O Passado
O diretor e roteirista Christian Petzold se notabilizou com a trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), tendo recebido o prêmio Urso de Prata por melhor direção no Festival de Berlim. Ambientado nos anos de 1980, num bucólico vilarejo, em pleno regime comunista instalado na Alemanha Oriental, numa análise sobre a divisão do país antes de cair o muro, com o constrangimento da protagonista em ser vigiada e passar por humilhantes revistas íntimas. Phoenix (2014) centralizou a história na judia desfigurada enquanto esteve presa num campo de concentração em Auschwitz, que retorna à sua cidade natal em escombros na busca de um cirurgião plástico para recuperar a imagem deformada decorrente de um passado de perseguições. Fechou a trilogia com Em Trânsito (2018), com cortes certeiros e precisos, concessões moderadas para o espectador, num tom seco e direto com artimanhas adequadas em um painel de flagelo humano das aflições políticas contemporâneas num mundo de dúvidas constantes. Já o último longa-metragem, Afire (2023), foi o ganhador do Prêmio do Júri no Festival de Berlim de 2023 e vencedor do prêmio de Melhor Filme Internacional da Crítica na 47ª. Mostra de Cinema de São Paulo, certamente está entre os melhores do cineasta, abordando os acontecimentos que deixaram sequelas que marcarão as vidas de jovens numa reflexão para uma admirável aprendizagem.
Petzold está de volta com mais uma obra intrigante de suspense psicológico em Mirrors nº. 3 (Espelho em uma tradução livre), que se fez presente na 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. A trama gira sobre Laura (Paula Beer sempre ótima), uma estudante de Berlim que sobrevive milagrosamente a um acidente de carro em que o namorado foi vitimado fatalmente. O fim de semana trágico no campo é um gancho para a protagonista que saiu ilesa, mas profundamente abalada, e ser acolhida por Betty (Barbara Auer de atuação irreparável) na bela residência da testemunha do fato. A senhora que mora sozinha irá cuidar da jovem com muito carinho e uma dedicação excessiva que se torna totalmente obsessiva. Com o desenrolar da história, surgem o marido de Betty (Matthias Brandt) e o filho (Enno Trebs), dois mecânicos que ganham a maior parte do sustento desativando sistemas de GPS ilegalmente em carros luxuosos de membros de uma aristocracia fútil. Eles não moram mais com a idosa que mantém uma relação estranha de distanciamento, com algumas aparições frias. Habilmente o diretor vai introduzindo no ambiente de uma tranquilidade quase familiar entre os quatro personagens, um passado trágico que não pode mais ser ignorado.
Bem distante de abordagens de temas com grande complexidade de seus filmes anteriores, Petzold retrata com um humor ácido e desconfortável essa unidade familiar bizarra que se forma. A curiosidade das partes oferece a oportunidade de colocar em tela algumas expressões que oscilam da fixação para o carinhoso. Um clímax difícil de ser mantido com equilíbrio emocional em situações excêntricas, mas surpreende naqueles belos dias primaveris no interior da Alemanha. O realizador opta em manter o desenrolar da história num nível mais contido e por vezes cômico. As grandes viradas do roteiro são na busca do emocional e em outras da intimidade guardada como segredo pretérito. O impacto não é suficiente para dar ao filme um senso inerente de propulsão, embora a trama seja mantida com alguma expectativa no formalismo inerente e impecável do realizador. Aquelas paredes do casarão são personagens de uma revelação mantida e guardada a sete chaves e que coloca em xeque os enigmas de um drama familiar e seus suspenses.
O realizador mostra a trajetória da jovem estudante e pianista sendo acolhida por uma mãe melancólica de um grave acontecimento que ali permanece como uma sombra eterna e recheada de mistérios. Vive com depressão recorrente levando o dia a dia com muita dor e tristeza. O clima de tensão se instala aos poucos. De um lado, Laura sofre com a perda do namorado e tenta se reerguer. Não imagina que todo o amor afetuoso e o carinho incontido recebido de sua cuidadora de ocasião têm um objetivo único substituir alguém. Uma mãe dilacerada pela dor imensa do luto permanente, que vê na personagem central uma válvula de escape que está mexendo e revirando feridas abertas sem indícios de cicatrização. A narrativa é boa e enfatiza todos os componentes da família com reações estranhas em busca de uma redenção que virá num desfecho de confissão decorrente de uma insustentável tragédia. O diretor parece pouco inspirado e dá mostras de pouca criatividade na condução do enredo. Mesmo assim faz uma obra que perturba, ainda que seja bem menor que seus magníficos filmes anteriores, exagera na dose do minimalismo e na simplicidade do roteiro.
Cabe ressaltar que sempre é bom assistir um filme deste cineasta incontestável e significativo. Petzold é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha, possivelmente o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim. Embora tenha ficado devendo, considerando seu potencial de grande artesão criativo, Mirrors nº. 3 deve ser visto se comparado com o universo de criações comerciais descartáveis e de rara qualidade que pululam nas salas de cinema. Um suspense com suas armadilhas e sugestões sutis e sensíveis dentro de um contexto atual pouco animador. O elenco é homogêneo e sem deslizes, o enquadramento não merece reparos, as elipses estão adequadas e a fotografia é fascinante nas belas imagens captadas pelas lentes de Hans Fromm. Eis um filme correto e limitado, porém com uma razoável amplitude de abordagem e da eficácia nas relações estranhas e pouco pragmáticas dos fragmentos da triste ruptura familiar como espelhos partidos pela perda que desencadeiam em episódios esquisitos de um painel de circunstâncias acumuladas de intrigantes situações humanas. Os elementos opressores obscuros e enigmáticos são retratados por uma realidade de dificuldades impostas por um luto a ser superado. O epílogo traz uma aparente paz e uma libertação das amarras fervorosas que existem advindas de uma grande solidão com o viés de seguir em frente.
