sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou

 



 











Um Grandioso Tributo

A atriz gaúcha de Campo Bom Bárbara Paz estreia na direção do comovente Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, indicado para representar o Brasil no Oscar deste ano, pela primeira vez um documentário concorre como melhor filme internacional. Venceu o Festival de Veneza de 2019 na categoria de documentários. Relata com notável sensibilidade a trajetória da vida de seu marido, o cineasta argentino oriundo de Mar del Plata naturalizado brasileiro e de ascendência judaico-ucraniana Héctor Babenco, morto em 2016, aos 70 anos, por uma parada cardiorrespiratória, depois de lutar por oito anos contra um câncer linfático. Com um poder de síntese admirável, bastaram somente 73 minutos para a diretora, que também assinou o roteiro em parceria com Maria Camargo, que começou a filmar em 2010 num hospital de Paris, para retratar a longeva carreira de 40 anos, 10 longas, do festejado realizador biografado. Iniciou por O Rei da Noite (1975) até chegar na derradeira obra autobiográfica Meu Amigo Hindu (2016), passando pela sua obra-prima Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981).

O amor profundo de Bárbara pelo companheiro é a marca principal da realização que foca no cineasta que viveu e morreu se dedicando à sétima arte, razão pela qual sua vida tinha todo o sentido da existência dele e o prazer para continuar vivendo, ainda que o destino lhe aprontasse com a doença maligna contraída quando lançava, em 1990, Brincando nos Campos do Senhor, sendo diagnosticado a ter mais alguns minguados meses de vida, mas superou e conviveu por mais 30 anos com a moléstia. Em relatos marcantes sobre as memórias, medos e anseios flagrados na intimidade do lar e suas passagens pelos hospitais, com reflexões, a inerente intelectualidade contrapondo com a frágil condição de saúde do artista, são revelações do quanto seu amor pelo cinema o fez viver por tantos anos. Impressiona a maturidade da documentarista que subverte as expectativas para um tom de ensaio documental, sem cair na tentação de enveredar por lamentos chorosos de emoções baratas que descamba para o pieguismo. A relação entre os dois é construída por uma narrativa imparcial, retratada no envolvimento equidistante, mas com características espirituosas de bom humor, afastando-se dos truques empregados de forma gratuita e apelativa visto em realizações menores e apelativas. As interações e os diálogos do casal, mesmo em uma situação marcada pela dor latejante, torna o longa palatável diante da magnífica condução que deriva para um acompanhamento sem lágrimas gratuitas.

Outro achado no documentário é a opção de transformar as cenas dos filmes originais em cores numa fotografia em preto e branco, numa sensação de uma realização literalmente orgânica. Um mosaico de imagens de uma seleção magistral que ressalta os momentos mais inspirados do biografado. Um painel organizado com muita habilidade que ganha contundência, sem depender tanto do contexto, que ganha força autônoma em diversas cenas de colagens, tais como: imagens marcantes do período ditatorial em Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977); a amamentação da prostituta interpretada por Marília Pêra na antológica sequência em Pixote, que nos remete para a arte sacra Pietá, do pintor renascentista Michelangelo; Sônia Braga na praia em O Beijo da Mulher-Aranha (1985); os detentos nus no Carandiru (2003), a cena emblemática de Bárbara cantando e dançando na chuva em Meu Amigo Hindu, além das aparições de William Hurt, numa sugestão de Babenco interagindo com astros e estrelas do cinema norte-americano, bem como sua relação próxima com a Academia de Artes e Ciências de Holywood, resumida por ele na importância do cinema: “Não sei o que veio antes, viver ou filmar”.

A neófita e promissora diretora estreante não esconde suas limitações técnicas iniciais e escancara as falhas daquilo que poderia ser um defeito. Assume a falta de experiência, cria uma metalinguagem documental com o objetivo de um ensaio que tem grandes méritos criativos. Nas cenas iniciais, com humildade, mostra Babenco a ensinando sobre a relação entre a distância do foco e o enquadramento, e as diferenças técnicas pertinentes que irão ao encontro de uma estética eficiente adotada no projeto da produção. A ausência de um foco correto, associado a um erro de fotografia, acaba por ser adotada como uma reflexão repassada no prólogo. Porém, mesmo com o domínio da câmera, desfoca intencionalmente alguns planos para dar consistência e ratificar uma realização que se propõe coesa e com o selo autônomo de sua assinatura. A água é usada como elemento primordial, que vai da lentidão das gotas do soro até se transformar numa abundante onda em movimento. Uma sacada sutil metaforicamente utilizada para dar consistência e ilustrar um estado de espírito em seus devaneios de sonhos e pesadelos até atingir a plena bonança da calmaria da lucidez que aguarda a emboscada do traiçoeiro passamento, embora o protagonista a refute com teimosia e recuse com dignidade o avanço da finitude.

O desfecho em aberto é poético e sublime ao atender o grande desejo do marido, sem articular reminiscências impróprias, quando transforma o dia da partida, que deveria ser de tristeza e lágrimas, num apoteótico jantar com seus melhores amigos reunidos para beber, comer, sorrir e reviver lembranças sobre grandes fatos históricos e pitorescos de Babenco que não aceitava meio termo na sua existência. Não ficou de fora o tango de Astor Piazzolla e sua admiração por uma atriz chinesa com o epílogo transposto para Hong Kong, com o intuito de mantê-lo permanentemente vivo na eternidade para filmar como forma de redenção ao mundo cinematográfico em consonância com a vasta filmografia de um artesão e sua forma imaginativa singular. Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou é um dos mais inventivos e sensíveis momentos de talento e sutileza de uma documentarista que brilha, ilumina, dá vida e amor em sua obra recheada de dor, alegria, sutileza e finesse neste tributo justo prestado ao marido e sua trajetória com toda a essência do cinema ao qual se dedicou. Uma significativa obra que contribui neste registro importante sobre a criação na sétima arte truncada pela insustentável leveza da morte.

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