Cotidiano Enfadonho
Desde a morte do genial Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982), um dos maiores nomes da cinematografia da Alemanha, existem alternativas para tentar não deixar cair em decadência o cinema alemão. A esperança se renovou em muito a partir dos anos 2000 com o diretor e roteirista Christian Petzold, considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo de seu país, o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim, autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), passou por Phoenix (2014) e finalizou com Em Trânsito (2018); bem como surgiu a promissora Ângela Schnalec, realizadora de Marselha (2013) e Eu Estava em Casa, Mas (2021). Já o cineasta Wim Wenders tem dois momentos distintos em sua carreira. A primeira é voltada para dramas fortes e profundos no qual brilhou com a obra-prima Paris, Texas (1984), o inesquecível Asas do Desejo (1987) e o magnífico longa de ficção O Céu de Lisboa (1994). Fez documentários como o contagiante Buena Vista Social Club (1999) e a mini obra-prima Pina-3D (2011), voltado para o sensorial ao mostrar a leveza da alma e do espírito na arte clássica da dança.
Depois veio o segundo momento de Wenders, que apresenta um considerável declínio pela falta de inspiração e a contundência nas suas obras, com realizações menores a começar por Até o Fim do Mundo (1990), os constrangedores Medo e Obsessão (2004) e Estrela Solitária (2005), além dos descartáveis O Sal da Terra (2014), Tudo Vai Ficar Bem (2015) e Submersão (2017). O retorno parecia indicar que tivesse se recuperado com mais energia da fonte que o alimentava, para uma suposta redenção triunfal com Dias Perfeitos que, inexplicavelmente, representa o Japão no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo o excelente Koji Yakusho vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes em 2023. Ledo engano. Embora tenha sido um realizador mais voltado para as feridas sociais e as angústias derrotistas de seus personagens, em dramas memoráveis, parece que perdeu definitivamente a inquietação e o foco. O tema da solidão sempre merece muito estímulo, o que faltou flagrantemente em Wenders e seu parceiroTakayuki Takuma, ao escreverem um roteiro burocrático e repetitivo com cenas recorrentes, tendo uma montagem desleixada.
A trama acompanha a história de Hirayama (Yakusho- tenta carregar o filme pelo seu talento desperdiçado), um homem de meia-idade muito reflexivo que vive sua vida de forma modesta como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Sua rotina começa pela manhã ao abrir a janela e olhar o sol, fazer a barba, aparar o bigode, tomar café, apanhar as ferramentas e colocar no carro ou na bicicleta e se dirigir para o local de trabalho e realizar suas tarefas profissionais do dia a dia. Mora num modesto sobradinho em um arrabalde pobre, sem luxo, com uma cozinha-banheiro onde escova os dentes de manhã, tem uma escada estreita e uma luz neon rosa que ilumina o quarto no andar superior. Adora ler na salinha pequena onde guarda seus livros, que pode ser claustrofóbica ou aconchegante, depende do ponto de vista e da observação do espectador sobre a simplicidade no local exíguo. Seguidamente passa numa livraria e compra um novo exemplar. Tem um amor platônico pela dona de um bar nas redondezas, e por aí vai.
Uma rotina com algum encanto ao transitar pelos parques e praças para tirar fotografias, e frequentador contumaz de lanchonetes e lojas de discos. Estas cenas se repetem à exaustão, numa compulsão do diretor pela reiteração até cansar o espectador. A monotonia é a mola propulsora do drama, às vezes se salva, graças ao diretor de fotografia Franz Lustig, que busca por ângulos de câmera em novos horizontes para um olhar mais expressivo do dia a dia, através de imagens que retratam momentos silenciosos, mesmo com distância da emoção na abordagem da tristeza e da alegria do protagonista metódico. A aparição de uma sobrinha parece trazer um alento, mas logo tudo se dilui e se esfarela pelo surgimento da irmã do personagem central recheada de preconceitos, ainda que artificialmente, foi uma das raras cenas que trouxe equilíbrio e alguma lucidez do diretor. O passado sombrio ficou ali e não evoluiu, exceto os encontros inesperados com alguma sensibilidade.
Velvet Underground, Otis Redding e Lou Reed com o título da música Perfect Days, disco produzido por David Bowie e lançado em 1972, compõem a boa trilha sonora, com canções aprazíveis e sugestivas da internacionalização de Tóquio. Quase que uma ode sacral do cotidiano pelo repetitivo esforço de Hirayama em se manter vivo e aprender com situações novas diariamente, como do seu empregado apaixonado por quem lhe despreza; da mãe que perde a criança na praça; do surgimento do ex-marido da dona do bar, que pouco acrescenta e logo descamba para o melodrama apelativo junto às águas do rio. O longa transita por temas como a solidão, a rotina, e a fuga para o sentido na vida moderna. Mas quase nada funciona ou é abordado sem profundidade. Na oscilação entre ajustes e desajustes, constâncias e quebras, a narrativa se debruça na observação rasa da repetição, em que conflitos vêm e vão pela vida. Eis um paradoxo da previsibilidade da indignidade da rotina de revezes do protagonista em seu silêncio constante, mas que aprecia a paisagem e sua tranquilidade ao fazer seus passeios contemplativos para encontrar conexão com a vida e, quem sabe, acreditar em alguma coisa mais significativa, mesmo que resignado com a rotina. Caso o diretor não se entregasse à preguiça criativa e sonolenta, e o filme fosse melhor estruturado, poderia sair algo melhor nesta redundância da repetição.
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