quarta-feira, 13 de abril de 2011

Em um Mundo Melhor














Manifesto Pacifista

A diretora Susanne Bier era integrante do controvertido Manifesto Dogma 95, nascido e propagado na Dinamarca, mas aos poucos está se desvencilhando. Ou seja, livra-se totalmente como neste seu último longa-metragem Em um Mundo Melhor, com uma produção bem mais arrojada e um custo mais elevado, longe dos princípios norteadores de uma câmara na mão, uma ideia de um cunho técnico com uma série de restrições quanto ao uso de tecnologias nos filmes, com regras quanto ao conteúdo das obras e seus diretores, radicalmente contra a indústria cinematográfica propriamente dita.

O longa trata de duas famílias que o destino fará que se cruzem por linhas tortas. Anton (Mikael Persbrandt, em notável desempenho) é um médico sanitarista que trabalha num campo de refugiados, num longínquo país da África em convulsão social, tendo um ditador que comanda as atrocidades, lembra em muito o Laurent Gbagbo, ex-presidente da Costa do Marfim, preso recentemente no suntuoso palácio do governo. Na Dinamarca, ficaram seus dois filhos e sua ex-mulher, a também médica Marianne (Trine Dyrholm). Os dois acabaram de se divorciar, embora Anton ainda tente a reconciliação e tenha lembranças amorosas. Seu filho mais velho, Elias (Markus Rigaard) sofre um insuportável bullying na escola, porém terá o apoio do imigrante recém-chegado de Londres Christian (Willian Johnk Nielsen), que acabara de perder a mãe por câncer e com a ajuda direta do pai Claus (Ulrich Thomsen), levando-a a eutanásia, sem o perdão do filho enlutado, que se mostra revoltado e com instintos suicidas e assassinos, tal qual o psicopata retratado em O Anjo Malvado (1993), com Macaulay Culkin, que também perdera a mãe.

Bier se debruça com elegância e eloquência na ideia do pacifismo e da luta obstinada por um mundo com outro cara, ao abordar de forma magistral as emoções humanas oriunda da dor, do amor, dos conflitos sociais e da vingança, inerentes ao ser humano e suas precariedades como espécie. A união dos dois garotos, sendo que Christian busca a vingança como instinto de preservação e soberania do macho, ao não suportar a ideia da morte da mãe induzida pelo pai, ainda que este ato fosse por uma eutanásia consentida expressamente pela esposa, rompe os laços de amizade com o pai como símbolo alegórico do fracionamento com o mundo, deixando que Claus se sinta na condição da paternidade ausente; já Elias apanha calado e se submete aos delírios demoníacos do amigo que lhe sopram nos ouvidos, tendo um pai conciliador que é agredido por um mecânico brutamonte e incivilizado, ao retornar à oficina dá o rosto para que fosse batido novamente, numa alusão a Cristo que oferece as duas faces e diz: "ele é um idiota e se bater nele, também serei um". Mas ainda não satisfeito com o que diz ao filho e seu amigo desejoso de vingança, prega com convicção: "é assim que as guerras começam".

Anton não é um modelo exemplar de marido, ao buscar sua reconciliação com Marianne, as vísceras do ressentimento são expostas pela mulher e o sentimento de tristeza pela traição aflora e o perdão fica difícil de acontecer numa clara alusão da diretora, de que não há anjos bons e nem todos são tão maus assim. Tudo é possível se consertar neste enunciado explícito do magnífico Em um Mundo Melhor. Mas as consequências trágicas no final e a redenção de Christian, ao receber o afeto de Anton, após seu choque frontal com Marianne, mostra o caminho pelo amor, da conciliação e dos conflitos humanos e suas emoções, enraizados na obra de Susanne, assim como Assuntos de Família (1994), Corações Livres (2002), Depois do Casamento (2006) e Coisas que Perdemos pelo Caminho (2007). O bullying, eutanásia e conflitos sociais com revoluções na África são novidades em sua filmografia arrebatadora, sempre voltada para as constantes questões sensíveis e humanitárias.

Nesta película vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2011, assiste-se paradoxalmente com prazer e angústia ao mesmo tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores, ao refletir os problemas dos adultos em consonância com dos pré-adolescentes conflitados com suas mágoas e reivindicações devastadoras e virulentas. Como não podemos fechar os olhos para os regimes ditatoriais que estão sempre na efervescência social da África, como no caso específico do longa.

A cineasta aborda com maturidade e serenidade nas questões do bullying, eutanásia e conflitos sociais da miséria de um povo, sem ter uma visão unilateral, mas voltada sempre para o debate e o pacifismo fundamental como pregação manifesta e objetiva da sensatez, sem se afastar dos dilemas que atordoam o absurdo dos corações e mentes das pessoas, nem deixar de cutucar com sutileza o direito da vingança.

Um filme maior e notável pelos temas abordados com a profundidade adequada, sem incorrer no discurso barato e vazio, insere-se como um elogiado manifesto pacífico num mundo acostumado aos atos violentos e chocantes de pessoas cada vez mais distanciadas das "coisas que perdemos pelo caminho", em homenagem a citação do título desta excelente cineasta dinamarquesa.

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