Amor e Morte
A cineasta e roteirista Justine Triet, de 45 anos, é considerada uma das principais expoentes do cinema francês. Autora dos longas-metragens A Batalha de Solferino (2013), Na Cama com Victória (2017) e Sibyl (2021). Está de volta com a obra mais instigante e notável da sua carreira, Anatomia de Uma Queda, no qual dividiu com Arthur Harari o dinâmico roteiro com grandes reviravoltas, que acabou vencendo nesta categoria o Globo de Ouro. Também foi vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2023, e ainda representará a França no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme, embora não tenha sido indicado oficialmente para concorrer como Melhor Filme Internacional, tendo em vista as críticas da diretora ao governo do presidente Macron. Aborda um drama familiar mesclado com suspense e passagens pelo tribunal, nada a ver com aqueles tediosos filmes norte-americanos recheados de clichês burocráticos. Com um elenco coeso e harmônico em que o grande destaque é a atriz alemã Sandra Hüller no papel da protagonista, numa atuação magistral faz o espectador mergulhar em um julgamento com percepções e interpretações contraditórias até chegar no conflito do microcosmo da família. O grande questionamento da realização é se existe realmente uma verdade absoluta ou se todos são culpados e inocentes nas rasas versões apresentadas.
A realizadora não negou nas entrevistas que se inspirou em vários filmes de tribunais, antes de efetivar o seu. Porém, até pelo título é fácil verificar que sua grande influência foi o austríaco Otto Preminger (1906-1986), um dos queridinhos do Cahiers du Cinéma, tendo deixado sua contribuição ao gênero com Anatomia de Um Crime (1959). O personagem central era um advogado mergulhado na defesa de um militar acusado de assassinar o provável amante de sua mulher. Já Anatomia de Uma Queda tem diálogos marcantes com uma eloquência e profundidade primorosa. Um digno suspense que transita do drama em um rumoroso processo judicial na possível condenação de uma pessoa que atrai para si um fardo imensurável de uma mistura de realidade com ficção, e muita imaginação para os fatos apresentados. Estas impressões justificam uma geração atual acostumada a ter uma opinião formada sobre tudo e todos nas redes sociais. Recentemente foi visto em Monster (2023), do festejado cineasta japonês Hirokasu Kore-eda, muitas verdades e mentiras na reconstituição de um cotidiano para deixar os personagens darem suas versões pelos diversos ângulos de seus pontos de vista.
O espectador fazia parte do enredo em Monster, como uma suposta testemunha dos acontecimentos reconstituídos numa estrutura de mistério que é usada para apontar uma burocracia rígida com o viés das hipocrisias latentes e destruidoras de seres humanos para sufocar e humilhar num contexto de submissão de um universo contemporâneo doentio. Já Triet também chega para mostrar essas percepções e levantar interpretações, não apenas dos personagens pelos rostos e olhares humanos como grandes instrumentos reveladores da alma humana. Mas também o julgamento da plateia na sua história bem contada de Samuel (Samuel Theis), encontrado morto na neve próximo ao chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Hüller), uma escritora alemã, que depois de viver na Inglaterra, fora de seu país de origem, agora mora na França, tendo dificuldades com o idioma local. A investigação policial conclui se tratar de uma "morte suspeita": A perícia tem dúvidas para apontar um caminho correto. Teria ele tirado sua própria vida ou fora assassinado? Obviamente que sobrou de imediato a responsabilização à viúva ao ser indiciada por um suposto crime praticado. No meio do conflito quem mais sofre é o filho menor deficiente visual de 11 anos, Daniel (Milo Machado-Graner), com um raciocínio superior ao dos adultos. Por uma aparente negligência do pai que não teria buscado o garoto na escola, acabou sofrendo um sério acidente com consequência de cegueira, com a acusação e o ressentimento da esposa. Seu melhor amigo é um cão-guia que o acompanha no cotidiano, enquanto os pais brigavam até o final trágico. O dilema estabelecido ao extremo coloca a criança como única testemunha e peça chave no julgamento e a relação familiar do casal com frequentes desavenças, deixando sequelas e dúvidas que pesam com marcas profundas. Fica improvável, quase impossível, saber ao certo se ele tirou a própria vida, se caiu acidentalmente ou se foi assassinado.
O prólogo tem Sandra recebendo uma jornalista em sua casa para falar sobre sua carreira, mas logo é atrapalhada pelo som musical alto e ensurdecedor que vem do sótão, onde seu marido se dedica à reforma do chalé. A entrevista é interrompida e adiada, a protagonista dorme, até ser despertada pelo filho que passeava com seu cão e encontra o corpo do pai na neve com manchas de sangue. A diretora do filme, casada com o cineasta e roteirista Arthur Harari, por coincidência ou não, os protagonistas formam um casal de escritores, por isto têm subsídios para explorar melhor as complexidades dos personagens no relacionamento matrimonial. Ela é uma autora famosa que aproveita passagens da vida, conhecida por misturar realidade e ficção em seu trabalho literário; ele carrega o estigma da frustração por não conseguir concluir seus livros, alega falta de tempo, razão para as brigas violentas e abusivas do casal, inclusive com registros em vídeos e áudios caseiros gravados clandestinamente. A investigação e a reconstituição do fato ocorrido são lentas e graduais, inicialmente. O julgamento da acusada suspeita do assassinato tem na defesa de sua inocência o advogado, Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud), que nutre um amor antigo pela viúva. Como provar algo sem evidências irrefutáveis? Essa é a chave da trama, onde não temos uma verdade definitiva ou resposta pronta, mas uma apresentação de diferentes panoramas.
Méritos absolutos da diretora ao utilizar com eficácia as incertezas para prender o suspiro e causar agonia no espectador na escalada de buscas da verdade com respostas quase sempre imprecisas, como se fosse um jurado colhendo as informações para decidir. A firme narrativa avança e o enredo sombrio vira um imbróglio espetacular. Sem dar pistas, pelo contrário, cada vez mais as dúvidas persistem, servindo de base ambígua da trama, na qual os indícios e interpretações subjetivas contrastam com diferentes pontos de vista, e não são verdades objetivas, necessariamente. As violências psicológicas sofridas pela protagonista vão de encontro da peça acusatória na retórica machista do promotor narcisista pelo fato de ser uma mulher independente e empoderada. Ou seja, uma reputação colocada em xeque pela exposição da vida pessoal que transforma em fragmentos uma relação. Uma obra densa num convívio aparentemente comum numa família, embora alguma ameaça sombria esteja rondando naquele lugar bucólico. O escritor relutante tenta encerrar seu livro, sente a vida mais pesada como um fardo intransponível. Uma realização que não cai na caricatura e nem nas armadilhas fáceis do maniqueísmo contumaz de alguns filmes pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados sem exageros, com cenas de construções de personagens fortes, mas psicologicamente fragilizados. Estão bem alicerçados por uma direção autoral singular, que segura até o epílogo um enredo opulento de realismo de um cinema perturbador na essência como reflexão admirável desta fabulosa obra, através de uma fotografia de muita beleza e fascínio até chegar no comovente desfecho desta autêntica obra-prima, que possivelmente deverá ser escolhido como o melhor filme do ano.
Um comentário:
"Anatomia de Uma Queda" nos coloca em dúvida sobre as reais intenções de cada um dos seus personagens e ao mesmo tempo retratando o lado frágil que uma família é construída nos dias de hoje.
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