terça-feira, 13 de julho de 2010

Festival Varilux Cinema Francês (O Pequeno Nicolau)



O Pequeno Nicolau

A cinematografia francesa é especialista em realizar filmes sobre crianças. A abordagem quase sempre vem marcada pelas traquinagens gostosas, mostrando uma infância sadia, afastando o lado precoce e debruçando-se sobre os problemas de maneira eloquente, sem as basbaquices encontradas em realizadores americanos que preferem elevar num patamar superestimado ou subestimar os pimpolhos.

Dá prazer em assistir a este belo longa-metragem infantil O Pequeno Nicolau, dirigido exemplarmente por Laurent Tirard, um ex-jornalista da revista de cinema Studio Magazine, que dirigiu As Aventuras de Molière (2007), com um roteiro impecável de Alain Chabat e René Goscinny, uma fotografia perfeita de Denis Rouden, com elenco de primeiríssima qualidade da garotada, bem assessorados por Valérie Lemercier, como a mãe de Nicolau; Kad Merad como o pai do menininho; e a bela professorinha Sandrine Kiberlain, de atuação magnífica também como uma professora do interior da França em Mademoiselle Chambon (2009). Goscinny foi quem escreveu as histórias em quadrinhos e também é um dos criadores de Asterix e sua turma, publicadas originalmente de 1956 a 1964 na França, com o desenho de Jean-Jacques Sempé.

A trama mostra Nicolau (Máxime Godart) levando uma vida pacífica com seus amiguinhos do colégio, sempre atentos para aprontar uma boa sacanagem com alguém ou entre eles mesmos. Tudo é perfeito e maravilhoso no mundo encantado, até que um belo dia ouve a conversa do pai com a mãe pela porta entreaberta e coloca na cebecinha que terá um maninho e será posto de lado e que seus pais não terão mais tempo para ele. Acaba quase que surtando de pavor. Cisma que será abandonado definitivamente na floresta como o Pequeno Polegar. Tenta conquistar o velho amor maternal e paternal, fazendo um lobby para demonstrar que é imprescindível naquela casa. Mais desagrada do que agrada. Surge a ideia de fazer desaparecer com a criança que ainda nem nasceu, montando com seus amiguinhos várias estratégias e planos mirabolantes para um sequestro relâmpago. Assim é Nicolau, um menino bonito e desconfiado, com sentimentos de rejeição e com a floresta atormentando seus sonhos e com o estigma do imaginário irmão perturbando seu cotidiano até então intocável, fruto da conversa com o coleguinha frustrado Joaquim (Virgile Tirard) que tem fantasias que afloram e rondam sua mente.

Os planos para fazer sumir o nascituro é muito engraçado e por vezes chocante. Do painel de amiguinhos surge o "gordinho rechonchudo" sempre comendo e com tiradas satíricas de bom gosto. Outro garoto que se destaca é o intelectual, com boas ideias e um planejamento de dar inveja. Tem o "nerd", também reconhecido por ser "CDF" ou "dedo-duro", com seus imensos óculos ridículos de armação quadrada, aquele que tudo sabe e está sempre pronto para entregar um colega em aula para a professorinha simpática, até que num dia de azar é substituída temporariamente por uma professora durona, que logo faz o falso sabichão entrar em crise existencial, terminando por conhecer o castigo pelas mãos de Clotário (Victor Carles), de desempenho notável, roubando literalmente as cenas quando surge na tela, diante de sua personalidade com lapsos de memória, distraído e dorminhoco em aula. Esta cena é reveladora e sintetiza como numa alegoria os meandros do civilizado, bom caráter e humilde contrastando com a prepotência, egoísmo e subserviência.

Outras duas cenas emblemáticas. Uma, quando o ministro de Educação faz uma pergunta e um silêncio sepulcral se estabelece na sala, sem haver nenhum piscar de olhos dos garotinhos, revelando a síntese da repressão, pois os alunos foram orientados anteriormente para não se manifestarem, surgindo a opressão clássica. Em outra cena é sugerido o castigo pelo educador ao impagável Clotário, símbolo da distração e rebeldia às normas comportamentais de estilo, para escrever uma frase de retratação por mais de 200 vezes. O pseudoeducador ajuda e termina por redigir a maioria delas, pois há pressa em ir embora, revelando o simbolismo de uma latente corrupção nos bancos escolares.

