quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Zona de Interesse

 

Agonia do Holocausto

Não é nada convencional em suas narrativas o cineasta Jonathan Glazer, de 58 anos, nascido em Londres numa família judia. Assim foi no elogiado Sob a Pele (2013), uma ficção científica existencialista sobre uma alienígena que chega à Terra e começa a percorrer estradas desertas e paisagens vazias em busca de presas humanas. A principal arma é sua sexualidade voraz, mas descobre uma inesperada porção de humanidade em si mesma. O polêmico e impactante Zona de Interesse, quarto longa-metragem do diretor que também escreveu o roteiro, foi laureado no Festival de Cannes com o Prêmio do Júri, indicado ao Oscar em cinco categorias: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional - representa o Reino Unido-, Direção, Roteiro Adaptado e Som. É um drama histórico numa mescla com o gênero de guerra sobre o Holocausto que se passa durante a Segunda Guerra Mundial. Aborda o horror do nazismo, a partir de uma perspectiva singular e perturbadora, numa adaptação do romance homônimo de Martin Amis, de 2014, para contar a triste história de uma família alemã na Polônia, com efeitos assombrosos na humanidade. O cenário é reconstruído ao lado do hoje Museu de Auschwitz, com passagem em uma das chocantes cenas, embora a casa antiga ainda exista, o realizador preferiu ambientar numa réplica nas proximidades.

No prólogo e na parte final do longa, simbolicamente as cinzas das chaminés enfumaçam a telona que fica por alguns minutos sem brilho ou cor. A trama acompanha Rudolf Höss (Christian Friedel- impecável atuação), o comandante do campo de extermínio em Auschwitz, casado com Hedwig (Sandra Hüller- sóbria e convincente). Eles possuem cinco filhos menores, mais a sogra do militar que chega de repente. Parecem bem felizes, fazem piqueniques na beira do rio, pescam descontraidamente, desfrutando uma vida comum naquele lugar bucólico. Moram num lindo casarão com um jardim de belas flores cultivadas com delicadeza, embora uma delas, vermelha com seu esplendor ao se abrir sugira o sangue abundante. Há uma enorme piscina, o som dos pássaros se mistura no silêncio familiar e no cachorro amigão de todos. Mas, por trás da aparente fachada de tranquilidade que eles vivem, está o campo de concentração do outro lado muro, com suas câmaras de gás letais e chuveiros químicos. O cotidiano destes personagens se desenrola entre os gritos e sussurros abafados de desespero, tiros ao longe, sirenes disparadas, os uivos dos trens chegando com milhares de judeus para trabalhos forçados, experiências médicas horripilantes, fome, doenças como tifo, até serem mortos e cremados nos fornos. Um genocídio em curso, do qual, eles também são diretamente responsáveis, inclusive as mulheres, tanto do comandante como dos soldados alemães, sabiam dos horrores. Comentavam com regozijos sobre o diamante dentro do tubo da pasta dental, o casaco de pele pequeno e os dentes dentro de uma pasta, retirados dos corpos das vítimas.

Com muita elegância e a classe britânica peculiar, o realizador mostra as crueldades expostas para chocar com sutilezas numa imersão sensorial através daquela família nazista. O protagonista não tinha empatia com ninguém, exceto com seu cavalo de estimação que expressa amor; bem como se entusiasma em um projeto para aumentar a produtividade de um novo crematório. Demonstra traços de uma psicopatia amoral em seu delírio. O filho mais velho prende o irmão dentro da estufa de flores, como um bom aprendiz dos pais, numa referência evidente à filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX, Hannah Arend, e seu conceito notável sobre a “banalidade do mal”, ainda hoje polêmico e incompreendido. O drama segue uma linha próxima de O Filho de Saul (2015), com direção de László Nemes, que retratava de forma seca os porões ainda não vistos do Holocausto, focando um integrante de uma espécie de brigada de judeus encarregada de limpar as câmaras de gás e carbonizar os cadáveres. O visceral e controvertido filme teve como cenário o ano de 1944, nos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma solução adotada como prática abjeta pelo nazismo, em como resolver e limpar os milhares de mortos advindos dos extermínios em massa. Já no documentário média-metragem Noites e Neblina, do mestre Alain Renais (1956), o cineasta soube com incrível fidelidade relatar os acontecimentos macabros 10 anos após o fim do Holocausto. Méritos para Glazer que não se deixou levar pela espetacularização e banalização da temática como retratados em A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg e A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni.

Eis uma obra equilibrada ao mostrar o horror que estava impregnado nas entranhas do mal e o abuso de poder, em que as vítimas faziam parte da terrível paisagem propiciada por Adolf Hitler. A câmera mantém sempre distância no enquadramento para não glamourizar ou dar empatia aos bárbaros nazistas. O casal com diálogos mesquinhos sem que se sintam abalados ou afetados, passa perfeitamente essa desumanização pela total falta de empatia de seus personagens, mais preocupados com seus interesses particulares. Embrulha o estômago e causa náusea no espectador, mesmo que o filme não seja explícito. As sugestões sem imagens sensacionalistas soqueiam e levam à lona por nocaute com mais precisão do que uma cena grotesca sendo publicizada, como de Gillo Pontecorvo no longa Kapò (1959), em que uma prisioneira morre eletrocutada na cerca elétrica com o rosto retorcido sendo mostrado em detalhes nos closes. Glazer prefere sugerir pelo som extraordinário captado dos pequenos detalhes do cotidiano, no trabalho eficiente realizado por Johnnie Burn, através das câmeras espalhadas dentro da residência para o espectador vigiar e sentir as torturas psicológicas advindas de uma cruel bestialidade através de uma frieza fenomenal dos protagonistas. Em meio à tensão no que ocorre do lado de lá do muro, com as dificuldades do cotidiano hostil da morte rondando naquele ambiente sombrio e tétrico, imaginada pela plateia, o casal se diverte e faz planos para o futuro como se tudo fosse normal.

O diretor busca uma abordagem voltada para os efeitos da dignidade, da moral, da ética e da reflexão sobre as atrocidades cometidas. Dentro de um notável equilíbrio, através de uma história contada com uma leveza aterrorizante, embrutecida por um panorama deixado pelos gritos e sons emanados de possíveis vítimas ocultadas propositalmente pela lente. Evidente que há feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos doloridos, o que faz desta realização um registro forte, sem cair no maniqueísmo ou na mesmice de alguns filmes didáticos e pouco convenientes, com pessoas amontoadas dentro de trens rumo à morte. Um filme silencioso de imagens, diálogos e sons poderosos com força de grande expressividade. São rostos, gestos e olhares marcados pela distância intencional da câmera que levam à perplexidade até o desfecho simbólico das mortes massificadas pelo escabroso genocídio. Não há corpos em evidência, mas se acompanha os ruídos, mesclados com vozes longínquas oriundas dos campos de extermínio daquela travessia do inferno. O cineasta poupa o espectador do realismo macabro ao se posicionar por algumas regras éticas neste tema recorrente, foca em uma experiência sonora vinda dos campos de concentração, sem precisar mostrar nada. Zona de Interesse é impactante sobre todos os aspectos daquilo que ouvimos, mas ignorado pelos personagens. Um filme fabuloso neste alucinante mergulho de um passado brutal que tirou a vida de mais de seis milhões de pessoas.

Em tempo: Faltou informar nos créditos finais que Rudolf foi encontrado em maio de 1946, após ter seu paradeiro delatado pela esposa. Em 1947, ele foi julgado e enforcado em Auschwitz, perto da casa onde morou com a família. A esposa morreu dormindo aos 90 anos de idade nos Estados Unidos.

Nenhum comentário: