terça-feira, 19 de junho de 2012

Deus da Carnificina

















Revelações Cínicas

Ainda que o diretor polonês Roman Polanski esteja meio preguiçoso para filmar, sua última obra Deus da Carnificina tem bons motivos para ser assistido. Não é um daqueles filmes como acostumou seus fãs, sem o vigor do suspense em alta tensão ou a abordagem profunda de uma sociedade em decomposição. Mas ainda assim tem elementos consistentes neste seu último drama, tendo na hipocrisia entre dois casais, sua grande arma para levar até o fim o enredo.

Polanski é um dos mais maduros e competentes cineastas em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe em muito seu destino no território dos EUA. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória cinematográfica. Sempre é bom lembrar o tensionamento sinistro e apavorante em O Bebê de Rosemary (1968), uma obra-prima do terror; ou o mais leve A Dança dos Vampiros (1967), um misto de terror e comédia; o frio noir que notabilizou o magnífico Chinatown (1974), gênero bem explorado com toda elegância e frieza num policial marcante e que deixou belos ensinamentos de uma realização com fôlego até o último minuto da película; sem esquecer o instigante O Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense; a perturbadora reflexão sobre a guerra no filme O Pianista (2002), que lhe valeu o prêmio de melhor diretor do Oscar; e recentemente o penúltimo longa, o excelente suspense de política O Escritor Fantasma (2010), que rendeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Berlim.

O filme é baseado na peça de teatro da dramaturga francesa Yasmina Reza, que foi encenada várias vezes, iniciando em 2006. Foi realizada no Brasil com Paulo Betti, Júlia Lemmertez e Deborah Evelyn. A própria Reza é a autora do roteiro do longa, talvez por isto a narrativa segue um ritmo teatral, ou seja, uma peça do palco filmada e transportada para a linguagem do cinema, mas bem solucionada pelo diretor, que evita a simplicidade de apenas adaptá-la e busca a interação, pois coloca um razoável ritmo sequencial nos planos. Polanski é daqueles cineastas que nunca passam indiferentes e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua verve sarcástica e inerente ao velho mestre de 78 anos. Burilou a versão do teatro para o cinema quando estava em prisão domiciliar na Suíça.

O cineasta imprime consistência num aparente mote simples, embora a complexidade humana tome vulto e persista, onde um casal Nancy (Kate Winslet) é uma beldade que se acha a melhor mulher de todas e é casada com Alan (Christopher Waltz-o inesquecível nazista do soberbo longa Bastardos Inglórios (2009), de Tarantino), um advogado de uma indústria farmacêutica multinacional, que vende remédios duvidosos para os cardíacos. Visitam os pais do menino agredido, Penélope (Jodie Foster), uma dona de casa com algum interesse em arte, escritora nas horas vagas sobre o sofrimento da África e seu marido Michael (John C. Reilly), um homem simples que vende produtos domésticos, num encontro que tem como objetivo o pedido desculpas pela agressão do filho.

O drama começa com uma cordialidade até dignificante na recepção do casal que tem o filho agredido injusta e covardemente por um taco numa praça com seus verdes espalhados. A mesma cena se repete no final, já sem a agressão, mas com personagens distantes de uma realidade. O cinismo inicial entre os pares logo dará lugar para uma verdadeira catarse de acusações mútuas, tanto de marido para mulher nos dois casais, como de pai para pai, ou de pai para mãe, onde a reciprocidade se espalha e atinge o âmago dos gladiadores como se estivessem numa arena.

Com um elenco ótimo, os diálogos são bons e o clima esquenta como bem sugerido em Deus da Carnificina. Sobra para todo mundo e o diretor mostra um cenário de pais desajustados, onde estão mais voltados para o mundo exterior, como o personagem do advogado, sempre falando pelo celular com seus clientes e interrompendo constantemente sua conversa, numa pura demonstração de incivilidade e desrespeito com as pessoas próximas; ou Michel que recebe várias ligações da genitora, uma dependente e viciada em remédios; ou as esposas sempre afiadas com alfinetadas pontuais para o rompimento da relações, bem ou mal assessoradas pelos maridos, verdadeiros pais ausentes e distantes dos problemas dos filhos.

Apesar de complexo, trata-se de um filme menor na carreira de Polanski. Não deixa de ser provocativo e polêmico, pois consegue fazer com que um encontro amistoso de retratação se transforme em um exorcismo de almas e mágoas que estavam jogadas debaixo do tapete. A partir disso, surge uma grande discussão regada a bebidas e sessões escatológicas de vômitos. O resultado é um filme inferior aos anteriores.

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