Manifesto Pacifista
A diretora Susanne Bier era integrante do controvertido Manifesto Dogma 95, nascido e propagado
na Dinamarca, mas aos poucos está se desvencilhando. Ou seja, livra-se
totalmente como neste seu último longa-metragem Em
um Mundo Melhor , com uma produção bem mais arrojada e um
custo mais elevado, longe dos princípios norteadores de uma câmara na mão, uma
ideia de um cunho técnico com uma série de restrições quanto ao uso de
tecnologias nos filmes, com regras quanto ao conteúdo das obras e seus
diretores, radicalmente contra a indústria cinematográfica propriamente dita.
O longa trata de duas famílias que o destino fará que se
cruzem por linhas tortas. Anton (Mikael Persbrandt, em notável desempenho) é um
médico sanitarista que trabalha num campo de refugiados, num longínquo país da
África em convulsão social, tendo um ditador que comanda as atrocidades, lembra
em muito o Laurent Gbagbo, ex-presidente da Costa do Marfim, preso recentemente
no suntuoso palácio do governo. Na Dinamarca, ficaram seus dois filhos e sua
ex-mulher, a também médica Marianne (Trine Dyrholm). Os dois acabaram de se
divorciar, embora Anton ainda tente a reconciliação e tenha lembranças
amorosas. Seu filho mais velho, Elias (Markus Rigaard) sofre um insuportável bullying na escola, porém terá o apoio
do imigrante recém-chegado de Londres Christian (Willian Johnk Nielsen), que
acabara de perder a mãe por câncer e com a ajuda direta do pai Claus (Ulrich
Thomsen), levando-a a eutanásia, sem o perdão do filho enlutado, que se mostra
revoltado e com instintos suicidas e assassinos, tal qual o psicopata retratado
em O Anjo Malvado
(1993), com Macaulay Culkin, que também perdera a mãe.
Bier se debruça com elegância e eloquência na ideia do
pacifismo e da luta obstinada por um mundo com outro cara, ao abordar de forma
magistral as emoções humanas oriunda da dor, do amor, dos conflitos sociais e
da vingança, inerentes ao ser humano e suas precariedades como espécie. A união
dos dois garotos, sendo que Christian busca a vingança como instinto de
preservação e soberania do macho, ao não suportar a ideia da morte da mãe
induzida pelo pai, ainda que este ato fosse por uma eutanásia consentida
expressamente pela esposa, rompe os laços de amizade com o pai como símbolo
alegórico do fracionamento com o mundo, deixando que Claus se sinta na condição
da paternidade ausente; já Elias apanha calado e se submete aos delírios
demoníacos do amigo que lhe sopram nos ouvidos, tendo um pai conciliador que é
agredido por um mecânico brutamonte e incivilizado, ao retornar à oficina dá o
rosto para que fosse batido novamente, numa alusão a Cristo que oferece as duas
faces e diz: "ele é um idiota e se bater nele, também serei um". Mas
ainda não satisfeito com o que diz ao filho e seu amigo desejoso de vingança,
prega com convicção: "é assim que as guerras começam".
Anton não é um modelo exemplar de marido, ao buscar sua
reconciliação com Marianne, as vísceras do ressentimento são expostas pela
mulher e o sentimento de tristeza pela traição aflora e o perdão fica difícil
de acontecer numa clara alusão da diretora, de que não há anjos bons e nem
todos são tão maus assim. Tudo é possível se consertar neste enunciado
explícito do magnífico Em um Mundo Melhor.
Mas as consequências trágicas no final e a redenção de Christian, ao receber o
afeto de Anton, após seu choque frontal com Marianne, mostra o caminho pelo
amor, da conciliação e dos conflitos humanos e suas emoções, enraizados na obra
de Susanne, assim como Assuntos de
Família (1994), Corações Livres
(2002), Depois do Casamento (2006) e Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007).
O bullying, eutanásia e conflitos
sociais com revoluções na África são novidades em sua filmografia arrebatadora,
sempre voltada para as constantes questões sensíveis e humanitárias.
Nesta película vencedora do Oscar de melhor filme
estrangeiro de 2011, assiste-se paradoxalmente com prazer e angústia ao mesmo
tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores, ao refletir os
problemas dos adultos em consonância com dos pré-adolescentes conflitados com
suas mágoas e reivindicações devastadoras e virulentas. Como não podemos fechar
os olhos para os regimes ditatoriais que estão sempre na efervescência social
da África, como no caso específico do longa.
A cineasta aborda com maturidade e serenidade nas questões
do bullying, eutanásia e conflitos
sociais da miséria de um povo, sem ter uma visão unilateral, mas voltada sempre
para o debate e o pacifismo fundamental como pregação manifesta e objetiva da
sensatez, sem se afastar dos dilemas que atordoam o absurdo dos corações e
mentes das pessoas, nem deixar de cutucar com sutileza o direito da vingança.
Um filme maior e notável pelos temas abordados com a
profundidade adequada, sem incorrer no discurso barato e vazio, insere-se como
um elogiado manifesto pacífico num mundo acostumado aos atos violentos e
chocantes de pessoas cada vez mais distanciadas das "coisas que perdemos
pelo caminho", em homenagem a citação do título desta excelente cineasta
dinamarquesa.
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