quarta-feira, 17 de abril de 2024

Descanse em Paz

 

Sem Saída

O cinema argentino tem uma característica muito peculiar nas suas abordagens sutis e sensíveis nos temas discutidos, embora muitas vezes o cenário fique em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e a sua eficácia numa temática aparentemente simples, mas sempre de uma boa reflexão como meta a ser atingida. Diretores como Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cachorro (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka (2002); Mariano Cohn e Gastón Duprat em O Homem ao Lado (2009), e outros tantos que se podem dizer como realizadores comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida. Muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares e sociais. Recentemente a dupla María Alché e Benjamín Naishtat nos brindou com a magnífica comédia dramática Puan (2023), em uma temática de boa reflexão da privacidade e das relações filosóficas com a sociedade, que fez uma obra interessante, deixando o enredo correr para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus autores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e algumas amizades.

O cineasta Sebastián Borensztein tem em sua filmografia duas realizações sem bons retrospectos: La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010). Atingiu grande repercussão e amadurecimento, com uma direção de elegância e sutilezas, a partir da bela comédia de costumes Um Conto Chinês (2011), que teve projeção internacional e o tornou conhecido, levando mais de um milhão de espectadores somente em seu país. Depois vieram Kóblic (2016), sobre um integrante da força aérea que havia participado dos chamados voos da morte, quando opositores da ditadura eram drogados e jogados ao mar, e A Odisseia dos Tontos (2019), postulante da Argentina indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2020, todos os três protagonizados pelo astro Ricardo Darín. Agora vem do país vizinho o drama Descanse em Paz, em cartaz com exclusividade na plataforma da Netflix, último filme do diretor que também assina o roteiro em parceria com Marcos Osório Vidal, numa adaptação de um romance com o mesmo título escrito por Martín Baintrub, entrelaçando elementos de eventos históricos e incidentes da história argentina.

A trama retrata Sergio (Joaquín Furriel), um homem voltado para a família, mas com dívidas imensas, além de alguns problemas de saúde, que se aproveita de uma circunstância improvável para desaparecer sob uma identidade falsa e fugir para o Paraguai, com a intenção de salvar seus parentes próximos dessa ruína. O diretor reconstitui habilmente o atentado antissemita à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 18 de julho de 1994, que ceifou 85 vítimas fatais, e deixou centenas de feridos, inclusive pessoas que estavam na rua aleatoriamente. Só foi superado pelo de 7 de outubro passado em Israel, numa ação semelhante pela brutalidade. Após muitos anos longe de seu país, uma descoberta casual na rede social vem à tona, fazendo com que a tentação e a curiosidade de saber como estão sua esposa, Estela (Griselda Siciliani) e seus dois filhos, agora já adultos, que ele deixou para trás. Foram reivindicados os benefícios de seguro de vida para quitar a inadimplência financeira pessoal do protagonista, que devia uma fortuna para um agiota poderoso, Hugo (Gabriel Goity) e alguns amigos. Este é o ponto de partida decorrente da crise enfrentada pela economia nas últimas décadas. O presente que o pai quer dar à filha aniversariante em meio à pobreza exposta nas ruas são reveladores de um momento patético e sem saída, como uma metáfora da nação mergulhada numa infração de mais de três dígitos, além do déficit impagável ao FMI.

O acontecimento é um elemento exterior que irá dar luzes ao personagem central como uma oportunidade de criar uma nova personalidade com uma identidade falsa para tentar salvar o microcosmo familiar em perigo pelas consequências de seu passivo devedor insolúvel que enfrenta. No exterior, tem apenas uma cadela como amizade fiel, o desenho na parede do filho, e uma nova companheira de ocasião, Ilu (Lali González), como estímulos de vida para buscar a redenção. A realização traz uma boa reflexão sobre o papel do dinheiro em nossa sociedade, como as mudanças que irão advir no epílogo com tintas trágicas, como se evidencia na cena final, além do amor incondicional e aqueles que tentam ajudar na cura da solidão diante da racionalidade fragilizada e exposta à humilhação. O paradoxo desarmônico da comunicação interrompida está em conflito nas imagens captadas na internet, em que os valores dados às vidas e às amizades são exaltados como artificialidades, deixando em situação frágil a ética e a solidariedade, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexo deste hospício chamado mundo.

Borensztein aponta a magia das relações humanas estilhaçadas que prevalece e dita o filme pela sutileza e os rumos que são destinados aos personagens. Descarta as muitas obviedades e tempera o gelo do relacionamento do improvável casal aparentemente feliz, que o surpreende, tornando ácida as críticas fundamentadas, numa prazerosa meditação sobre os desiguais financeiramente e os esquivos seres que chegam aos seus destinos e encontram seus novos vínculos fraternos. O protagonista representa não apenas sua transformação de empresário a empregado. A questão pretérita não foi bem resolvida pelo suposto gesto de dignidade entrelaçada com uma coragem, talvez discutível, embora fosse a maneira única, quem sabe, de um anti-herói para salvar uma tragédia ainda maior. Não é uma solução fácil a ser resolvida diante do beco sem saída. A cena da cerimônia da festa invadida por um fantasma do passado é comovedora e ressalta o impasse da situação buscada como resgate, embora o ritual festivo não fosse suficiente para colocar um fim na crise. Os novos horizontes com os rumos de uma paz atingida por tiros como nos antigos duelos soçobrarão como sequelas. Ficam as reflexões para os espectadores tirarem suas deduções que confrontam as complexidades morais e as repercussões das situações criadas pelo protagonista em suas emoções para resolver o cotidiano em circunstâncias desesperadoras. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com méritos este instigante filme sobre a injustiça pela justiça da redenção através da fantasiosa missão pela recuperação da dignidade.

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