
Desconstrução dos
Mitos
A cineasta Jane Campion, aos 67 anos, realiza com grandes
méritos seu primeiro western esbanjando sobriedade, formalismo e firmeza neste admirável
Ataque dos Cães. Concorrerá e é forte
candidato em doze categorias ao Oscar de 2022, entre elas: melhor filme,
direção (ganhou neste ano o Leão de Prata no Festival de Veneza), ator, ator
coadjuvante, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, fotografia e trilha sonora, está disponível na Netflix.
É o retorno da festejada diretora doze anos depois de seu último longa-metragem, Brilho de Uma Paixão (2009). Baseado no livro de Thomas Savage, publicado em
1967, no qual ela escreveu o roteiro que se passa no ano de 1925, ambientado em
Montana, um Estado que fica ao oeste dos EUA, foi rodado nas lindas paisagens
dos verdes prados da Nova Zelândia, país de origem da realizadora. Cria com
sensibilidade e muita sutileza personagens fortes e marcantes numa história de
faroeste crepuscular para desconstrução do mitológico caubói macho alfa invasivo
e agressivo. Tem em sua filmografia vários sucessos como a série policial Top of the Lake (2013-2017), Cada Um Com Seu Cinema (2007), Retrato de Uma Mulher (1996), e sua obra
mais aclamada ainda é O Piano (1993),
quando ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e recebeu o Oscar de Melhor
Roteiro Original.
A história é contada em atos com bons artifícios
conhecidos no Velho Oeste, porém sem abusar de perseguições recorrentes em
obras menores, opta pela ausência de tiroteios forçados ou balas perdidas por
tudo quanto é canto e lugares inimagináveis. Há na trilha sonora cativante do guitarrista
e compositor britânico da banda Radiohead, Jonny Greenwood, sendo executada com
perfeição, como uma mola mestra condutora vai ditando o clímax de suspense das cenas. Os
cenários são grandiosos e caracterizadores do gênero, onde os cavalos estão
sincronizados pelas frondosas árvores, montanhas, rios, ranchos, neve e de um
pôr do sol esplêndido e por vezes revelador de um novo dia, magistralmente
captados nas lentes da fotógrafa australiana Ari Wegner. Cada detalhe, movimento
da câmera, luz, fotografia e o figurino estão harmonicamente distribuídos com
primazia e colocados em seus lugares exatos, pontuais e com fidelidade. Segue o
melhor estilo estético dos grandes clássicos. Lembra o inesquecível Os Imperdoáveis (1992), de e com Clint
Eastwood; remete para Rio Vermelho (1948),
de Howard Hawks e Arthur Rosson; como não poderia deixar de ter referências em Rastros de Ódio (1956) e No Tempo das Diligências (1939), ambos
do genial John Ford, com construções fantásticas de personagens; mas como
esquecer Meu Ódio Será Sua Herança (1969),
de Sam Peckinpah; ou Os Brutos Também
Amam (1953), de George Stevens; e mais recentemente Bravura Indômita (2010), dos irmãos Ethan e Joel Coen, e Relatos do Mundo (2020), de Paul
Greengrass.
A narrativa é bem urdida sobre Phil (Benedict Cumberbatch- a
melhor interpretação de sua carreira) e George (Jesse Plemons- discreto e
eficiente no papel), dois irmãos ricos e proprietários da maior fazenda da
região. Enquanto o primeiro é um homem duro, cruel, homofóbico e arrogante, ainda
que seja formado em filosofia, leva a vida de vaqueiro por opção, inspirado no
ídolo do passado Bronco Henry, que exerce uma figura quase que paterna, mas com
ilações de uma relação secreta mais íntima. Já o segundo é uma pessoa gentil, quieta,
educada, que não demonstra muito interesse nesta vida de cowboy, embora esteja
mais preocupado com a família, preza a justiça. A relação dos dois azeda de
vez quando George se casa com a viúva alcoólatra, Rose (Kirsten Dunst), por
quem o irmão mais novo nutre um desprezo pelo filho dela, ao humilhar Peter (Kodi Smit-McPhee). Faz
brincadeiras grosseiras àquele jovem que estuda medicina e tem gestos e
maneiras delicadas de se comportar. A abordagem reflete o poder, a inveja, a solidão
e os desejos reprimidos por força de um tóxico ambiente machista na sua
essência, onde é preciso manter uma postura de masculinidade intensa como dita
a sociedade conservadora, sem que as fragilidades apareçam, beira a ignorância
e o recalque do protagonista em relação aos demais. A realizadora retrata com profundidade
rara as sutilezas e simbologias por trás de personagens psicologicamente
debilitados, em especial, Phil que vai sendo desmascarado aos poucos, e o dócil
Peter de aparente ternura, mas com a vingança sendo arquitetada no contexto
diário de aspereza.
Ataque dos Cães teve
o título baseado num trecho bíblico extraído do Salmo 22, que profetiza o
seguinte: "Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão". Servirá
como uma espécie de aviso de que o perigo está rondando, sendo iminente as
trágicas consequências. As cenas que remetem para as montanhas com as supostas
gravuras de ataques caninos, deixam o espectador vigilante e atento para a
realidade ou as superstições que aflorarão. O silêncio recorrente que fascina, os
gestos e os olhares que falam, e progressivamente revelam as carências
decorrentes daquelas aparências contraditórias num ambiente fortemente contextualizado
pela hostilidade. Campion traz à baila e coloca em xeque a masculinidade
através de um pseudofóbico para mirar seu foco nas fraquezas retumbantes das relações
e os seus vínculos afetivos sendo demolidos com refinada delicadeza, através de
pequenos detalhes, diálogos e simbolismos, no qual os desejos são anestesiados ou
a homoafetividade é sufocada. Tema este que foi bem retratado no western O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, na qual a repressão aparece
de forma contundente como uma luz lançada para a aceitação de como são os
indivíduos pelas suas criações e educações familiares.
Eis uma alegoria do ranço homofóbico imperante numa
comunidade conservadora com valores ultrapassados. Os resquícios de um sistema
que ainda segue com os velhos tabus sem abrir mão da liberdade, especialmente
das minorias, mesmo que seja um ente próximo, porém visto com desdém e com
ausência de carinho e fraternidade. Os laços e vínculos irão ao encontro de
pessoas desconhecidas como um ato de harmonia pela aproximação casual nos
conflitos permanentes, embora haja um sopro de lucidez para o recomeço de novas
vidas que estavam vendo um ciclo se fechar, que irá conduzir para a reflexão
dos destinos marcados, como decorrência dolorida da solidão e da sombria
rejeição pela escolha da sexualidade. A cineasta utiliza a morte sendo
reverenciada no epílogo até com alguma suavidade, tendo na condição do ora
suposto amigo, vendo o tempo se escoando, conduz para o tema da vingança no
final por uma reviravolta surpreendente e sombria do instigante roteiro, com o exorcismo dos
fantasmas do cotidiano. É a contingência do desaparecimento nos percalços da
vida que passa rápido, fica um outro mundo de reminiscências e uma melancolia
enternecedora, num grande final com emoção e digno de um fabuloso faroeste.