Mergulho no Passado
Pawel Pawlikowski é um diretor autoral que busca nos
pequenos detalhes uma amostragem da essência cinematográfica. Nascido há 57
anos em Varsóvia, foi criado desde a infância na Inglaterra com a família, ao
fugir do sólido regime comunista lá implantado. Ida é seu primeiro filme rodado no país de origem e falado na
língua polonesa, já ganhou aproximadamente 70 prêmios internacionais, entre
eles os de melhor filme, roteiro, direção e fotografia no European Film Awards
de 2014, tendo figurado em diversas listas de melhores do ano passado nos EUA e
Europa, além de ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e concorrer
com grandes chances de levar pela primeira vez a estatueta para a Polônia, nacionalidade
dos já consagrados diretores Roman Polanski, Andrzej Wajda e Krzysztof
Kieslowski. Antes filmara em inglês os longas Last Resort (2000) e Meu Amor
de Verão (2004).
A trama é centrada na jovem noviça Anna (Agata
Trzebuchowska) que está pronta para prestar seu voto de castidade e tornar-se
freira. Porém, antes do evento religioso, ela é instada pela Madre Superiora
(Halina Skoczynska) para visitar uma única pessoa restante de seus laços de
família, a tia Wanda (Agata Kulesza), uma juíza rígida com os compatriotas
renegados, de olhar cínico e que leva uma vida desregrada, beirando uma mulher
de vida mundana, solitária, alcoólatra e autoritária nas suas atitudes,
principalmente como defensora do Partido Comunista. Sem pestanejar, já diz à
queima-roupa à sobrinha que sua origem é judia e que se chama Ida e não Anna.
Questiona o futuro dela como freira nesta circunstância paradoxal dogmática, o
que faz balançar a vocação da moça. Sem muita cerimônia, revela que seus pais
foram mortos pelos nazistas e faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho
de um passado brutal.
O cineasta conduz com sensibilidade a viagem da tia e a sobrinha
para um caminho de autoconhecimento e localização dos restos mortais para o
desfecho redentor da saga familiar oculta até ali. Faz uma abordagem magnífica
de uma Polônia com seus traumas da história ocorridos no século XX, através dos
choques doloridos marcados por uma trajetória sem vencedores e sem heróis, neste
cenário que se passa a trama, em 1962. Muito tempo depois do mergulho nazista
do ensandecido Hitler que deixou consequências danosas pelo massacre irremediável,
não só para os filhos das vítimas, como também ficaram marcas nos descendentes
de colaboradores, simpatizantes e oficiais poloneses, bem como também na
extinta Tchecoslováquia, por serem países que alicerçavam a temida Cortina de
Ferro no leste europeu, sustentados cultural e religiosamente pela então enérgica
União Soviética. Uma realidade de embates pós-guerra e com lembranças de um
passado obscuro para a protagonista e seu impacto com o mundo exterior, através
de revelações estranhas e inimagináveis que lhe afetariam sua conduta e a
fariam estremecer com a história trágica contada pela tia, magistrada implacável
com os rebeldes comunistas.
“Acho que uma das razões para gostarem de Ida é porque ele
não lida com a História do jeito pomposo, às vezes até patético, que as escolas
fazem. Há muitos filmes poloneses que tratam da História do país, mas
geralmente eles são cheios de uma retórica que mostra os poloneses como vítimas
e nada mais”, assevera Pawlikowski para o jornal O Globo, ao referir-se sobre
seu país que passou por várias desgraças e recomeços difíceis para a nação. São
fatos marcantes no drama o registro da invasão nazista durante a Segunda Guerra
Mundial e o extermínio macabro de três milhões de judeus poloneses com a
colaboração de antissemitas em detrimento do patriotismo, com fins escusos de
trocar informações para ficar de posse de imóveis, como no caso dos pais da noviça.
Também está bem retratado o longo período stalinista de perseguição aos comunistas
no governo de Varsóvia, além da importância fundamental de reconstrução do país
pela Igreja Católica.
Um drama fiel da cópia de um país falido e esmiuçado com
sutileza pelo caminho de violência com rastros de mortes estúpidas daqueles
tristes anos de outrora, num clímax equilibrado e coerente, através de uma
história contada com uma suavidade contraditória, embora embrutecida por um
panorama do horror do holocausto que deixou feridas abertas de difícil
cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos líricos
doloridos, faz desta obra um manifesto contundente, sem se deixar cair no
maniqueísmo ou na mesmice de chuveiros químicos esperando pessoas amontoadas
dentro de trens rumo à morte.
Ida é um filme
reflexivo pelas imagens com força de grande expressividade, suplantando os
diálogos que se tornam meros auxiliares na fascinante fotografia em preto e
branco que explora o contraste com tons acinzentados, assinadas por Ryszard
Lenczewski e Lukasz Zal. Pelas lentes da dupla são mostrados rostos e olhares
de perplexidades mesclados com surpresa e indignação sóbria das angustiantes memórias
do passado, através de um formato quadrado que lembra as velhas televisões ou
os filmes antigos nos cinemas até os anos de 1950, para uma defesa
intransigente de uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações, na qual
as vítimas são todas aquelas que não participaram diretamente da barbárie e faz
o espectador ter uma visão menos dualista, ao deixar fluir a equidistância da
imparcialidade para elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da
realidade.
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