quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (O Roteiro da Minha Vida- François Truffaut)

 

Um Grande Legado

Uma das aguardadas atrações do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano era o documentário O Roteiro da Minha Vida- François Truffaut, dirigido por David Teboul, que também assina o roteiro com Serge Toubiana e Antoine de Baecque. Baseado na biografia dos roteiristas sobre François Truffaut (1932-1984), publicada em 1996, editora Record, além de escritos inéditos do realizador. Teboul explora a ligação entre os filmes para uma construção com um ângulo intimista. O espectador terá algumas inusitadas revelações, detalhes e situações densas até então desconhecidas sobre a vida do cineasta. Alguns mistérios são decifrados com luzes sendo lançadas na controvertida e tumultuada carreira de uma trajetória pequena, tendo em vista que faleceu precocemente com 52 anos, de câncer no cérebro, sendo um ícone da história do cinema do século XX. Uma das marcas do meritório diretor foi ser um dos nomes expoentes que fundou o célebre movimento cinematográfico Nouvelle Vague nos anos de 1950 e 1960, insatisfeito com os rumos da indústria do cinema, juntamente com outros cineastas, tais como: Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette.

O documentário segue um estilo convencional narrado em off, às vezes exagera e se torna didático, repetitivo e cansativo. A edição e a montagem apresentam falhas, com ausência de informações precisas, muitas vozes com depoimentos pouco importantes, embora os recortes do imenso arquivo de imagens da filmografia sejam adequados. O protagonista era um aficionado por filmes, escolhia lugares nas primeiras cadeiras para ficar mais perto da tela e mergulhar nas histórias de Alfred Hitchcock e Howard Hawks. Escreveu para Cahiers do Cinema, do editor André Bazin, quase que um pai do Truffaut na importante revista, que também morreu cedo, com 40 anos, em 1958. Os textos demonstravam ser um ferrenho crítico do cinema francês praticado na época pelos métodos utilizados que resultavam em realizações artificiais e ruins, porque os diretores preferiam trabalhar somente em estúdios que permitiam um controle de som, luz e movimentos de câmera insossos e simples. Posteriormente, largaram as máquinas de escrever para carregar câmeras filmadoras, surgindo uma série de filmes e realizadores revolucionários conhecidos pelo movimento que fundaram.

A biografia adaptada para o filme aponta entre curtas e longas-metragens 25 realizações, iniciando com o curta Uma Visita (1955) e finalizando com o longa De Repente, Num Domingo! (1983). Menciona os mais admirados como Jules e Jim- Uma Mulher Para Dois (1961), A Sereia do Mississipi (1969), As Duas Inglesas e o Amor (1971), O Último Metrô (1980), O Homem Que Amava as Mulheres (1970), A Mulher do Lado (1981), e o clássico Os Incompreendidos (1959), com boa dose autobiográfica, na qual mostra uma infância desestruturada, beirando a marginalidade, com falta de comida diante da ocupação nazista na França. São marcantes a falta de afeto da mãe ausente e de um padrasto, Roland Truffaut, que nunca assumiu a referência masculina paterna. Ambos o viam como um estorvo, não tinham nenhum pudor em livrar-se do filho quando surgiam viagens nos fins de semana, férias, e até na celebração de Natal. A morte e a perda deixaram sequelas profundas para sempre por não conhecer seu pai biológico. A resposta do Truffaut adulto aos infortúnios da puberdade, a detenção por furto, os escapes sedutores para ir ao cinema, que se tornou um ritual obsessivo, veio transformada em inspiração para filmes autobiográficos com uma mescla de dados da realidade, evocações variadas sem necessariamente implicarem das memórias pessoais.

Truffaut e Godard eram muito amigos, mas acabaram brigando e rompendo os laços profissionais, abordado superficialmente. Godard se tornou mais político e criou o grupo Dziga Vertov, praticamente abandonando o cinema dito convencional. Truffaut se rendeu ao cinema americano, inclusive atuou no papel de cientista-chefe na obra vencedora do Oscar de melhor de filme estrangeiro em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), de Steven Spielberg. Venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro com A Noite Americana (1973) ao falar de sua paixão pela sétima arte. O grande amor de sua vida foi Madeleine Morgenstern, ficaram casados de 1957 a 1965, com quem teve duas filhas (Laura e Éva). Apaixonou-se por muitas atrizes de seus filmes, celebrando o amor pela figura da mulher, entre elas estão: Julie Christie, Catherine Deneuve, Claude Jade, Françoise Dórleac, Jacqueline Bisset, Jeanne Moreau, Marie-France Pisier e Fanny Ardant, com quem teve uma filha (Joséphine).

O documentário deixou de mostrar o ator Jean-Pierre Léaud que encarnava o personagem Antoine Doinel sendo premiado com a Palma de Ouro honorária do 69º. Festival de Cannes, em 2016. Léaud estreou no evento apresentando Os Incompreendidos, seu primeiro trabalho como protagonista, aos 14 anos, com o personagem era Doinel, alterego de Truffaut que voltaria a encarnar em Antoine e Colette (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979). A postura política do cineasta foi marcante ao lado de Godard nos protestos que levaram ao cancelamento do Festival de Cannes em 1968, uma espécie de continuidade da rebelião do famoso maio daquele ano, em Paris, ainda que na juventude tivesse alguma simpatia pelas posições de direita. Era um leitor compulsivo, por isto entrevistou Hitchcock por 8 dias consecutivos em Los Angeles, que deu origem ao livro Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, produzindo uma publicação de referência nas livrarias para os abnegados cinéfilos e estudiosos. Louvável o esforço para reconstruir a sua memória com um legado magnífico para quem viveu pouco. A sucessão de perdas o envolveu, mas a tragédia nunca barrou sua arte, exceto quando esteve internado numa clínica com depressão. Há passagens em que se discutem as representações do amor e da sexualidade no cinema, sempre enfatizando a Nouvelle Vague na busca obstinada de formas mais autênticas e coerentes para representar o ser humano nesta interessante reflexão, mesmo com seus equívocos, sobre a vida e a celebração existencial.

sábado, 16 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (Bolero, A Melodia Eterna)

 

Um Gênio Revisitado

O mais aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês era Bolero, A Melodia Eterna, com direção da producente francesa Anne Fontaine. A cineasta, que depois de atuar em algumas comédias, realizou seu primeiro filme, Les Histoires d'amour finissent mal…en general (1993), ganhador do Prêmio Jean Vigo, sendo dela também o elogiado Lavagem a Seco (1997), premiado no Festival de Veneza; o drama psicológico Nathalie X (2003); A Garota de Mônaco (2008); o festejado Coco Antes de Chanel (2009), Meu Pior Pesadelo (2011); Amor Sem Pecado (2013), Gemma Bovery (2014), Agnus Dei (2015), e Marvin (2017), entre tantos outros. Volta com esta extraordinária cinebiografia do pianista, compositor e regente francês Maurice Ravel (1875-1937), que demonstrava interesse pela música desde os 7 anos. Reconhecido pela sutileza das suas melodias instrumentais e orquestrais, entre elas está a obra-prima Bolero, que ele considerava trivial e descreveu como “uma peça para orquestra sem música”. A interpretação de Raphaël Personnaz não poderia ser melhor, de forma magistral, com muito vigor e uma técnica apurada, é conhecido especialmente por atuar em O Palácio Francês (2012), de Bertrand Tavernier, Uma Nova Amiga (2014), de François Ozon, e na série L'Opéra: Nos Bastidores do Balé (2021-2022).

