sexta-feira, 1 de abril de 2022

Drive My Car

 

Culpa e Solidão

O mestre Alain Resnais em Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011) fundiu teatro e cinema para realizar o último desejo de um famoso dramaturgo que morreu de repente e deixa uma mensagem num vídeo convidando seus melhores amigos para remontar livremente, em quatro atos, a peça Eurídice, escrita por Jean Anouilh, e o relacionamento conturbado com seu amante Orfeu. Na sua despedida, que ocorreu em alto nível, novamente aprontou positivamente com Amar, Beber e Cantar (2014), outra vez presta uma bela homenagem ao teatro como prova da estima do veterano diretor por essa arte, ao trazê-la para o cinema, dentro do seu contumaz formalismo. O cineasta japonês Ryüsuke Hamaguchi segue esta mesma estética de linha narrativa em Drive My Car, ao mesclar teatro com cinema numa perfeita estrutura cênica na montagem e edição de três horas de duração, que parece arrastado, mas é na lenta trajetória que o torna admirável e reflexivo, ao adaptar livremente para a telona em parceria com Takamasa Oe, um conto homônimo do livro Homens Sem Mulheres, de autoria do famoso escritor conterrâneo Haruki Murakami, lançado em 2015 no Brasil. Está em cartaz nos cinemas e na plataforma MUBI.

Drive My Car, justamente premiado como Melhor Filme Internacional no Oscar deste ano, também levou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes do ano passado, é um drama comovente, onde o teatro com sua formalidade estrutural cênica se faz presente na apresentação da remontagem da peça Tio Vânia, de um dos principais autores do Realismo russo Anton Tchekhov, que já havia chegado ao cinema pelas mãos de Andrei Konchalovski, em 1971, e pelo cultuado diretor francês Louis Malle com Tio Vânia em Nova Iorque (1994). Hamaguchi dá vazão para um mergulho no imaginário do espectador da sétima arte ao levar a peça para encenar em Hiroshima, não por acaso a cidade que foi destruída por uma bomba atômica lançada pelos EUA, e que agora se mostra renascida, é o mesmo cenário do clássico Hiroshima, Meu Amor (1959), de Resnais. Elogiáveis os magnéticos diálogos dos personagens teatrais com os do cinema até o inusitado desfecho fundido de peça com a realização pelo magistral monólogo elucidativo, que comove e impressiona de maneira original as duas plateias.

O realizador perturba os mais desatentos com as duas linguagens distintas e cria um ambiente psicológico de amor e ódio, alegria e tristeza entre os personagens envolvidos no magnífico enredo cinematográfico cativante pela sua singularidade, que se torna ficção no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência no equilíbrio cênico que encontra sustentação no roteiro dinâmico para uma atmosfera que vem à tona com lucidez, bem alicerçada num molho saboroso desta vigorosa obra de cinema teatral. Aos poucos, os espectadores começam a se envolver no clímax pela proposta, diante das artimanhas que entram cautelosamente na encenação e vão tomando o espaço dos dois formidáveis cenários com bastante precisão para ser colocada a realidade de suas interpretações. Diante do luto pela morte prematura e a solidão são sentimentos complexos que atordoam os seres humanos e que são explorados com sensibilidade através de uma admirável delicadeza pelas diferentes formas alternativas da arte.

A história em foco, que tem um prólogo de mais de meia hora de encantamento do amor com o ingrediente da traição improvável, capta com sutileza, afastando-se de qualquer indicativo de pieguismo. Méritos para o realizador, que constrói um clima de dor dilacerante da perda que repassa ao espectador, além das frustrações decorrentes da vida, o resgate para um renascimento para continuar vivendo, sem abdicar da esperança e de alguma alegria no decorrer da trama. Com um elenco homogêneo e convincente, especialmente o desempenho do personagem que lida com a vida conjugal em risco até a perda impactante da esposa, Oto (Reika Kirishima), uma linda mulher, porém também uma roteirista com muitos segredos, com que divide sua vida, seu passado e sua prestimosa colaboração artística. Ela é casada com o personagem central Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima- de soberba atuação), um ator e diretor de sucesso no teatro que entra num período nebuloso de perturbação pela dúvida alucinante. Muitas perguntas ficaram sem respostas do relacionamento do casal que perdeu um filho, além do arrependimento de nunca ter conseguido compreender a companheira.

O cineasta dá um salto no roteiro de dois anos para estabelecer a profunda tristeza do enlutamento que se encontra o protagonista. Ele é convidado para dirigir uma peça no teatro de Hiroshima, onde lidará com a adaptação dos manuscritos de sua amada falecida, mas para isto terá que ceder ao pedido da produção, que condiciona ter que aceitar como motorista de seu majestoso automóvel a jovem Misaki Watari (Toko Miura- de desempenho impecável), com que dividirá suas angústias e dúvidas pretéritas durante o trajeto do hotel até os ensaios no teatro. Porém, logo surgirá um vínculo progressivo de uma especial relação amigável entre aqueles dois seres solitários que irão encontrar coragem para enfrentar o passado sequelado que deixa uma agonia latejante. O veículo, que substitui o divã, vira uma espécie de confessionário entre eles, com troca de mágoas, confissões, emoções reprimidas e causas devastadoras como resquícios anteriores povoados de fantasmas que se esgueiram pelas suas almas, mentes e corações atormentados pela culpa, como tendo que ouvir a gravação da interpretação das falas da peça para uma fuga exorcizante.

Um filme contemplativo das viagens para o interior de cada personagem com uma imensidão infinita de sentimentos abalados. Ambos estão presos a um passado, onde as amarras parecem não poder libertá-los, ou por consequência fazer entender de vez o destino traiçoeiro daqueles sentimentos doloridos. Somente os poucos gestos ou confissões, mas significativos para revelar as complexas dúvidas e a melancolia incrustada naqueles dois seres humanos que carregam muitas emoções reprimidas que assombram e reduz a capacidade de lucidez. Mas é significativo quando eles compartilham suas histórias marcantes de feridas abertas, mostram arrependimentos, para chegar até o abraço afetuoso e a conclusão da peça teatral como forma inequívoca de libertação para a paz interior diante da volta à arte para esquecer as mazelas pretéritas que rondam o presente, dar o mergulho em si mesmo para obter a redenção e o novo recomeço. Elementos intrínsecos não faltam para a construção psicológica e suas complexidades dos personagens focados nesta saga sobre perdas, danos, culpa, arrependimentos e renovações neste extraordinário drama familiar dos desajustes do amor até a solidão implacável pelas decepções e sofrimentos da existência na sua plena essência. Até agora, o melhor filme de 2022.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Drive My Car" é sobre uma cruzada humana cheia de dor, porém, de grande recompensação em sua reta final.