. Enfrentam uma série de desafios para testar a própria dignidade humana nesta arriscada empreitada. Nada porá fim na esperança até a tragédia chegar com uma força devastadora e jogar em cada espectador, para sair da zona de conforto, a dura realidade da insensatez. Os caminhos são tortuosos e de muita hostilidade parar encontrar as fantasias de um futuro edificante de ilusões, apenas.

O contexto narrativo é fundamental para criar um clímax de medo da contumaz miséria e do terror psicológico pela barbárie das facções encontradas como entraves pelo caminho, torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os irmãos e a plateia se chocam com as circunstâncias adversas. Embora surpreendidos no epílogo como elementos distorcidos do resgate da dignidade ultrajada pela humilhação. Uma realização com amplitude maior na abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre as perdas acumuladas. Os elementos opressores obscuros são retratados pela realidade selvagem das dificuldades impostas como a corrupção, a violência e a solidão. Terra Perdida é um drama magnífico com um desfecho nada alentador, aflorando o pessimismo. Ainda que haja ausência total do gênero melodrama apelativo no enredo ao escapar das armadilhas do maniqueísmo, fica difícil segurar a lágrima que escorre pelo rosto. Uma história com subsídios fortes na sua essência, que revela diversos aspectos sobre os seres humanos que decidem sair da pobreza diante do caos para seguir em frente. Serve como reflexão sobre as irracionalidades bestiais neste painel arrebatador pela sobrevivência.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (The President's Cake)

 

Regime Opressivo

Digno e fortíssimo representante do Iraque no Oscar do próximo ano, coproduzido com os EUA e o Catar, The President's Cake, traduzido do inglês para O Bolo do Presidente, com direção e roteiro de Hasan Hadi em seu primeiro longa-metragem, que cresceu no sul do país durante a guerra e, ao longo dos anos, trabalhou com jornalismo e produção. Provavelmente o melhor filme desta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Uma fábula moderna adulta mesclada com drama social sobre uma criança encarregada de fazer um bolo em homenagem ao aniversário do ditador Saddam Hussein numa celebração com uma festa cívica obrigatória. Despertou reações entusiastas no Festival de Cannes, tendo vencido o Caméra d’Or, prêmio de melhor filme de estreia, e do prêmio do público da Quinzena dos Cineastas. O cinema iraquiano é, sobretudo, associado a nomes como Abbas Fahdel com Retour à Babylone (2002) e Homeland - Iraq Year Zero (2015); Mohamed Al-Daradji, premiado em Berlim com Filho da Babilónia, (2009); e Mohamed Shukri Jameel conhecido por King Ghazi of Iraq (1993).

O longa foi ambientado nos anos 1990, em meio à guerra e uma gigantesca falta de comida, sob o regime totalitário de Saddam. Conta a triste e instigante história de Lamia (Banin Ahmad Nayef em uma antológica atual infantil), uma menina de nove anos que tenta escapar da tarefa, mas acaba sendo escolhida para fazer um agrado ao déspota na comemoração de sua passagem de ano, determinada por ele mesmo para que todas as escolas do país fizessem um bolo em sua homenagem. Com poucos recursos e medo de ser punida, embarca em uma jornada culinária em uma cidade próxima de seu povoado na busca de ingredientes como ovos, farinha de trigo, fermento e açúcar. A protagonista está sempre acompanhada da severa avó (Waheed Thabet Khreibat), do colega de sala de aula Saeed (Sajad Mohamad Qasem), e um galo vermelho de estimação como fiel escudeiro, cobiçado por todos os aviários da região. O filme constrói um magnífico painel de opressão e subserviência interna pelo regime autoritário; e externa, pelas bombas que caem ao redor oriundas do ataque na guerra contra os Estados Unidos da América.

