Bastidores
Conflitados
O cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu tinha em sua
filmografia dramas crus e sem ironia, marcantes pelo realismo sisudo como proposta
conceitual, porém instigantes na narrativa como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas
(2003), exceto Babel (2006), que remonta
várias histórias intercaladas. Com a realização de Birdman ou (A Inesperada
Virtude da Ignorância), primeira comédia do diretor, que abre seus caminhos
para a consagração mundial, tendo em vista que foi indicada em nove categorias
ao Oscar deste ano: melhor filme, direção, ator (Michael Keaton), ator e atriz
coadjuvantes (Edward Norton e Emma Stone), roteiro original, fotografia, som e
efeitos especiais.
Mesmo não sendo o melhor filme em disputa, credencia-se como
o grande favorito com este ousado metalinguístico longa-metragem beirando ao
surreal, na abordagem esmiuçada com um mergulho no ego de uma estrela em crise
de Hollywood, pelo aparente plano-sequência único sem cortes da filmagem pela
câmera como uma espécie de espiã pelos cantos de difícil acesso do cenário. Mas
é apenas uma ilusão de ótica, pois o filme é colado meticulosamente, sem que
haja evidências das incisões, mas elas existem de forma bem delineada e iludem os
olhos do espectador que fica com a sensação falsa pelo disfarce, diante da
flutuação que impressiona e dá uma beleza renovadora nos 119 minutos de filmagens
digitais emendadas invisivelmente por várias sequências, ao melhor estilo de
mestre Alfred Hitchcock em
Festim Diabólico
(1948), que usava artifícios imperceptíveis na troca dos rolos. Cabe ressaltar que plano-sequência único só existiu e merece crédito
somente para Arca Russa (2002), de
Alexandr Sokurov. Com uma estimulante trilha sonora das batidas da bateria, tem ainda na fotografia e na edição trabalhos realizados com acuidade, logo impressionam
e o filme perderia em muito se seguisse o estilo convencional.
A trama mistura ficção e realidade, inclusive pelo próprio
protagonista de um passado recente, Riggan Thomson (Keaton) fizera sucesso
interpretando o homem-pássaro, um super-herói que se tornou um ícone cultural e
referência para espectadores ávidos por aventuras e heroísmos americanos desbragados.
No filme, desde que se recusou a estrelar a quarta continuação como personagem
da série Birdman, sua carreira começou a decair e despenca ladeira abaixo, como
um iminente fim que o leva ao desespero e deixa-o atormentado junto com seu
herói que ouve vozes na trajetória do enredo, subsídio buscado na cinebiografia Gainsbourg- O Homem que Amavas as
Mulheres (2010), de Joann Sfars, quando era cutucado pelo alter ego
travestido do irmão morto, no formato de um boneco, para tocar em frente suas
composições. Na vida sem ficção, Keaton também se recusa a interpretar Batman
pela terceira vez, dando uma dimensão maior e consistência robusta ao
personagem.
Iñárritu dá vida e forma ao protagonista que vai em busca da
fama perdida e também do reconhecimento como ator, quando este vai dirigir,
roteirizar e estrelar a adaptação de um texto consagrado para a Broadway. Riggan
precisa lidar com seu agente Brandon (Zach Galifianakis) e a voz
insistente que permanece em sua mente. Há uma luta travada de sentimentos de
perdas e dúvidas nos ensaios com o elenco da peça formado por Mike Shiner
(Edward Norton), Lesley (Naomi Watts) e Laura (Andrea Riseborough). Em Birdman,
o dedo do diretor aponta para a indústria do entretenimento, sem esquecer a
reflexão pela crise que se instala nos camarins do teatro. Um retrato cínico e pujante
de um momento de angústia e dor, com um olhar para as ligações afetivas que surgem
numa realidade típica de constrangimento, na qual a vida imita a arte, tema bem
explorado no recente e belo drama francês Acima
das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, na boa crítica retratada com
mordacidade aos costumes pouco humanitários de Hollywood para seu rol de astros
desgastados, com soluções simples como o uso até o seu descarte.
Na comédia do realizador mexicano, além da derrocada do
antigo homem-pássaro que passa pelo esforço do processo reerguimento do ator
decadente para a fama teatral, surge a crítica velada para os personagens
criados para a peça, no qual estão mais preocupados com o estrelato nos diálogos
sarcásticos, pensando em si mesmos. Como o ator Mike que surta de vez em
quando, a atriz Lesley intrincada com relacionamentos antigos, o agente voltado
para os lucros, a filha com tendência suicida (Emma Stone) que se sente
deslocada e clama pela falta de afeto do pai, muito bem enfatizado por Yaron
Zilberman, no drama O Último Concerto (2012),
quando a jovem desprotegida pede socorro e leva uma bofetada no rosto, ao
questionar a mãe sobre a ausência constante, bem como do pai que a deixa abandonada
como ser humano, chega afirmar que o aborto teria sido uma solução melhor para
todos.
O sonho americano perdido e distante pelas visões ilusórias
do perturbado homem-pássaro e seu voo imaginário de libertação de um mundo de
picuinhas e faz de conta, que dá uma sensação de uma realidade ausente de
ilusões, onde o desejo se confunde pela manifestação empírica da figura que
mexe com os instintos de sobrevivência do protagonista. Um retrato alegórico
dos fantasmas que perseguem seu alter ego e que dará vazão para libertar-se
daquele insustentável peso que carrega sobre seus ombros, através da
responsabilidade de iludir idiotas como se fossem crianças mimadas e sem
discernimento, contrapondo pelas citações eruditas, como de Macbeth, de
Shakespeare. A contínua aparição está na consciência questionada pelos atos
corrompidos do cotidiano, como um alerta objetivo e direto sobre qual mundo
quer continuar? Aquele de ilusões ou a realidade ao seu redor numa narrativa de
extrema sensibilidade para um mítico Ícaro grego contemporâneo na sua tentativa de
deixar Creta voando com asas forjadas. Há um contexto de envolvimentos emocionais
interligados por uma boa atmosfera sobre perdas e os bastidores conflitados. Por
isto, a representação teatral, quase trágica, trará luzes para o voo final de um
dilema existencialista, além de crítico a Hollywood e a Broadway.
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