O longa-metragem foi ambientado em 1928, nos “anos loucos” de Paris, onde brilhava a atriz e dançarina russa bissexual Ida Rubinstein (1885-1960), interpretada por Jeanne Balibar. Celebrizada por sua beleza, senso de expressividade e audácia no palco, rica, financiou inúmeros artistas e fundou a sua própria companhia. Encomendou ao compositor uma música especial para seu próximo provocante balé sensual com toques de erotismo, em uma dança revolucionária para os tempos da época, com data agendada de três meses para estrear no teatro. Ravel enfrenta uma crise existencial com pouca inspiração, assediado pelas mulheres, evitava relacionamentos íntimos, tinha como comportamento amores platônicos, sem sexo. Deixa transparecer uma relação edipiana com a mãe, a qual venerava. Pagava prostitutas para conversar e dançar, se afastava constantemente de sua musa inspiradora casada, Misia Sert (Doria Tillier), em um amor impossível, com argumentos evasivos. Os capítulos de sua vida eram desafios constantes, alistou-se como voluntário para servir seu país com marcas indeléveis da Grande Guerra. Em constante contradição pessoal, decide dedicar-se de corpo e alma à criação de uma obra universal, o clássico Bolero, no qual sonhava fosse apresentado numa fábrica, uma utopia pessoal, e não num teatro, motivo pelo qual entrou em atrito com Rubinstein.

Um filme com algumas semelhanças com outras cinebiografias, embora mais ousado, com algumas diferenças do documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; pouco ou nada a ver com Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações sobre grandes estrelas. Bolero, A Melodia Eterna foi adaptado livremente do livro de Marcel Marnat (editora Fayard, de 1986). Fontaine cria com rara sensibilidade e uma delicadeza sofisticada como uma obra singular ao retratar a complexa personalidade do artista que tinha sua maior paixão a arte pela música, com suas neuroses, angústias, num clima dolorido e de muita melancolia para explorar a origem dessa música de repetidas batidas sonoras. Sofria com as críticas especializadas e por várias vezes foi reprovado em concursos públicos, teve passagens pelos EUA e Espanha, na busca da inspiração agonizante que teimava em resistir.

Uma construção com uma criteriosa sutiliza e uma trama fascinante sobre a complexa personalidade de um gênio, que não admitia sequer que sua obra máxima estivesse acima dele, pois entendia ser um artista de outras composições meritórias, ainda superiores. Um constante e destrutivo conflito de superego e alter ego, que o fazia padecer e aniquilava o protagonista. Obstinado pela perfeição que abalava o artista no paralelo entre a concepção até o surgimento desta composição maior, mesmo sendo renegada pela sua relevância. Havia dúvidas e preocupações no confronto dos sons como contraditório na elaboração de uma cavalaria ligeira com o enigma figurado que consistia em exprimir palavras ou frases cujos nomes produzissem quase os mesmos resultados. A cena de uma sessão educativa com a mãe na ânsia de um resultado supremo trará respostas para sua criação com os acordes na cabeça esperando emergir para a explosão criativa, como um vulcão adormecido à espera do grande momento. Mostra um retrato intimista com sobriedade de um artista apático, fruto da própria natureza de insatisfação e cobrança ao extremo pela sua dimensão misteriosa.

O epílogo revelador da grave doença atormentando seus neurônios ardendo na imersão sensitiva de uma catarse no final, quando a diretora habilmente filma em preto e branco, faz desfilar em sua memória já combalida os grandes amores de sua vida ao som e no ritmo de um Bolero, lascivo e sexual. Como se houvesse uma rajada de vento gelado no hospital para atravessar uma temerosa cirurgia. A frustração afetiva e a relutância profissional permeiam o biografado amargurado em viver, amar e criar. Um painel profundo sobre um homem deprimido, que tenta afastar seus problemas de terceiros pela sua brandura com um viés ácido sobre o sentido de existir. A solidão e as buscas furtivas para dançar e conversar sob pagamentos são arrasadoras constatações de um mundo vazio para quem quer realmente criar, principalmente na perda materna, como se órfão ficasse no universo, deixa de escrever por dois anos. Um retrato pungente documentado da vida de um astro e sua fervorosa vocação como compositor e maestro, com todo seu magnetismo e brilho quase inigualável no universo cultuado da música, em especial sua criação redentora através de sentimentos emocionais na construção psicológica do sofrimento humano. Uma ode aos apreciadores da pura arte na companhia musical sedutora nesta cinebiografia arrebatadora, que está entre as três maiores realizações de Anne Fontaine.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (1874, O Nascimento do Impressionismo)

 

Movimento Revolucionário

O movimento impressionista francês na pintura sempre rendeu boas realizações no cinema, atraindo a atenção dos aficionados das artes plásticas. Uma delas foi o comovente drama Renoir (2012), que teve na direção o experiente Gilles Bourdos, conhecido por Disparus (1998), Inquiétudes (2003), e o badalado Depois de Partir (2008). Abordou o final da vida do célebre pintor Pierre-Auguste Renoir (Michel Bouquet), tendo como cenário a Côte d’Azur, em 1915. O mestre das tintas que veio a falecer em 1919, passou por um período de graves problemas pessoais, atormentado pela morte de sua mulher, lancinantes dores por uma artrite reumática degenerativa e, como desgraça pouca é bobagem, foi informado da triste notícia que seu filho Jean- ele mesmo, o cineasta Jean Renoir- fora ferido em combate na guerra e estava retornando manco de uma perna. A trama foi conduzida com elegância e charme, para mostrar na vida do velho pintor a linda jovem Andrée, tornando-se sua última modelo e fonte de inspiração e rejuvenescimento, decorrente daquela beleza radiante que lhe soa como um bálsamo para continuar vivendo. Mas nem tudo é felicidade, logo voltou o filho ao convívio familiar, para recuperar-se dos ferimentos, que fica fascinado com a moça e sofre uma forte oposição do pai para o romance. Não era somente um filme sobre o final da vida do notável pintor e seus quadros, mas sua relação amistosa e tímida com os quatro filhos, entre os quais a única mulher, que busca longe do lar sua trajetória pessoal.

Novamente, a arte cinematográfica retrata o movimento revolucionário impressionista, sendo uma das boas surpresas do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano. Um misto de documentário com drama, 1874, O Nascimento do Impressionismo, dirigido pela dupla Julien Johan e Hugues Nancy. A mescla tem uma sintonia mais convencional com o ficcional, na qual o tom documental fica em segundo plano, dando mais protagonismo aos personagens dentro de uma história aparentemente verdadeira, mas que acaba sendo utilizados elementos de uma admirável representação visual pela maneira de pintar dos artistas com seus problemas pessoais e suas idiossincrasias. Todavia, traz uma boa dose daqueles filmes feitos especialmente para canais especializados em arte, principalmente quando uma voz feminina em off, de forma didática para iniciantes monopoliza a narrativa. Não apresenta variação do estilo descritivo rápido sem alterar o tom, sempre na mesma toada nos 95 minutos de duração, o que é totalmente desnecessário e redundante, por causar cansaço no espectador.

A trama tem nomes de peso do mundo da arte, como Claude Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir, Paul Cezanne, Camille Pissarro, e a inclusão de Berthe Morisot, única presença feminina dentro do movimento, apesar de ser pouco conhecida, e outros demais colegas que organizaram sua primeira exposição coletiva de forma independente. Contrariaram as normas vigentes, exceto Édouard Manet que não aderiu e preferiu continuar se submetendo aos ditames oficiais. A realização, embora seus equívocos técnicos, revive a história desses jovens pintores que se rebelaram contra o academismo de sua época, traçando o surgimento de uma revolução que impactou e se consagrou definitivamente com o passar dos anos. O longa ressuscita uma gama de célebres pintores que se uniram para iniciar uma nova onda inovadora, com um elenco de atores cuidadosamente selecionados, onde os diálogos são meticulosamente elaborados com base em documentos de arquivos, testemunhos da época e, principalmente, as correspondências guardadas como documentos históricos. Tinha como principais características: O Subjetivismo: pintores acreditavam que a realidade era subjetiva e que cada pessoa percebia o mundo de forma diferente. Paisagens: As obras retratam horizontes comuns e cenas do cotidiano. Cores: utilizavam as vivas e as claras, em tons neutros, para expressar os efeitos de luz. Pinceladas: eram rápidas e sutis, e os traços imprecisos. Espaço aberto: preferiam pintar ao ar livre, como parques e jardins.