O cineasta mostra sem concessões uma sociedade que está numa angustiante miséria na qual tudo gira em torno do todo poderoso governante. As fotos e os porters do tirano estão espalhadas por todos os lados e ninguém ousa contrariá-lo, sob pena de ser eliminado ou sofrer torturas nos porões. O diretor do colégio segue à risca os dogmas e orientações do governo ditatorial ao realizar um sorteio duvidoso com tintas de simulação entre os alunos. Um deles é o menino Saeed em que o pai foi torturado, tendo que trazer frutas frescas. A menininha terá que fazer um bolo saboroso e bem feito. Os sorteados são avisados duramente de que seus familiares serão castigados exemplarmente caso não cumpram as regras do jogo. A saga de Lamia vira um verdadeiro inferno dantesco, mesmo que acompanhada do coleguinha e da avó, da qual foge ao ser oferecida como objeto para uma mulher suspeita de prostituição. Durante o calvário, a idosa fica doente e vai parar num posto de saúde imundo e sem recursos. Enquanto isto, os dois menores cometem pequenos furtos para tentar obter os ingredientes e as frutas.

A peregrinação intensa é chocante e de puro realismo para o casal pré-adolescente oriundos de uma aldeia pobre em que o único meio de transporte é o barco. Eles andam pelas ruas da cidade interiorana, sofrem tentativas de abusos, são trapaceados por golpistas que querem sempre um algo mais. Um painel vigoroso e sórdido de uma sociedade machista composta por homens sem escrúpulos que não respeitam minimamente as mulheres. Pululam personagens horrendos, como o tarado que abusa de uma grávida prestes a entrar em trabalho de parto; um pedófilo que usa artifícios ignóbeis para manipular a personagem central com o objetivo de estuprá-la no cinema. Alega que tem o seu galo de estimação, animal que interage com Lamia e lhe dá sinais de respostas de situações complicadas e inusitadas. No desfile cívico, percebe-se os meninos militarizados nas suas vestimentas, saudando e gritando histericamente cantos de regozijos com frases e slogans para mobilizar e expressar na defesa do sinistro presidente.

The President's Cake é um filme singular que retrata com fidelidade as mazelas da saúde e suas deficiências crônicas e estruturais, além da fome, da miséria e da falta de infraestrutura no saneamento básico de esgoto e água potável. Não bastassem os problemas internos, há os constantes bombardeios, inclusive as escolas com alunos como alvos, oriundos dos aviões sobrevoando dos norte-americanos. Eis uma fábula extraordinária retratando com muita veemência as atrocidades com crueza, embora haja um humor contido para aliviar a tensão, fica plasmada a caótica situação de um povo desprotegido devido à crise institucional do país. Um retrato cruel de uma coletividade humilhada e faminta, mas ainda assim luta com suas forças que saem do fundo da alma de um população resiliente, representada metaforicamente pelas duas crianças em suas andanças para sobreviverem. Um marcante libelo histórico contemporâneo, significativo e relevante por seus aspectos, de um regime totalitário.

Um grito contra a opressão pela beleza da arte cinematográfica inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre como se expressar numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, e de um sistema ultrapassado e sem um mínimo de liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder alegórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas, usando sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força dos personagens oprimidos sem terem o direito de contestar nesta desassombrada obra contra o despotismo. Remete como similitude para o inesquecível drama Os Incompreendidos (1959), do mestre francês François Truffaut. Importante destacar a monumental melódica trilha sonora rítmica, sem ser invasiva, que ecoa num tom melancólico, e se alinha com a primorosa fotografia de Tudor Vladimir Panduru, sem glamourização, dando o equilíbrio exato nesta trama bem urdida. A montagem, a edição, o enquadramento, o roteiro, a direção e todo o elenco são impecáveis. Por todo o conjunto estrutural da realização, com simplicidade e notável profundidade de realismo, uma legítima obra-prima.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Vida de Fantasia)

 

Relação Improvável

Vem dos EUA a agradável surpresa nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo, a boa e sensível comédia dramática familiar intimista Vida de Fantasia sobre ética médica, os amores, ciúmes, como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente preponderante no tema e subtema desta obra norte-americana. Vencedor do prêmio especial do júri de melhor interpretação para a bela e talentosa atriz Amanda Peet, e do prêmio do público de melhor longa-metragem de ficção no Festival South by Southwest, também chamado de SXSW, um conjunto de festivais de cinema, mídia interativa, música e tecnologia realizado anualmente no mês de março em Austin, Texas, nos Estados Unidos. Após atuar em diversos longas, o ator nova-iorquino Matthew Shear, de 41 anos, faz sua estreia na direção, além de assinar o roteiro. Conhecido por atuar em filmes como Mistress America (2015) e Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (2017), ambos de Noah Baumbach, The Boy Downstairs (2017), de Sophie Brooks, Tempo (2021), de M. Night Shyamalan, e Entre os Templos (2024), de Nathan Silver.

