sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Pobres Criaturas

 

Redenção Surrealista

Surgiu um movimento cinematográfico chamado O Novo Extremismo Francês, que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão com temáticas pesadas e com uma violência explícita e sangrenta como essência para desafiar o público e fazê-lo pensar sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês que teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje. É um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco e a bizarrice são a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis; Irreversível (2002) e Clímax (2018), ambos de Gaspar Noé; Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja; A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury; Mártires (2008), de Pascal Laugier; Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista. Realizou em meio a muitas polêmicas Titane (2021), para vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e abraçar definitivamente este novo movimento, em que não há delicadezas para expor.

O cineasta grego Yorgos Lanthimos tem em sua filmografia A Favorita (2018), indicado ao Oscar, O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e O Lagosta (2015). Retorna em Pobres Criaturas, com 11 indicações ao Oscar e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado, parece ter aderido definitivamente a este movimento com fundamentos nos estereótipos. Baseado no livro de Alasdair Gray, adaptado pelo roteirista Tony McNamara, tanto o livro como o filme são inspirados em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, publicado em 1816, famosa obra do gênero que se tornou um clássico que se passa na Era Vitoriana. Integra outros dois clássicos do gênero: Drácula, de Bram Stoker (1992) e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson. Após a clássica adaptação de 1931, estrelada por Boris Karloff e dirigida por James Whale, o personagem ficou famoso. A trama de Lanthimos acompanha uma visão surreal de emancipação feminina a partir Bella Baxter (interpretada brilhantemente por Emma Stone, que venceu o Oscar de melhor atriz em La La Land- Cantando Estações (2016), de Damien Chazelle), trazida de volta à vida, depois de ter se suicidado, tem o cérebro substituído pelo do filho que sobreviveu e que ainda não havia nascido. É difícil não associar com a lesão no crânio da protagonista em Titane, e por ser grave necessita de um implante de uma placa de titânio em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais.

O diretor mostra sem nenhum pecado ou culpa sua obra recheada de violência, sexualidade explícita corporal visceral, no qual ousa pela degradação e privação sem cerimônia com o viés autodestrutivo o experimento diabólico realizado pelo doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe), um cientista maluco, mas engenhoso e bem distante da ortodoxia. Tudo conduz para uma espécie de releitura de Frankenstein e seu fiel escudeiro, o assistente Max (Ramy Youssef). Cria com um surrealismo grotesco invenções humanas que se misturam com algumas monstruosidades como porco com galinha, cachorro com pato, até chegar no cabrito com aquele homem tenebroso que come capim, o general marido de sua amada criatura que o idolatra. O resultado tem uma visão cruel da transformação civilizatória do humano num animal. A jovem que se tornara uma prisioneira de seu Deus, como ela o chama, acaba fugindo com o arrogante e inseguro advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo está magnífico no papel) para conhecer o mundo. Viajam para Lisboa, Atenas, Paris, mas ela retorna para Londres. Os ambientes são mostrados pela fotografia singular de Robbie Ryan com o design de Shona Heath e James Price, em uma estética futurista combinada com cenários reais. Livre dos preconceitos de sua época, se coloca firmemente em seu propósito de defender a igualdade e a libertação das amarras dos preconceitos e submissão da mulher. A sexualidade entra num processo de fusão com as intenções libertárias que dominam a mente, até a fuga para dar asas às suas imaginações naquele processo de independência, tanto do seu criador como posteriormente do responsável pela evasão. Desde sua descoberta até vivenciar livremente seus desejos, com passagens exóticas pela prostituição em Paris. Primeiro para sobreviver, depois para satisfazer sua libido, mostrada sem falso moralismo ou fetiche gratuito da protagonista.

Mesmo que haja exaltação ao grotesco, há boas contribuições do realizador, que lança um olhar feminino para mostrar as transposições com armações sinuosas de Bella, desde quando aprende coisas simples como uma criança que começa a andar, falar e comer, até partir em busca de seu objetivo maior e irrenunciável: a liberdade redentora. Na primeira parte, em preto e branco, são ressaltados os momentos iniciais de uma vida recém-criada com momentos de aprendizagem da vida, que vão do aprisionamento num cenário único dos experimentos, sem ter conhecimento do mundo exterior, onde era vigiada dia e noite. Após, vem a jornada de descobrimento, quando as cores brotam vivas e marcantes como um colírio para olhos secos de ânsia para viver nos diferentes lugares e a conquista de um sonho mágico das inúmeras experiências. A criança dá lugar para a mulher e suas descobertas de um mundo cínico e revelador, como no cruzeiro singrando o mar, que nos remete para Triângulo da Tristeza (2022), do sueco Ruben Östlund, tendo as idiossincrasias de relatos fúteis na escrachada crítica ao universo requintado da aristocracia, acentuada pelas imagens, e às vezes, recheada de ironias à sociedade elitizada. Até mesmo o óbvio sendo caracterizado, causa impacto pela repulsa, mas retrata com brilho ao eliminar os privilégios que perderam, especialmente quando negam a própria consciência.

Pobres Criaturas pode ser visto e entendido como uma odisseia excêntrica que traz no bojo um humor mórbido para criticar e satirizar a sociedade patriarcal e seus aspectos repulsivos. Há representantes de várias nuances nos personagens masculinos com a autoridade ditatorial reinando como uma necessidade abjeta e mesquinha de manter o controle sobre as mulheres num mundo distópico diante das desigualdades absurdas que soam como as lançadas pelo diretor em sua narrativa, embora bizarra, mas com uma lógica de uma visão que tem méritos. Porém, mesmo que tente impor o lado cômico em algumas cenas, sua criatividade carece da força necessária para atingir sutilezas e ironias finas em que predominam as situações kafkianas inverossímeis para lidar com problemas emocionais em meio ao caos. A estética mexe com o espectador e sua comodidade na zona de conforto para nunca ficar desatento, diante da desorientação da lucidez num cenário chocante que abalroa a plateia com imagens agressivas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados. Por isto afasta uma ideia sincronizada reflexiva na essência dentro da psique humana. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula à ficção científica com tintas de desbloqueio para retratar o inconsciente humano, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia bizarra, o que é discutível.

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