A dupla de diretores mostra em algumas cenas os pintores esboçando uma representação textual e as inspirações, tanto na pintura realizada ao ar livre em contato direto com a natureza, mas em outras sequências há os estúdios e pincéis sendo manipulados com as cores vivas para a elaboração, até chegar ao resultado final. As imagens ficcionais tentam dar uma leveza de realismo no desenrolar da trama, mas em muitas situações o artificialismo se sobrepõe no filme. Os conteúdos teóricos são relatados à exaustão com predominância de um enredo muito amarrado na cronologia dos fatos. Não são mencionados fontes do texto em desenvolvimento, o que remete, provavelmente, para notícias vinculadas na imprensa daquele período, tudo dito didaticamente na narrativa. A batalha contra o academicismo em nome de um novo estilo, tema central do movimento, indica as dificuldades daqueles jovens rebeldes contra os concursos artísticos de salões, onde as novas formas eram refutadas e execradas pela sociedade conservadora e aristocrática de 1874.

Os vários quadros dos artistas que surgem no enredo é um dos pontos altos do documentário, bem como as relações deles com as guerras do final do século XIX, entre as quais estão as tropas do governo provisório que invadiram a capital francesa e destituíram a Comuna de Paris, que impactou a vida dos pintores, mexendo com a criação de episódios que levaram para o surgimento de um novo estilo. Entre eles, está Renoir, que nunca deixou de dar importância à forma, como na série As Banhistas. Marcante pela sua pincelada enérgica com motivos que lembram o mestre Jean Auguste Ingres. A sua obra de maior impacto é Le Moulin de la Galette, em que conseguiu elaborar uma atmosfera de vivacidade e alegria à sombra refrescante de frondosas árvores, com intensidades azuis. A luz solar aparecia como elemento predominante na sua pintura e o resultado foi uma série de obras-primas ao melhor estilo de seu mestre italiano Ticiano Vecellio e outros pintores reverenciados, como Jean-Honoré Fragonard e François Boucher. Os realizadores concentraram sua projeção nos fracassos e resiliências do ser humano, pois esta não é somente uma obra de endeusamento de mestres como uma poesia lírica. É antes de tudo um interessante relato crítico de uma aristocracia com seus problemas familiares, os efeitos nefastos das guerras, de uma união resistente contra o poder sufocante e sem diálogos com a classe artística. Uma rebeldia consistente contra influências externas num ambiente carregado por tabus e preconceitos, que dão consistência a este apreciável filme sobre a escola do Impressionismo.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui

 

Sombras da Ditadura

O aclamado cineasta brasileiro Walter Salles, numa produção dos EUA, França e Grã-Bretanha, através do cineasta e produtor Francis Ford Copolla, que em 1979, adquiriu os direitos legais para adaptar o best-seller de Jack Kerouac On The Road, de 1957, foi levado pela primeira vez às telas do cinema com o título Na Estrada (2012), sua última grande realização. Recriou de forma elegante a saga da contracultura dos jovens perdidos no mundo do pós-guerra, deixando nítidos os reflexos violentos do período da Grande Depressão norte-americana de 1929. Antes, dirigiu Linha de Passe (2008), Diários de Motocicleta (2003), Abril Despedaçado (2001) e Central do Brasil (1998), até então sua obra absoluta. Agora, Salles dá seu maior salto na carreira e atinge o ápice com Ainda Estou Aqui, uma adaptação do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, pelos roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega, ao narrar a emocionante saga da mãe do escritor, Eunice Paiva, durante a ditadura militar no Brasil, ambientada em 1970. A realização coproduzida com a França foi indicada para representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2025.

A trama conta a história que se passa na casa da família do engenheiro, importante político e ex-deputado federal Rubens (Selton Mello- sempre sóbrio e irrepreensível) e sua esposa, Eunice (Fernanda Torres- em atuação antológica, certamente numa das maiores já vistas no cinema nacional, carrega o filme com uma desenvoltura soberba), uma mulher destemida, gigante na altivez, empoderada e com muita fibra, na companhia dos cinco filhos do casal. Aparentemente era uma pessoa comum, que teve de mudar drasticamente seu comportamento logo após o desaparecimento do marido, levado da residência para supostamente prestar alguns esclarecimentos sobre o sequestro do embaixador suíço no auge do regime de exceção, acusado de conspirar contra o governo. Salles conduz a trama com segurança e energia, deixando transparecer sempre sobra de fôlego com um estilo próprio de uma insustentável leveza narrativa para golpear o espectador no âmago de seu imaginário. Uma obra com ausência de violência explícita e com uma perspicaz criação de terror psicológico, sem abusar ou desbordar para o melodrama maniqueísta que pudesse levar facilmente às lágrimas. Pode levar a náuseas pelo impacto auditivo e sensitivo dos gritos dos presos sendo torturados, mas com sutileza e finesse, que só um criativo artesão poderia conseguir tal resultado.

Tudo é fruto de uma boa estrutura para uma dramaticidade equilibrada e sem sensacionalismos, mas com um apreciável tecnicismo para evitar os arroubos de grandes cenários, numa história contada com sensibilidade e uma profunda visão sobre a ditadura sobrepondo os efeitos da liberdade democrática. Há um domínio excelente dos planos e contraplanos de cenas, aproximando sempre a câmera nos rostos dos personagens para captar toda a emoção e a dor dilacerante, tanto da esposa como dos filhos, mas sem utilizar métodos apelativos baratos. Forçada a abandonar sua rotina de dona de casa, a resiliente mãe e mulher se transforma em uma ativista dos direitos humanos e dos indígenas, lutando pela verdade sobre o paradeiro do companheiro ao enfrentar as consequências brutais da repressão dos duros anos de chumbo. O filme não se resume em retratar somente um drama familiar, mas principalmente o impacto do regime militar na vida de milhares de famílias brasileiras na mesma situação, com uma distinção especial para a força feminina na espinhosa e terrível empreitada da resistência diante das questões de perdas, mas sem abstrair a coragem e a dignidade.

Salles revisita um dos períodos mais sombrios da história brasileira, mergulhando nos fétidos porões escuros e abjetos de uma época a ser lembrada para mostrar as feridas abertas de fantasmas que ainda pululam como lembranças nefastas. Um tributo à força da magnitude de uma mulher poderosa pela sua energia sólida para manter a família de pé, mesmo com sorrisos e poses emblemáticos pela ironia, sem nunca se abater ou vitimizar por todas as adversidades atrozes de um regime sanguinário. Um hino à democracia na luta pelos direitos esfacelados, tendo como simbologia o desaparecimento para sempre de um opositor ao sistema truculento com resultados nefandos. Uma viagem existencial recheada de dor, melancolia e rumos irrefreados de um universo incerto pelos dogmas com normas totalitárias preocupadas com os ditames estabelecidos por uma sociedade avessa aos diálogos civilizados, sendo sempre conveniente lembrar as atrocidades contra um cidadão sequestrado por agentes do governo, sem deixar vestígios e provas.

