Relação Improvável
Vem dos EUA a agradável surpresa nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo, a boa e sensível comédia dramática familiar intimista Vida de Fantasia sobre ética médica, os amores, ciúmes, como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente preponderante no tema e subtema desta obra norte-americana. Vencedor do prêmio especial do júri de melhor interpretação para a bela e talentosa atriz Amanda Peet, e do prêmio do público de melhor longa-metragem de ficção no Festival South by Southwest, também chamado de SXSW, um conjunto de festivais de cinema, mídia interativa, música e tecnologia realizado anualmente no mês de março em Austin, Texas, nos Estados Unidos. Após atuar em diversos longas, o ator nova-iorquino Matthew Shear, de 41 anos, faz sua estreia na direção, além de assinar o roteiro. Conhecido por atuar em filmes como Mistress America (2015) e Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (2017), ambos de Noah Baumbach, The Boy Downstairs (2017), de Sophie Brooks, Tempo (2021), de M. Night Shyamalan, e Entre os Templos (2024), de Nathan Silver.
O enredo aborda uma família judia com seus problemas inerentes em Nova Iorque, no característico estilo das comédias românticas neurotizantes de Woody Allen, no qual o cineasta se mostra como um bom discípulo. Um veterano psiquiatra trata de um jovem advogado tributarista, Sam Stein (Matthew Shear), que acaba de perder o emprego e tem crises de ataque de pânico. Acaba conseguindo provisoriamente um trabalho como babá das três netas de seu médico terapeuta. O realizador astutamente coloca a mãe das meninas, Dianne (Amanda Peet), uma atriz que começa a envelhecer para os padrões de Hollywood e vê sua carreira estagnar pelo etarismo. Ela passa boa parte do tempo enclausurada no quarto com depressão profunda, sem ânimo para trabalhar e nenhuma libido para transar com o marido. Não bastassem os problemas profissionais, vive um casamento conturbado com David (Alessandro Nivola), um baixista de uma banda de rock que com suas turnês frequentes, algumas no exterior, acaba se afastando da família, especialmente da companheira. Embora previsível o affair, surge a química entre Dianne e Sam, diante da afinidade natural e a proximidade do ora cuidador de crianças com a empregadora, nora de seu profissional.
A realização foca com sutileza no histórico comum de transtornos mentais do jovem protagonista e suas recaídas e inclusive algumas patacoadas. Com o desenrolar da história, ele se junta à família da atriz em crise para cuidar das três garotinhas durante o verão em Martha’s Vineyard, indo morar na mesma casa na qual está a mulher por quem se apaixonou, com a presença do esposo, as crianças e os quatro avós- incluindo o próprio psiquiatra. A amizade que logo vira uma relação com algum vínculo mais profundo irá propiciar crises de ciúmes em David, um dos lados do triângulo, em um dos jantares de toda a família reunida, com consequências desastrosas que acarreta em um acidente grave fisicamente. O gatilho é acionado para o amor e para a vida ser levada com intensidade, eis o grande fator para os dois atormentados pelos problemas psicológicos de desânimo e insatisfação. As cutucadas na janta e a lavagem de roupa suja, como se fosse uma lavanderia, são fatores determinantes, bem como a ética médica do não envolvimento com paciente no microcosmo familiar.
O filme coloca como pano de fundo algumas alfinetadas de indignação com o governo Donald Trump e suas fanfarronices sofocantes. O antissemitismo é apresentado como um ingrediente corrosivo dentro da própria família judia como um questionamento interessante. Há boas tiradas de humor para intercalar com os momentos tensos e melancólicos até o desfecho pouco convencional, considerando as circunstâncias do que será melhor para todos, ainda que um politicamente correto típico de ma sociedade de aparências e hipócrita. A luz do fim do túnel é o indicativo primordial de que nunca é tarde para recomeçar e tentar de novo e sempre, como manda o tradicional manual de reconstrução. Mesmo que haja dissabores como elementos próprios de transformação. As inequívocas circunstâncias da alma e do coração com o amor, o ardor e a dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de beleza e tristeza como uma poesia. Dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa a ser amada.
O diretor disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor e da perda em toda sua extensão com os vínculos afetivos decorrentes. Vida de Fantasia reflete a solidão, o etarismo, a ética aranhada e a traição que estão presentes nos personagens envolvidos ao representar em seus papéis da vida no dia a dia e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã. Como uma simbologia da existência pelo rompimento, a reconciliação de um outro personagem mergulhado na incerteza, além das idas e vindas nas relações turbulentas. Há simplicidade com os romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao drama vivido. São as escolhas livres ou não e as consequências que os personagens irão assumir. A tentativa de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual, além do desconforto da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos tacanhos, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor. É boa a dose de emoção, neste aspecto estão presentes as grandes virtudes desta trama que deixa fluir os traços de uma realidade dolorida e prazerosa.