Os pais de Nicolau são interesseiros e grotescos, o pai é o legítimo puxa-saco do patrão, servindo de capacho para alcançar um posto mais elevado na empresa, embora seja um bonachão; a mãe é uma dona de casa, que fustiga o "amado" o tempo todo para que ele obtenha na marra uma promoção e melhore sua condição financeira. Só vê dinheiro na sua frente, planeja um jantar com o empresário e sua esposa, redundando num fiasco monumental, embebedando-se até cair por coma alcoólico, desaba com sua falta de civilidade. Para complicar um pouco mais o casal, tem o vizinho bisbilhoteiro que está sempre na cerca sem muro, ouvindo conversas indesejadas ou desejadas e fofoqueando.

O Pequeno Nicolau é um filme sobre crianças, mas para as crianças e os adultos. Tem como similares e referências duas obras-primas de François Truffaut, sendo uma o precursor da Nouvelle Vague, Os Incompreendidos (1959), e a outra Na Idade da Inocência (1976), de François Truffaut, drama mostrando a transição da infância para adolescência vista pela ótica de dois meninos. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto, sofre as chacotas dos mais velhos e dos adultos. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme indiscutível e magistral sobre infância, abordando um garoto que queria capturar um cavalo selvagem e disputava-o com vaqueiros adultos com a mesma intenção. Outro filme extraordinário sobre a infância vem do Irã, com direção de Jafar Panahi, O Balão Branco (1995), sobre uma menininha que quer comprar um lindo peixe dourado e gordinho, mas seu irmão tenta ajudar numa busca incessante pelo dinheiro, apronta algumas estrepolias pelo caminho.

Já nas cenas de sala de aula lembram em muito outra obra-prima francesa Entre os Muros da Escola (2008), de Lurent Cantet, sobre os reflexos da escola na sociedade perdida e desorientada, questionando os professores de ensinar para quem? Para que? A mostra da transgressão e a a capacidade da escola e dos docentes, bem como a sociedade e o microcosmo familiar, com a perda da energia em determinadas circunstâncias. A condensação nas salas de aulas de alunos conflitados e tensionados. Também a similitude com A Guerra dos Botões (1962), comédia dramática francesa de Yves Robert, numa sátira maravilhosa à guerra dos adultos, tendo como dois líderes estudantis de duas cidades adversárias, que se propõem a brigar e arrancam os botões dos casacos e confiscam os cintos, para que os pais os castiguem.

O longa tem a fantasia infantil nesta magistral obra, demonstrando toda espontaneidade e ingenuidade das crianças, nos seus devaneios delirantes de suas ideias e invenções dignas de pessoas ainda em formação, com um futuro que lhe causam dúvidas e um certo receio, vendo fatalismo até mesmo no nascimento de um irmão. Há as frustrações oriundas até do sexo do recém-nascido, demonstrando a insatisfação das pessoas sempre por algo que não está ao alcance próximo, mas que poderia ser simplificado, característica típica do ser humano e sua busca eterna pela realização pessoal ou pelo objetivo indefinido e distante. Mas Nicolau chora na última cena com a surpresa que lhe aguarda, pensando que nunca mais poderá ser feliz, deixa sua frase otimista e reflexiva nesta singular película: "Quando eu crescer, vou fazer as pessoas rirem."

Um comentário:

CRISTINA ANDRÉIA DE BORBA FIGUEIRÓ - Advogada disse...

Eu ainda não assite o filme o Pequeno Nicolau, mas pelo que li nesta crítica vale a pena ir ao cinema assistir. Parece ser muito rico na construção do imaginário infantil. Filme francês tem a característica de provocar muita reflexão. Vou conferir no cinema.