Eunice é determinada e quer manter o bem-estar de seus filhos ao buscar respostas que sempre vieram com evasivas. Tenta subverter as angústias da ausência incômoda antecedida pelos momentos de alegria e felicidade do microcosmo familiar nas belas praias carioca ensolaradas. Os namoros das filhas, o cachorrinho achado pelo filho menor, tudo regado com brincadeiras nostálgicas de um pai amoroso naquela casa sempre aberta, com o sol iluminando e motivando um cotidiano idílico, depois aniquilado pela força bruta, na qual as janelas e portas se fecharão para sempre, deixando a escuridão claustrofóbica, metáfora da tirania, invadir e se perpetuar como um elemento intimidador. O novo momento retornará no desfecho, agora em São Paulo, mas os acontecimentos abordados irão voltar à tona, mesmo que dezenas de anos depois para apontar uma resposta sem elucidação, exceto uma minguada vitória amarga e contraditória como da obtenção da certidão de óbito. É preciso continuar vivendo como um lema protocolar, sem extrair jamais a tristeza, pois a crueldade de sobreviver sem saber o que aconteceu se faz necessário para uma mãe acuada, perseguida e torturada psicologicamente, sem direito algum de se despedir. Há uma pergunta de um filho sobre qual é a hora de enterrar uma pessoa na própria memória? Cada um tem no imaginário uma solução pragmática, mas desprovida de uma realidade absoluta.

Embora haja uma linha autoral em sua estética, há similitude em conteúdo e proposta com o instigante Marighella (2019), de Wagner Moura, 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de escravos, sobre as violentas ações e reações impostas em 1964; o extraordinário Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias; e o sequestro do embaixador dos EUA no filme O Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro do jornalista Fernando Gabeira. Ainda Estou Aqui indica as atrocidades marcantes no enredo, com o objetivo de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política, ao colocar em lados opostos membros da família brasileira. Contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda decorre do devastador estigma golpista. Cartas e recordações estão presentes em um cenário sinistro, embora a família tenha se multiplicado ao longo da história, deixando o abismo do vazio em segundo plano para seguir em frente, mas a agonia e o emocional fragilizado dos filhos e mãe estarão sempre juntos. A protagonista retorna no desfecho, já com a saúde debilitada pelo Mal de Alzheimer, na qual Fernanda Montenegro entra em cena, sem dizer uma palavra, mas se expressa pelo olhar, para coexistir seus últimos dias com os filhos adultos e alguns netos, num recorte da própria memória. Um marcante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário, sob o manto do autoritarismo nesta obra-prima de Walter Salles.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (O Segundo Ato)

 

Inquietações Futuras

Um dos mais aguardados lançamentos do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano foi o interessante O Segundo Ato, com direção do prolífico parisiense Quentin Dupieux, de 50 anos, chamado de Mr. Oizo, também conhecido pelo trabalho como produtor e artista de música eletrônica. Estreou na direção de cinema em 2001, com o média-metragem Non-Film (2007); no mesmo ano, dirigiu seu primeiro longa-metragem, Steak (2007). Depois disso, realizou várias obras, tais como Wrong (2012), Os Maus Policiais (2013), Reality (2014), Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo (2019), Mandibules (2020), Incredible but True (2022) e Fumar Causa Tosse (2022). O diretor e roteirista tem sido um nome constante em festivais como os de Cannes, Veneza, Berlim, Roterdã, Locarno e Sundance. O longa-metragem teve a honraria de fazer a abertura do Festival de Cannes deste ano e foi visto com entusiasmo pela crítica internacional e pelo público presente.

Uma comédia com esgar de sorriso irônico e um sarcasmo no ponto certo de muita ironia fina com requintes de abordagem psicológica preocupante para um presente iminente e um futuro cada vez mais próximo. O Segundo Ato é um filme dentro de outro, com uma proposta pouco usual de um jogo duplicado, dividido em quatro partes. A ação se abre com um longo plano-sequência num travelling em que conversam David (Louis Garrel), que quer apresentar Florence (Léa Seydoux) para o melhor amigo Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão caminhando ao encontro da moça que está interessadíssima no protagonista, mas que não é correspondida. Suplica ao interlocutor que jogue um charme sobre a moça e a seduza. Este teme entrar numa fria, faz vários questionamentos sobre o que há de errado na tal garota para que haja este estranho pedido. Situações de preconceitos e homofobias são lançadas em tela para uma abordagem colocada em xeque sobre os rótulos da feiura, transgênero e os problemas neurológicos. O machismo desborda num ideário complexo numa situação de relação amorosa que vem à tona e só será revelada no desfecho para apresentar a cara da hipocrisia reinante num contexto ainda conservador pela ideologia da supremacia do macho alfa em relação aos padrões de beleza vigorantes na sociedade de consumo.

Na outra cena, a jovem está irrequieta porque pretende apresentar seu amado, aquele que julga ser o homem de sua vida, ao seu pai, Guillaume (Vincent Lindon). Em outra cena, o ansioso garçom figurante treme freneticamente ao ter que fazer uma ponta do filme, num ritual que irá se repetir. Todos são atores que estão fazendo o mesmo filme, e logo começa a se encaixar no roteiro as contradições e as peças do tabuleiro de xadrez. O realizador, com sutilezas, vai dando sugestões e mostrando uma dura realidade na qual o futuro já está presente. Ali é revelado que a direção de um filme foi realizado 100% por inteligência artificial, com dispensa de um quadro técnico humano de apoio que logo irá se tornar obsoleto ao testar ferramentas novas. Surgirão as imagens e os diálogos neste encontro controvertido, inverossímil acima de tudo, entre uma encenação com uma realidade complexa naquele enfadonho set de quatro personagens em um restaurante no meio do nada. Desprovido de emoção e com presenças físicas sucumbindo e despencando no artificialismo da produção e montagem, como nas duas cenas em sequência, em que atores perguntam ao suposto diretor sobre os efeitos positivos e negativos do resultado da realização. Só que, do outro lado, as respostas são protótipas de um robô sem alma e sem vida. Literalmente padronizadas e advindas de uma máquina sem coração pela ausência de humanismo. Causa um mal-estar, tanto nos personagens como no espectador, a eloquência vazia pela frieza.

As causas e efeitos estão presentes como situações ainda não bem elaboradas e sem perspectiva de cicatrização, que proliferam numa realidade acompanhada do contrassenso árido que promete o futuro sombrio. Aos poucos, torna-se complicado distinguir a ficção da realidade, como na rapidez da encenação entre os atores e os diálogos deles sobre suas amarguras na vida pessoal. Por isto, o cineasta habilmente utiliza seu sentido provocativo na viagem melancólica e silenciosa, beirando ao entediante, no travelling buscando uma luz no fim do túnel como um sopro quase que de desespero e angústia de um passado que se despede, acenando para um ponto de interrogação sobre os efeitos maléficos ou não da inteligência artificial que veio para ficar. Um filme construído com um propósito que surpreende pelo seu desenrolar preciso e direto ao ponto diante das dúvidas decorrentes na raiz da perversão das atrocidades que poderão restar de um futuro dúbio e carregado de dúvidas universais de outrora. O cineasta utiliza recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito de alguns personagens quase que em transe, como do garçom italiano, para vencerem o medo na busca da verdade e das revelações que se acumulam, se entrelaçam e se espelham na magia do cinema.

