quarta-feira, 18 de julho de 2018

Cachorros



Rastros do Passado

Vem do Chile em coprodução com a França o drama Cachorros, da eficiente roteirista e diretora Marcela Said, a mesma de O Verão dos Peixes-Voadores (2013), com fortes conotações políticas e revelações traumáticas de um período nebuloso para os chilenos: a ditadura implantada pelo general Pinochet, através do golpe militar em 1973, com derramamento de sangue e desaparecimentos se multiplicando que jamais será esquecida. É como um grito sufocante preso na garganta e os fantasmas se movendo de um lado para outro, na busca de soluções e culpados que teimam em não aparecer, ficando na sombra da impunidade daqueles sombrios e terríveis momentos de uma nação esfacelada pela ausência de democracia, surrupiada com propósitos de aniquilar o comunismo que espreitava mentes atormentadas pela insanidade do poder.

Laureado com o Prêmio Platino de melhor ator do cinema íbero-americano para Alfredo Castro- conhecido pelas suas ótimas interpretações em No (2012), O Clube (2015), Neruda (2016), A Cordilheira (2017), e um ponta no seriado da Rede Globo Os Dias Eram Assim (2017)-, além de ser indicado ao grande prêmio da semana da crítica no Festival de Cannes de 2017, o longa de Said vem se juntar a outras realizações com a mesma temática de revirar o passado num contexto antidemocrático para trazer luzes ao presente, através da investigação cinematográfica de festejados cineastas, que não querem que caia no esquecimento as atrocidades cometidas num regime de exceção, entre os quais estão Pablo Larraín com o ótimo No e o aclamado Tony Manero (2008); Costa-Gavras com o clássico Desaparecido (1982); Bille August com o instigante A Casa dos Espíritos (1993); Andrés Wood com o perturbador Machuca (2004); Patricio Guzmán com seus extraordinários documentários Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015).

A trama de Cachorros gira em torno de uma mulher que aparentemente é submissa, mas que na realidade está à procura da verdade e tenta colocar em xeque uma busca aterrorizadora de uma lacuna na história encoberta pelo tempo. Mariana (Antonia Zegers) é integrante de uma aristocrática família chilena que vive em meio de picuinhas inerentes de uma falsa convivência na fogueira das vaidades. Apesar de todos os privilégios que a rodeiam, está muito infeliz em sua própria luxuosa residência. Sente-se desprezada pelo pai, um rico empresário (Alejandro Sieveking) que tenta fazê-la assinar documentos sem ler da empresa que eles mantêm, alegando que ela está enferma e não pode se estressar, enquanto que a própria mãe sumiu sem maiores explicações. O marido (Rafael Spregelburd) obriga a esposa a realizar um tratamento com hormônios para engravidar. Porém, a protagonista irá encontrar nos braços do seu misterioso professor de equitação Juan (Alfredo Castro) um refúgio amoroso, mas logo descobre que ele é um coronel acusado de diversos crimes durante a ditadura, quando comandava um órgão de defesa do país. Ele traz na sua biografia a participação em um governo que reprimia com extrema violência os grupos opositores e os manifestantes contrários ao regime.

A partir dos meandros deste romance com boas sacadas sobre a traição conjugal, Mariana vai se inteirando dos fatos numa atmosfera que contempla um segredo de pessoas próximas de sua família que virão à tona, deixando que a realidade apareça aos poucos para jogar luzes sobre um tenebroso período que estava na escuridão. Um dos méritos da diretora é saber explorar os anseios da protagonista sem excessos, como na cena construída com perspicácia sobre os apoiadores do regime em diálogos curtos nas reuniões familiares marcada pela presença maciça de homens num microcosmo machista que levam para questionamentos sobre suas participações, com respostas lacônicas de que era preciso e não poderiam se negar às ordens superiores, contabilizando tudo na conta do sistema, ao manifestarem-se que isto é coisa do passado. Com uma fotografia fascinante, um elenco coeso e sem estrelismos, eis uma boa abordagem com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie de fuzilamentos, após sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como sugere o enredo, com a ausência de imagens de registros. Há sutilezas com perspicácia neste filme interessante sem ser fabuloso, mas de pouca abrangência na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e melancólico. Um mergulho sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos e situações da política e as consequências sociais que abre as mazelas da tirania.

O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o surgimento de uma justiça morosa até condenar, após o latente ódio visceral oriundo da repressão, mas pouco reforçado no roteiro. Uma história contada sobre o Chile e sua sociedade elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria personagem central, uma admiradora fervorosa de cães que não parece muito afeita em sair daquele mundinho de cinismo para se rebelar e romper com a zona de conforto e os privilégios da riqueza que desfruta. Está longe de desembarcar da submissão machista que se atrela. Vai levando a situação de acordo com os ventos que sopram, bem caracterizado pelo quadro da cachorrada e suas simbologias evidentes sobre as futilidades dos personagens em questão. Ao morrer um cão, troca-se por outro, numa alusão metafórica na troca de parceiros e a continuidade da vida, apontado pelo olhar da realizadora nesta bela obra sobre os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático, sem abrir mão de nada. Apesar da carta no desfecho que só confirma o que já se sabia, as feridas abertas continuarão latejando com muita dor pelos indicativos da truculência que dominavam o poder.

Nenhum comentário: