Rastros do Passado
Vem do Chile em coprodução com a França o drama Cachorros, da eficiente roteirista e diretora
Marcela Said, a mesma de O Verão dos
Peixes-Voadores (2013), com fortes conotações políticas e revelações
traumáticas de um período nebuloso para os chilenos: a ditadura implantada pelo
general Pinochet, através do golpe militar em 1973, com derramamento de sangue
e desaparecimentos se multiplicando que jamais será esquecida. É como um grito
sufocante preso na garganta e os fantasmas se movendo de um lado para outro, na
busca de soluções e culpados que teimam em não aparecer, ficando na sombra da
impunidade daqueles sombrios e terríveis momentos de uma nação esfacelada pela
ausência de democracia, surrupiada com propósitos de aniquilar o comunismo que
espreitava mentes atormentadas pela insanidade do poder.
Laureado com o Prêmio Platino de melhor ator do cinema
íbero-americano para Alfredo Castro- conhecido pelas suas ótimas interpretações
em No (2012), O Clube (2015), Neruda (2016),
A Cordilheira (2017), e um ponta no
seriado da Rede Globo Os Dias Eram Assim
(2017)-, além de ser indicado ao grande prêmio da semana da crítica no Festival
de Cannes de 2017, o longa de Said vem se juntar a outras realizações com a
mesma temática de revirar o passado num contexto antidemocrático para trazer
luzes ao presente, através da investigação cinematográfica de festejados
cineastas, que não querem que caia no esquecimento as atrocidades cometidas num
regime de exceção, entre os quais estão Pablo Larraín com o ótimo No e o aclamado Tony Manero (2008); Costa-Gavras com o clássico Desaparecido (1982); Bille August com o
instigante A Casa dos Espíritos
(1993); Andrés Wood com o perturbador Machuca
(2004); Patricio Guzmán com seus extraordinários documentários Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015).
A trama de Cachorros
gira em torno de uma mulher que aparentemente é submissa, mas que na realidade
está à procura da verdade e tenta colocar em xeque uma busca aterrorizadora de
uma lacuna na história encoberta pelo tempo. Mariana (Antonia Zegers) é
integrante de uma aristocrática família chilena que vive em meio de picuinhas
inerentes de uma falsa convivência na fogueira das vaidades. Apesar de todos os
privilégios que a rodeiam, está muito infeliz em sua própria luxuosa residência.
Sente-se desprezada pelo pai, um rico empresário (Alejandro Sieveking) que
tenta fazê-la assinar documentos sem ler da empresa que eles mantêm, alegando
que ela está enferma e não pode se estressar, enquanto que a própria mãe sumiu
sem maiores explicações. O marido (Rafael Spregelburd) obriga a esposa a
realizar um tratamento com hormônios para engravidar. Porém, a protagonista irá
encontrar nos braços do seu misterioso professor de equitação Juan (Alfredo
Castro) um refúgio amoroso, mas logo descobre que ele é um coronel acusado de
diversos crimes durante a ditadura, quando comandava um órgão de defesa do país.
Ele traz na sua biografia a participação em um governo que reprimia com extrema
violência os grupos opositores e os manifestantes contrários ao regime.
A partir dos meandros deste romance com boas sacadas sobre a
traição conjugal, Mariana vai se inteirando dos fatos numa atmosfera que contempla
um segredo de pessoas próximas de sua família que virão à tona, deixando que a
realidade apareça aos poucos para jogar luzes sobre um tenebroso período que
estava na escuridão. Um dos méritos da diretora é saber explorar os anseios da
protagonista sem excessos, como na cena construída com perspicácia sobre os
apoiadores do regime em diálogos curtos nas reuniões familiares marcada pela
presença maciça de homens num microcosmo machista que levam para
questionamentos sobre suas participações, com respostas lacônicas de que era
preciso e não poderiam se negar às ordens superiores, contabilizando tudo na
conta do sistema, ao manifestarem-se que isto é coisa do passado. Com uma
fotografia fascinante, um elenco coeso e sem estrelismos, eis uma boa abordagem
com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie de fuzilamentos,
após sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como
sugere o enredo, com a ausência de imagens de registros. Há sutilezas com
perspicácia neste filme interessante sem ser fabuloso, mas de pouca abrangência
na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e melancólico. Um mergulho
sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos e
situações da política e as consequências sociais que abre as mazelas da tirania.
O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o surgimento
de uma justiça morosa até condenar, após o latente ódio visceral oriundo da
repressão, mas pouco reforçado no roteiro. Uma história contada sobre o Chile e
sua sociedade elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação
burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria
personagem central, uma admiradora fervorosa de cães que não parece muito
afeita em sair daquele mundinho de cinismo para se rebelar e romper com a zona
de conforto e os privilégios da riqueza que desfruta. Está longe de desembarcar
da submissão machista que se atrela. Vai levando a situação de acordo com os
ventos que sopram, bem caracterizado pelo quadro da cachorrada e suas
simbologias evidentes sobre as futilidades dos personagens em questão. Ao morrer um
cão, troca-se por outro, numa alusão metafórica na troca de parceiros e a
continuidade da vida, apontado pelo olhar da realizadora nesta bela obra sobre
os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático, sem abrir mão de nada. Apesar da carta no
desfecho que só confirma o que já se sabia, as feridas abertas continuarão
latejando com muita dor pelos indicativos da truculência que dominavam o poder.
Nenhum comentário:
Postar um comentário