Dupieux subverte os vários clichês que viraram moda e desafia o tom policialesco do recorrente politicamente correto, como na cena do beijo roubado e a ameaça de denúncia da atriz para acabar com a carreira do colega. Adota um estilo marcado pela naturalidade e pelo cômico, com cutucadas ferinas no absurdo do falso moralismo em nome de uma liberdade pertinente, mas utilizada de forma excessiva que deteriora as recorrentes causas justas de um repertório massificante. Um mergulho prazeroso nos chiliques existenciais da profissão dos artistas com suas idiossincrasias, amarguras, insatisfações, delírios, além das vaidades brotando e se esfacelando rapidamente numa narrativa consistente deste abismo de virtuoses estelares, extremadas em alguns casos; contidas em outras. Mesmo que a comédia não seja tão profunda, e sem grandes pretensões estilísticas, a narrativa é eficiente e o assunto causa desconforto, embora o roteiro seja linear e multifacetado em seu desenrolar, com elipses certeiras. O Segundo Ato remete para os bons tempos do movimento artístico revolucionário e contestatório da Nouvelle Vague nas décadas de 1950 e 1960. A dignidade está em xeque, embora seja questionada pelos defensores da inteligência artificial e seu campo multidisciplinar que abrange tecnologias e permitem uma variedade de funções, incluindo a capacidade de ver e entender. Há um fardo insustentável e pesado que tomará grandes dimensões numa atmosfera soturna diante de fatos que geram dor para uma reflexão sobre a irracionalidade neste painel admirável, magnificamente contextualizado na essência da sétima arte.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O Quarto ao Lado

 

Viver e Morrer

O celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar retorna com O Quarto ao Lado, 24º. longa-metragem de sua vasta filmografia, primeiro totalmente falado em inglês, numa coprodução da Espanha com os EUA, foi ambientado em Nova Iorque. Conquistou de forma inédita para seu país o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. O diretor escreveu o roteiro baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, de 2020, da escritora norte-americana Sigrid Nunez, lançado no Brasil em 2021 pela editora Instante. Constrói uma reveladora exposição de exaltação à vida, com pitadas agridoces, para mostrar os dilemas advindos das personagens femininas fortes e o seu direito de escolha como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Uma temática extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a finitude da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença terminal devastadora com consequências de penúria pela autopiedade.

Almodóvar vinha dando sinais de estar exaurindo o poder de criação na carreira, mas retornou com seu clássico estilo de filmar e o rigor característico formal com Mães Paralelas (2021). Deu uma guinada para o resgate sociopolítico, embora sem se aprofundar no estupro, na maternidade, na trocas de bebês, no luto, na ausência dos pais, na ditadura protagonizada por Franco na Espanha com suas consequências nefastas dos inocentes que perderam suas vidas por um ideal. Na sua penúltima obra, Dor e Glória (2019), retratou uma autoficção intimista própria de um realizador homossexual no ocaso da carreira, alter ego de seu criador, com tintas autobiográficas melancólicas do declínio profissional. Encerrou a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte. Antes vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003). Seguiu o mesmo caminho de vários artistas em crise ou próximos do fim existencial, transformando a trajetória como um legado histórico da arte.

Acompanhado de uma trilha sonora contagiante, O Quarto ao Lado é um dos três maiores filmes do cineasta. Aborda um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Duas jornalistas amigas na juventude que trabalharam juntas numa revista terão seus caminhos cruzados por uma notícia na noite de autógrafos de Ingrid (Julianne Moore) num livro de autoficção. Através de uma outra conhecida, fica sabendo que Martha (Tilda Swinton) virou correspondente de guerra, ambas trilharam carreiras muito bem-sucedidas. Moore e Tilda estão magistrais em seus desempenhos numa entrega singular de perfeita sintonia com a história. As circunstâncias do cotidiano e o trabalho desafiador da correspondente afastam as duas por um bom tempo. Há fortes ressentimentos entre Martha e sua filha, que nunca a perdoou pela ausência constante da mãe, pois sempre se dedicou mais ao trabalho do que conviver com a jovem. A descoberta de uma doença terminal, um câncer na medula, muda completamente a vida da enferma que busca proximidade com as velhas amigas. Nenhuma delas quer ser parceira na empreitada dilacerante de assistir e contribuir com a eutanásia tão desejada. Um obstáculo deve ser vencido para a conclusão do desejo de dar fim ao sofrimento. Ela quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Propõe que a velha amiga passe com ela um período numa casa de campo para ter sucesso na ingestão de uma pílula letal que comprou na internet. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva. Entre as duas está o velho amigo, o cientista Damian (John Turturro), que dá algumas cutucadas críticas no aquecimento global, a sociedade conservadora, o neoliberalismo, e o crescimento de uma extrema-direita raivosa oriunda de um temido fundamentalismo religioso.

Um enredo que tem a eutanásia como a temática em foco, mas a vida e sua celebração estão acima de qualquer viés doutrinário. A marca registrada do realizador está presente, como notável observador que lança situações escabrosas e assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal: a morte, com um esgar sarcástico no canto da boca. Confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Há algumas semelhanças com o controvertido Está Tudo Bem (2021), de François Ozon, sobre um painel doloroso de uma amarga história de um industrial independente de 85 anos de idade, acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado. Cansado da situação crítica, decide que não quer mais continuar a viver sequelado. Pede ajuda à sua filha para através do método do suicídio assistido na Suíça, uma situação recente como do ator Alain Delon que optou pela cápsula com substância mortal, que acabou não se concretizando. Marco Bellocchio não se posicionou em A Bela Que Dorme (2012), deixou nas entrelinhas uma contrariedade implícita, possivelmente por não querer se incomodar com a igreja, completamente oposto a Alejandro Amenábar em Mar Adentro (2004), que aborda diretamente um homem que luta para ter o direito de pôr fim à vida. Michael Haneke em Amor (2012) instiga por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia redentora ao dar um soco no estômago do espectador, mas ao mesmo tempo reflexivo sobre métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dá um tapa na cara da morte, como fez o personagem central num ato de desabafo pelo desespero. Stéphane Brizé em Uma Primavera com Minha Mãe (2012) fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre a morte e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de uma vida repleta de contratempos e solidão para uma decisão tomada com lucidez pela ausência de perspectiva para o ser humano.

Estabelece algumas relações com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e a eloquência em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o ótimo Fale com Ela (2002); Volver (2006) como a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e a obra-prima Tudo Sobre Minha Mãe (1999). O Quarto ao Lado é uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido da existência. Um poema profundo da transição da vida para a finitude, fruto de uma grande amizade de puro sentimento afetuoso entre duas mulheres empoderadas. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia de pássaros na casa de campo em consonância com os flocos de neve de puro êxtase. Eis um drama profundo e inesquecível, que somente um gênio poderia fazer desta forma com uma narrativa de magia e ancestralidade, com um desfecho arrasador de puro envolvimento sensorial que só o cinema proporciona. O olhar atento de um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma dos eventuais equívocos do destino. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano nesta obra-prima, em um dos melhores filmes do ano.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Até Que a Música Pare

 

Descobertas Familiares

A cineasta Cristiane Oliveira teve reconhecimento nacional com o drama familiar Mulher do Pai (2015), que venceu as premiações de Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Verónica Perrotta) e de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2016. Abordava uma adolescente que precisava cuidar do pai cego, após a morte da avó que os criou como irmãos. Quando o genitor percebe o amadurecimento da filha, surge uma grande intimidade na relação afetiva, mas com a chegada de sua namorada, o ciúme tomará uma proporção enorme na vida deles. O segundo longa-metragem da realizadora gaúcha, A Primeira Morte de Joana, estreou no 51º. International Film Festival of India, em janeiro de 2021 e foi vencedor de 11 prêmios, nos mais de 35 festivais pelos quais passou, inclusive no Festival de Gramado com o Prêmio da Crítica. Foi ambientado, no final do verão de 2007, na cidade de Osório, muito conhecida por seu parque eólico com 75 torres geradoras de energia, o imponente Morro da Borússia e dezenas de lagoas, onde foi criada a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos. Também teve locações nas belas paisagens do município de Santo Antônio da Patrulha, ambos no Rio Grande do Sul. Uma história com uma razoável complexidade que começa a se delinear no seu desenrolar ao retratar as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram trilhar em suas vidas futuras no período da transição entre a infância e a adolescência, com reflexões e questionamentos dos mais variados possíveis.