O enredo aborda uma família judia com seus problemas inerentes em Nova Iorque, no característico estilo das comédias românticas neurotizantes de Woody Allen, no qual o cineasta se mostra como um bom discípulo. Um veterano psiquiatra trata de um jovem advogado tributarista, Sam Stein (Matthew Shear), que acaba de perder o emprego e tem crises de ataque de pânico. Acaba conseguindo provisoriamente um trabalho como babá das três netas de seu médico. O realizador astutamente coloca a mãe das meninas, Dianne (Amanda Peet), uma atriz que começa a envelhecer para os padrões de Hollywood e vê sua carreira estagnar pelo etarismo. Ela passa boa parte do tempo enclausurada no quarto com depressão profunda, sem ânimo para trabalhar e nenhuma libido para transar com o marido. Não bastassem os problemas profissionais, vive um casamento conturbado com David (Alessandro Nivola), um baixista de uma banda de rock que com suas turnês frequentes, algumas no exterior, acaba se afastando da família, especialmente da companheira. Embora previsível o affair, surge a química entre Dianne e Sam, diante da afinidade natural e a proximidade do ora cuidador de crianças com a empregadora, nora de seu terapeuta.

A realização foca com sutileza no histórico comum de transtornos mentais do jovem protagonista e suas recaídas e inclusive algumas patacoadas. Com o desenrolar da história, ele se junta à família da atriz em crise para cuidar das três garotinhas durante o verão em Martha’s Vineyard, indo morar na mesma casa na qual está a mulher por quem se apaixonou, com a presença do esposo, as crianças e os quatro avós- incluindo o próprio psiquiatra. A amizade que logo vira uma relação com algum vínculo mais profundo irá propiciar crises de ciúmes em David, um dos lados do triângulo, em um dos jantares de toda a família reunida, com consequências desastrosas que acarreta em um acidente grave fisicamente. O gatilho é acionado para o amor e para a vida ser levada com intensidade, eis o grande fator para os dois atormentados pelos problemas psicológicos de desânimo e insatisfação. As cutucadas na janta e a lavagem de roupa suja, como se fosse uma lavanderia, são fatores determinantes, bem como a ética médica do não envolvimento com paciente no microcosmo familiar.

O filme coloca como pano de fundo algumas alfinetadas de indignação com o governo Donald Trump e suas fanfarronices sofocantes. O antissemitismo é apresentado como um ingrediente corrosivo dentro da própria família judia como um questionamento interessante. Há boas tiradas de humor para intercalar com os momentos tensos e melancólicos até o desfecho pouco convencional, considerando as circunstâncias do que será melhor para todos, ainda que um politicamente correto típico de uma sociedade de aparências e hipócrita. A luz no fim do túnel é o indicativo primordial de que nunca é tarde para recomeçar e tentar de novo e sempre, como manda o tradicional manual de reconstrução. Mesmo que haja dissabores como elementos próprios de transformação. As inequívocas circunstâncias da alma e do coração com o amor, o ardor e a dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de beleza e tristeza como uma poesia. Dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa a ser amada.

O diretor disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor e da perda em toda sua extensão com os vínculos afetivos decorrentes. Vida de Fantasia reflete a solidão, o etarismo, a ética aranhada e a traição que estão presentes nos personagens envolvidos ao representar em seus papéis da vida no dia a dia e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã. Como uma simbologia da existência pelo rompimento, a reconciliação de um outro personagem mergulhado na incerteza, além das idas e vindas nas relações turbulentas. Há simplicidade com os romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao drama vivido. São as escolhas livres ou não e as consequências que os personagens irão assumir. A tentativa de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual, além do desconforto da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos tacanhos, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor. É boa a dose de emoção, neste aspecto estão presentes as grandes virtudes desta trama que deixa fluir os traços de uma realidade dolorida e prazerosa.