terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)


Bastidores Conflitados

O cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu tinha em sua filmografia dramas crus e sem ironia, marcantes pelo realismo sisudo como proposta conceitual, porém instigantes na narrativa como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003), exceto Babel (2006), que remonta várias histórias intercaladas. Com a realização de Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), primeira comédia do diretor, que abre seus caminhos para a consagração mundial, tendo em vista que foi indicada em nove categorias ao Oscar deste ano: melhor filme, direção, ator (Michael Keaton), ator e atriz coadjuvantes (Edward Norton e Emma Stone), roteiro original, fotografia, som e efeitos especiais.

Mesmo não sendo o melhor filme em disputa, credencia-se como o grande favorito com este ousado metalinguístico longa-metragem beirando ao surreal, na abordagem esmiuçada com um mergulho no ego de uma estrela em crise de Hollywood, pelo aparente plano-sequência único sem cortes da filmagem pela câmera como uma espécie de espiã pelos cantos de difícil acesso do cenário. Mas é apenas uma ilusão de ótica, pois o filme é colado meticulosamente, sem que haja evidências das incisões, mas elas existem de forma bem delineada e iludem os olhos do espectador que fica com a sensação falsa pelo disfarce, diante da flutuação que impressiona e dá uma beleza renovadora nos 119 minutos de filmagens digitais emendadas invisivelmente por várias sequências, ao melhor estilo de mestre Alfred Hitchcock em Festim Diabólico (1948), que usava artifícios imperceptíveis na troca dos rolos. Cabe ressaltar que plano-sequência único só existiu e merece crédito somente para Arca Russa (2002), de Alexandr Sokurov. Com uma estimulante trilha sonora das batidas da bateria, tem ainda na fotografia e na edição trabalhos realizados com acuidade, logo impressionam e o filme perderia em muito se seguisse o estilo convencional.

A trama mistura ficção e realidade, inclusive pelo próprio protagonista de um passado recente, Riggan Thomson (Keaton) fizera sucesso interpretando o homem-pássaro, um super-herói que se tornou um ícone cultural e referência para espectadores ávidos por aventuras e heroísmos americanos desbragados. No filme, desde que se recusou a estrelar a quarta continuação como personagem da série Birdman, sua carreira começou a decair e despenca ladeira abaixo, como um iminente fim que o leva ao desespero e deixa-o atormentado junto com seu herói que ouve vozes na trajetória do enredo, subsídio buscado na cinebiografia Gainsbourg- O Homem que Amavas as Mulheres (2010), de Joann Sfars, quando era cutucado pelo alter ego travestido do irmão morto, no formato de um boneco, para tocar em frente suas composições. Na vida sem ficção, Keaton também se recusa a interpretar Batman pela terceira vez, dando uma dimensão maior e consistência robusta ao personagem.

Iñárritu dá vida e forma ao protagonista que vai em busca da fama perdida e também do reconhecimento como ator, quando este vai dirigir, roteirizar e estrelar a adaptação de um texto consagrado para a Broadway. Riggan precisa lidar com seu agente Brandon (Zach Galifianakis) e a voz insistente que permanece em sua mente. Há uma luta travada de sentimentos de perdas e dúvidas nos ensaios com o elenco da peça formado por Mike Shiner (Edward Norton), Lesley (Naomi Watts) e Laura (Andrea Riseborough). Em Birdman, o dedo do diretor aponta para a indústria do entretenimento, sem esquecer a reflexão pela crise que se instala nos camarins do teatro. Um retrato cínico e pujante de um momento de angústia e dor, com um olhar para as ligações afetivas que surgem numa realidade típica de constrangimento, na qual a vida imita a arte, tema bem explorado no recente e belo drama francês Acima das Nuvens (2014), de Olivier Assayas, na boa crítica retratada com mordacidade aos costumes pouco humanitários de Hollywood para seu rol de astros desgastados, com soluções simples como o uso até o seu descarte.

Na comédia do realizador mexicano, além da derrocada do antigo homem-pássaro que passa pelo esforço do processo reerguimento do ator decadente para a fama teatral, surge a crítica velada para os personagens criados para a peça, no qual estão mais preocupados com o estrelato nos diálogos sarcásticos, pensando em si mesmos. Como o ator Mike que surta de vez em quando, a atriz Lesley intrincada com relacionamentos antigos, o agente voltado para os lucros, a filha com tendência suicida (Emma Stone) que se sente deslocada e clama pela falta de afeto do pai, muito bem enfatizado por Yaron Zilberman, no drama O Último Concerto (2012), quando a jovem desprotegida pede socorro e leva uma bofetada no rosto, ao questionar a mãe sobre a ausência constante, bem como do pai que a deixa abandonada como ser humano, chega afirmar que o aborto teria sido uma solução melhor para todos.

O sonho americano perdido e distante pelas visões ilusórias do perturbado homem-pássaro e seu voo imaginário de libertação de um mundo de picuinhas e faz de conta, que dá uma sensação de uma realidade ausente de ilusões, onde o desejo se confunde pela manifestação empírica da figura que mexe com os instintos de sobrevivência do protagonista. Um retrato alegórico dos fantasmas que perseguem seu alter ego e que dará vazão para libertar-se daquele insustentável peso que carrega sobre seus ombros, através da responsabilidade de iludir idiotas como se fossem crianças mimadas e sem discernimento, contrapondo pelas citações eruditas, como de Macbeth, de Shakespeare. A contínua aparição está na consciência questionada pelos atos corrompidos do cotidiano, como um alerta objetivo e direto sobre qual mundo quer continuar? Aquele de ilusões ou a realidade ao seu redor numa narrativa de extrema sensibilidade para um mítico Ícaro grego contemporâneo na sua tentativa de deixar Creta voando com asas forjadas. Há um contexto de envolvimentos emocionais interligados por uma boa atmosfera sobre perdas e os bastidores conflitados. Por isto, a representação teatral, quase trágica, trará luzes para o voo final de um dilema existencialista, além de crítico a Hollywood e a Broadway.

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