Até Que a Música Pare é o terceiro longa-metragem da jovem diretora, que assina o roteiro em parceria com Gustavo Galvão, foi selecionado para o Festival do Rio de 2023. Uma coprodução do Brasil com a Itália, na qual além de ser falado em português, também são usados diálogos em Talian, dialeto local da Serra Gaúcha que recentemente foi reconhecido como língua pelo IPHAN. Uma trama aparentemente simples conta a história de Chiara (Cibele Tedesco), uma senhora conservadora e cristã de uma família de descendência italiana. Depois que o último de seus filhos sai do lar para morar sozinho na cidade Caxias do Sul, pontuado como uma referência ao ninho vazio, ela decide acompanhar o marido em uma de suas tantas viagens a trabalho para não ficar só em casa, embora sua filha e a neta sejam as únicas companhias mais próximas que a visitam. O marido circunspecto, Alfredo (Hugo Lorensatti), é um fornecedor de produtos de bar, bodegas e armazéns pelas estradas serranas, por muitos anos, mas de pouca conversa. É a primeira vez que a esposa conhece esse outro lado do companheiro nos estabelecimentos e rodovias. Uma descoberta preocupante sobre a vida dele que sempre está na estrada, envolvendo baralhos de cartas vendidos sem nota fiscal e outras falsetas começam a preocupar a idosa estritamente honesta. Reclama que ele bebe vinho com os clientes e que depois segue dirigindo seu veículo antigo. No meio das surpresas surge uma tartaruguinha que colocará a confiança estreita do casal abalada seriamente em um novo desafio de suas vidas deste casamento de mais de 50 anos, sempre juntos.

A diretora foca na protagonista que sofre com a ausência do filho adulto que partiu para novos horizontes, e ainda mais tendo que conviver com o luto da morte de outro filho num acidente de carro. Segue uma rotina de cozinhar, comer, beber e conversar com algumas vizinhas do sítio em que residem nas imediações, tendo como rotina a circulação da imagem da Virgem Maria entre elas. As interações existentes no microcosmo familiar estão cada vez mais fragilizadas e distantes naquela zona rural. Não há pirotecnia, pelo contrário, as situações andam quase se arrastando nas posições de quadro a quadro, sem grandes movimentos da câmera ao captar os problemas do dia a dia. Ver os programas noticiosos de televisão falando da corrupção na política recorrente é a distração da noite, quando há algumas menções tímidas ao bolsonarismo e o conservadorismo reduzido quase beirando ao caricato. Porém, num belo dia festivo, Chiara conversa com o namorado da sobrinha, este faz uma explanação do budismo, e a possibilidade de uma espécie de reencarnação de seres humanos em animais. Explica como funciona a crença na relação particular com Deus e os esclarecimentos dos princípios desta doutrina. Convencida, a personagem central começa a interpretar a pequena tartaruga comprada pelo marido como o filho reencarnado. Ali se estabelece um vínculo muito familiar com o animalzinho, encontrando nele um novo sentido de vida e de interesse capaz de romper com sua vida solitária e monótona.

Do drama familiar, a diretora flerta com a fábula adulta para a superação da morte, além de reinserir socialmente na sociedade uma mulher da terceira idade. As discussões metafísicas e o realismo fantástico do filho que virou um bichinho de estimação pela consciência filosófico-religioso da existência que ocupa um espaço próprio. Estabelece-se um conflito de ideias e crenças, entre o forte catolicismo impregnado na Serra Gaúcha pela cultura italiana contrapondo com o budismo e seus dogmas completamente opostos. O tom de contemplação é a tônica do filme, contribuindo para discussão sobre os parâmetros religiosos. Enquanto a trajetória da protagonista fica cada vez mais eivada pelas incertezas na pequena comunidade em que vive o casal com a realidade da perda e as diversas transformações que cercam os idosos. Os sentidos se constroem numa lógica pueril de um cinema didático, afastando-se da indagação e de um contexto mais profundo, com causas e efeitos imediatos, sempre com respostas prontas, sem a possibilidade da dúvida na próxima cena. Exceto algumas desavenças do casal, na qual ela se recusa a seguir viagem, em seguida tudo volta ao normal na paz celestial. Eis uma narrativa linear, com uma cronologia que transforma a obra em um sentido de ingenuidade e pouco inspirada, diante da ausência de ousadia, dialoga com as telenovelas Globais de época, no horário das 18h.

Um elogio à fotografia fascinante com tomadas de imagens na cidade de Antônio Prado (RS), com cores suaves e harmônicas da natureza, embora se torne cansativa pela repetição. Faltaram atritos mais contundentes e a poesia do lugar teve raros espaços na montagem. A neta explicando à avó como se usa o celular, é outra cena didática e sonolenta. Pouco se discute os valores das vendas e as maquiagens contábeis. A luta do filho para colocar uma lápide do irmão, logo some da narrativa, que se ressente de lucidez e um objetivo com uma melhor consequência. Há um vazio na dramaticidade dos personagens condensados no roteiro e suas falhas, transparecendo uma artificialidade latente, como o epílogo pelo estereótipo de soluções de ordem prática e previsíveis após as descobertas do casal. Ainda que careça de amadurecimento, apresenta para reflexão uma ternura dolorida na busca dos detalhes da temática da morte. Um alicerce conservador envolvido pelos fatos numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes, mas que paradoxalmente avança para uma solução fácil com ausência de criatividade nesta realização rasa.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Inverno em Paris

 

Solidão e Luto

O festejado cineasta francês Christophe Honoré tem em sua filmografia obras menores e de pouca relevância, tais como: Bem Amadas (2011), Metamorfoses (2014), Os Desastres de Sofia (2016), Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2017) e Guermantes (2021). Inverno em Pais é o seu mais novo filme para retomar o caminho de êxitos com méritos peculiares. Novamente se debruça e aprofunda com sensibilidade as lacunas e os conflitos da temática que faz parte essencial de seu estilo humanista e preocupado com os elementos decorrentes do núcleo familiar. Assim como já o fizera no Em Paris (2006), sobre o relacionamento de dois irmãos que moravam com o pai, que acabara de se separar da mãe, convivendo com a tragédia da irmã e da depressão profunda com tendências suicidas do irmão mais velho que rompera com a noiva. Já no excelente A Bela Junie (2008), uma garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe e o suicídio aflora outra vez como temática contundente. Talvez o melhor de todos seja Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009) ao retratar uma mãe de dois filhos, recém-separada, larga o emprego num hospital de Paris e vai morar com os pais e os irmãos na Bretanha, interior da França, onde passou sua infância. Os prazeres da vida e os seus incômodos restritos nas suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo a figura materna da falsa moralista, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo.

Eis um drama familiar surpreendente em uma viagem carregada de luto que acaba se tornando uma oportunidade de autodescoberta. Acerta em cheio com um elenco coeso, intenso e em sintonia harmoniosa. Uma trama sensível sobre um longo inverno frio, sombrio e doloroso para Lucas Ronis (Paul Kircher- atuação convincente), um jovem de 17 anos, que está prestes a terminar o último ano de internato. Porém, a morte trágica em um acidente de carro de seu pai desmorona suas certezas e planos futuros. Um vínculo paternal estabelecido que sequer ele soubesse, aflora e o faz ter muita angústia e desespero solitário num vazio imenso. Logo após o funeral eivado por discussões políticas sobre uma série de atentados terroristas na França, e o possível envolvimento de imigrantes. Com o aval da prestimosa mãe (Juliette Binoche- sempre magnífica na interpretação, ilumina a telona com seu carisma, beleza, charme e talento) parte numa viagem para Paris em busca de consolo na companhia do irmão mais velho, Quentin Ronis (Vincent Lacoste- boa atuação). Uma jornada de desafios para se adaptar a uma nova cidade em uma nova realidade, decide encarar as dúvidas que o tem atormentado. Busca recuperar seu sentido existencial de vida para encontrar um novo caminho. Ainda preocupado com a mãe que ficou no interior, mergulhado na abissal e devastadora dor da perda e o sentimento de culpa pela morte do pai, que talvez não tenha absorvido sua opção sexual na qual estava em fase de descobrimento.

O diretor, que também assina o roteiro com um enredo bem alicerçado, coloca habilmente em cena a preocupação do jovem adolescente, quando o irmão determina que ele saia pela manhã do apartamento e só retorne depois das 18h. Ao mesmo tempo, sente-se atraído pelo amigo de Quentin, Lilio (Erwan Kepoa Falé), que mantém uma distância prudente diante da linha tênue que separa a amizade do despertar de um relacionamento amoroso, bem como pontua as diferenças circunstanciais entre os dois, colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa na possível descoberta amorosa que irá influenciar em uma ruptura violenta. São as construções impostas, embora aparentemente improváveis, diante das consequências e do rumo pela reviravolta da história, que acaba amarga em uma dura realidade. Um processo longo para curar as mazelas do tempo e da imensa tristeza para um relacionamento familiar fragilizado pela carência de amor, diante da solidão recorrente, pela ausência repentina do pai e da distância da mãe, simbolizada no marcante jantar com a genitora do amigo. A curiosidade leva a encontros sexuais com desconhecidos, numa clara busca de novos horizontes e também testar sua culpa latente que carrega como sentimento de dúvida marcada pela morte e a tristeza do luto vivenciado pela tragédia. Tenta encontrar um subterfúgio para as mudanças sobre o rumo de sua vida e de sua mãe diante de situações novas como elementos que darão passagem à vida adulta. Por algumas semelhanças, remete ao drama Close (2022), do belga Lukas Dhont, uma sensível e delicada reflexão sobre amizade, amor e suicídio.

O microcosmo familiar é debatido e questionado amplamente. Sua crítica é reveladora ao demonstrar os seus propósitos de relações afetivas como uma maturidade atingida pela mescla do equilíbrio narrativo na abordagem direta, sem grandes metáforas. O sofrimento e toda a angústia da perda paternal pela possível culpa associados como fator de desagregação na espera para resgatar seus suplícios e aflições que estão ancorados. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato com uma melancólica aparência, que não são entendidas como as indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. Por toda a sua complexidade e seu dinamismo de abordagem singular, Honoré mostra estar maduro e com indiscutível criatividade, com temas atuais, acarretando em análises psicológicas dignas de um artesão voltado para um mundo em tempo real. Assistir seus filmes dá prazer e a mesmice passa longe, desabrochando a criatividade da mais alta finesse e suavidade, mesmo que ocorra pela forma do forte choque necessário de alerta, visa mexer com o espectador mais desatento ou aquele que busca somente o entretenimento.

Tanto Honoré como Dhont seguem caminhos semelhantes ao da cineasta Céline Sciamma na narrativa e nas pulsões incompreendidas da adolescência e suas tipicidades da idade, consagrada com o icônico drama Tomboy (2011). Filme que orientou e deu novos rumos aos destinos de uma nova geração de diretores, sobre questões da inexperiência da juventude para tratar com profundidade a precoce descoberta da homossexualidade. Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, os badalados irmãos Dardenne, dos longas Rosetta (1999), O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008) foram os precursores de filmes com mais delicadeza e menos rudeza da juventude. Sem nunca perderem o foco e o cerne da questão, utilizam o recurso da câmera na mão para registrar a rotina com seus atritos peculiares através de planos longos, por vezes optam para os close-ups para capturar a intimidade e os desatinos do mundo ao redor. Inverno em Pais mergulha nos inevitáveis rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na verdade, nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da amizade resiste pela importante intervenção materna em cena, na mensagem de apoio do amigo, quando da recuperação do protagonista na tentativa de suicídio. Longe de filigranas de emoção superficial, deixa o espectador livre para refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem admirável e contagiante de contrariedades, contradições e resgate da vida, da busca pela opção sexual e da morte. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada e cultivada no desfecho.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Coringa: Delírio a Dois

 

Sociedade Enferma

Todd Phillips dirigiu o extraordinário filme Coringa (2019), uma comédia dramática em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix- em laureada atuação antológica marcada pela sinistra risada que provoca calafrios) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, semanalmente, precisava comparecer a uma agente social, devido aos seus distúrbios mentais. Após ser demitido, reage à gozação de três homens dentro do metrô e os mata num surto colérico inimaginável. Logo após, uma sequência de crimes darão início a um movimento popular contra a elite de Gotham City, decadente, elitizada e sem regra, com a magnífica referência a Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936). Provoca um levante dos oprimidos, cujo representante maior dos aristocratas é Thomas Wayne (Brett Cullen), além do crime ao vivo do apresentador de televisão Murray Franklin (Robert De Niro), em um programa líder de audiência. Passa pela origem do Batman ao dialogar com a memória coletiva. Um protagonista doentio que não vê problema em ser violento, em um clima de tensão recorrente, quando os primeiros indícios da eclosão do Palhaço do Crime começam a virar realidade numa mescla de delírios. Um filme corajoso, ousado e transgressor, condizente com a essência de seu personagem-título. Tem uma efervescência política vibrante, independente, catártica pela forma como foi construído, com um fundo psicológico de muito realismo pela sua transformação. É verossímil pelas condições de desigualdade social numa abordagem adulta para um personagem dos quadrinhos. Venceu o Festival de Veneza, ao conquistar o Leão de Ouro, recebeu onze indicações ao Oscar, ganhando em duas (melhor ator e trilha sonora).

Coringa: Delírio a Dois é uma continuação do filme original ao denunciar que as instituições lamentavelmente falharam. O cineasta retorna cinco anos depois, desde que Arthur Fleck- nome verdadeiro do personagem principal- (Joaquin Phoenix novamente em soberba interpretação) foi preso por todos os assassinatos que cometeu no filme anterior. Enquanto espera sua sentença na ala do manicômio psiquiátrico de Arkham, acaba conhecendo na terapia musical Harleen "Lee" Quinzel (Lady Gaga- em atuação contida e pouco inspirada), parecendo cair cada vez mais fundo em um poço de amargura, opressão e tristeza. A proposta do diretor de Se Beber, Não Case! (2009) que teve três continuações fracassadas, é arriscada, principalmente ao optar pela sombria narrativa da comédia musical com algumas pitadas de humor, um gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se arriscou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clima de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo.

Phillips, em nova dobradinha com Scott Silver, assinam um roteiro mais enxuto, menos fantasioso e com delírios bem menores, demonstra ser possível fazer cinema adulto na grande indústria, com brilho e arte. Foca a personalidade pouco convencional do personagem central de origem familiar controvertida, numa reação pela perda do emprego e outras infelicidades na sua trajetória de vida, quando assume uma postura violenta que o torna o anti-herói Coringa, no longa original. O relacionamento romântico e doentio com Lee, a Arlequina, uma psicóloga que se apaixona pelo vilão aos poucos, durante o tratamento dele, tão enlouquecida quanto o seu novo namorado, passa a acompanhá-lo na tentativa de ajudá-lo no julgamento, com uma manipulação que o deixa atordoado ainda mais. A dupla embarca em uma alucinada e fervorosa narrativa musical pelo submundo de Gotham City, enquanto o julgamento público se desenrola, com uma cobertura sensacionalista da mídia, impactando toda a cidade e suas próprias mentes e corações desatinados seguem um ritual de cinema de tribunal. Mostra a força dos que não utilizam artificialismos, nem otimismos ingênuos para elaborar um painel de personagens doentios de uma sociedade convalescente, todos integrantes de um mundo repleto de imperfeições. Constrói um clímax propício, como as idas e vindas para um desenlace surpreendente, sem ser previsível, que poderá desapontar muitos fãs.

Tecnicamente o filme é bem feito, isto é inquestionável, na produção, na montagem, na fotografia, e na trilha sonora agradável, num cuidado melódico, principalmente quando se ouve a voz de Frank Sinatra. Mas há equívocos com derrapadas, como o caos da explosão do tribunal, desnecessária e reducionista, remete para os filmes catastróficos blockbusters hollywoodianos; bem como a proposta de fácil digestão ao flertar com a atmosfera fantasiosa de números musicais na velha fórmula de fabricar sonhos românticos sem fronteiras distantes de uma realidade. Mas há também bons méritos, como a advogada de defesa (Catherine Keener) mostrando no júri que seu cliente é prejudicado no laudo psiquiátrico conclusivo, quando o diagnóstico açodado de sanidade mental é elaborado em apenas uma consulta de apenas 89 minutos, sendo levado apressadamente pelo promotor vaidoso aos autos do processo. No mesmo julgamento, o anti-herói assume sua personalidade desequilibrada e psicótica com nuances de narcisismos estremados do ser humano ao realizar sua própria defesa, tenta se desvencilhar do personagem delirante e fantasioso, mostrando o seu lado de carne e osso. A truculência dos agentes penitenciários com agressões descabidas, que fere os direitos humanos, é um outro achado positivo do enredo. Outra comovente cena do filme é quando Arthur vai até o telefone público e canta para a namorada a versão em inglês “If You Go Way”, do belga Jacques Brel, celebrizada por Edith Piaf “Ne me Quitte Pas”, um hino ao desespero da paixão e do amor. Embora o primeiro filme seja melhor pela ousadia do frenesi delirante, Coringa: Delírio a Dois é muito interessante no conjunto, por ser perturbador, tendo em vista que a sequência da obra é mais reflexiva e com uma crítica consistente ao sistema.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris

 

O Triângulo

Woody Allen reaparece com Golpe de Sorte em Paris, 50º. longa-metragem do diretor e roteirista, uma mescla de melodrama, suspense e policial tragicômico, onde o azar, a sorte ou o acaso com os contratempos do destino estão presentes e se entrelaçam no cotidiano dos personagens. Afasta-se de sua trajetória de comédias de costumes dramáticas, mas segue fiel no sarcasmo e na sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa carreira, por ser um dos melhores cineastas em atividade no mundo. Ainda que sua conturbada vida pessoal atrapalhe seu destino e o cancelamento que sofreu no território dos EUA não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Este é o primeiro filme do cineasta cujo idioma principal não é o inglês, e o segundo filmado inteiramente na França depois de Meia-Noite em Paris (2011). Pretendia filmar em Paris no verão de 2020, mas foi impedido pela pandemia da Covid-19. Entrevistado pelo ator Alec Baldwin em junho de 2022, mencionou que seu quinquagésimo filme, considerado pelo próprio realizador de 88 anos como um drama semelhante, no qual flerta com Ponto Final: Match Point (2005), provavelmente seria o último.

Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma retomada do inesquecível A Rosa Púrpura do Cairo (1985), talvez seu maior filme, naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do martírio de sua vida sem graça; o romântico-nostálgico Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2018); porém, o penúltimo longa, O Festival do Amor (2022), assim como as realizações anteriores, tenta se aproximar de suas melhores obras ao focar nas perturbações existenciais do escritor em crise de criação, hipocondríaco e neurótico. Reprisava elementos dos filmes anteriores: Roda Gigante (2017), Café Society (2016) e Homem Irracional (2015). Há também obras que ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Principalmente, depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, assim foi em Vicki e Cristina em Barcelona (2008), decepcionante sob todos os aspectos, salvando-se tão somente Penélope Cruz; O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse; Scoop- O Grande Furo (2006) teve certa dose de ironia, mas era muito irregular e sucumbiu.

Golpe de Sorte em Paris apresentar uma história com algum romantismo do mero acaso com pitadas de sorte na glamourosa Cidade Luz, mas depois descamba para situações de ciúmes desvairados, traição, culpa, obsessão e tragédia. Até poderia render bons frutos nestas temáticas das relações humanas e amores frustrados. Acontece que Allen está muito preguiçoso e deu mostras de pouca inspiração. A trama aborda a jovem Fanny (Lou de Laâge) caminhando pela rua completamente despreocupada, depois de sair do trabalho em uma galeria de arte parisiense. Do nada, há o encontro casual com o escritor Alain (Niels Schneider), um antigo colega dos velhos tempos de um colégio onde estudavam na mesma sala de aula. A declaração de amor do rapaz que jamais esqueceu a garota de outrora, deixa ela perturbada pela surpresa da paixão secreta guardada por todos estes anos. O golpe fortuito de sorte acontece no reencontro eventual, pensam eles, ou no que seria o início de um final improvável de uma mulher casada pelas circunstâncias.

Allen imprime pouca consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações de traição com culpa e arrependimento, inspirado aparentemente no best-seller Crime e Castigo, de Dostoiévski. A justiça aleatória é forçada, ao remeter para os hediondos desaparecimentos através de mortes realizadas pelos ditadores da América do Sul. A reviravolta macabra no enxuto roteiro se estabelece quando a mãe da moça (Valérie Lemercier), fanática pelos romances policiais de Simenon, investiga o genro, Jean (Melvil Poupaud), um marido apaixonado e obsessivo, rico, egoísta, e com seus negócios obscuros, começa a desconfiar da esposa pelas suas mudanças de comportamento. Aquele casal ideal com uma vida de futilidades e jantares pomposos vai se esboroando, embora realizados aparentemente em um apartamento de luxo. As caças do esposo na floresta na busca de cervos para serem abatidos é o prenúncio de algo que está para acontecer, embora a felicidade, dos dois, marido e mulher, refletissem uma paz e uma aparente serenidade dos dias como se fossem para sempre. O encantamento da protagonista pelo ex-colega coloca tudo em desarmonia, quando os rápidos encontros clandestinos aos poucos vão se tornando rotineiros. A trama toma contornos perigosos, quando Fanny entende que está vivendo uma vida da qual não gostaria na realidade. Abre margem para os conflitos, perde o controle da situação e a imprevisibilidade passa a ser constante no triângulo amoroso, captada pelas lentes do excelente diretor de fotografia Vittorio Storaro.

Algumas pistas para o espectador são indicadas ao optar pela ficção imaginária do trivial ou pelo realismo doentio, diante da sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional. Eis uma verdadeira ciranda de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações, por menor que sejam, diante de sua verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões, num desdobramento que segue o ritmo de uma narrativa que mistura e recorre à temática de Jean Renoir em A Regra do Jogo (1939), como na caçada na floresta, a tradicional burguesia francesa da época (final da década de 30). Faz de um encontro fortuito em uma sessão de situações cotidianas, para uma transformação da vida numa prisão com ressentimentos em busca da eliminação do rival. O resultado de Golpe de Sorte em Paris tem um desfecho politicamente correto com um ranço de moralismo que beira os bons costumes. Decepciona no todo pela indolência, pois a reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, investigação, culpa e perversidade não tem o impacto que se espera do cineasta, que muitas realizações propiciaram ao cinema na sua essência dos desejos que giravam com os vínculos afetivos diante das desilusões e suas neuroses, como típicas características da sensibilidade criativa do velho mestre.