Uma Noite Histórica
Vencedor do prêmio de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio de 2023, A Batalha da Rua Maria Antônia, com direção e roteiro de Vera Egito, produção de Manoel Rangel, Egisto Betti e Heitor Dhalia, tendo as participações especiais do jornalista e biógrafo Fernando Morais e as atrizes Clara Buarque e Valentina Herszage. Pega carona no estrondoso sucesso de Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, que emocionou na narrativa sobre Eunice Paiva durante a ditadura militar no Brasil, ambientada em 1970, ao mostrar as atrocidades no enredo com o objetivo de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política quando coloca em lados opostos os membros da família brasileira. Já o docudrama político de Vera Egito cumpre satisfatoriamente seu objetivo. Apresentado em 21 planos-sequência, numa referência aos números de anos que durou o regime, em contagem regressiva. Filmado em película 16 milímetros em preto e branco com um clima de época, para desglamourizar, caso fosse fotografado em cores. Contribuem para manter a agonia do estado de apreensão e de urgência no decorrer da trama e mergulhar especificamente nesse episódio marcante resgatado e pouco conhecido do período obscuro da Ditadura Militar, ocorrido dois meses antes do famigerado AI-5.
O longa acompanha a jornada de um jovem universitário de filosofia que se envolve nos intensos conflitos ideológicos da época. Revela a rotina e os bastidores deste tema inédito e rico em conteúdo ao retratar os tensos momentos da noite de 02 de outubro de 1968, quando estudantes e professores do movimento estudantil de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP enfrentam os ataques do Comando de Caça aos Comunistas que se aliaram com grupos conservadores da Universidade Presbiteriana Mackenzie do outro lado da rua, no bairro Vila Buarque, em São Paulo. Não foram todos os alunos que aderiram aos anticomunistas. Os universitários da USP estavam envolvidos na realização de uma eleição para a União Nacional dos Estudantes (UNE), programavam passeatas e reuniões frequentes, com poucos momentos de lazer para namoros e algumas cenas de ciúmes. Um professor denunciava a direita da Mackenzie e um outro, alcaguete, contava o que acontecia na Faculdade de Filosofia para a polícia do regime. A universidade particular é mostrada através de um prédio cercado de tapumes em uma alegoria da ameaça constante da violência pelos xingamentos da retórica recorrente contra os ditos comunistas. Ali, os alunos estão sempre com atitude de ataque, se mostram agressivos todo tempo e usam terno e gravata, contrapondo com os estudantes da faculdade pública com roupas informais.
A cineasta não conseguiu filmar nos lugares originais da Rua Maria Antônia, o que é uma perda significativa. Acabou usando como locação outras construções, como o prédio onde atualmente funciona o Museu das Favelas e algumas ruas circunvizinhas, como a Floriano Peixoto e a Roberto Simonsen, ao lado do Pátio do Colégio. A diretora focou sua narrativa pelo ponto de vista dos estudantes da USP contra a direita e a ditadura, deixando o lado contrário apenas com imagens distantes e distorcidas. Embora não invalide a obra, ficou a desejar pela falta de profundidade e de isonomia. Porém, aprofunda com méritos o cotidiano da ação política contra o regime autoritário, na qual as aulas pouco interessavam, com salas praticamente vazias. O intuito e o objetivo estavam alicerçados nas formas de como reagir a um iminente ataque dos oponentes em conluio com as forças policiais aliadas ao regime de exceção. O tumulto começou por conta de um pedágio que os alunos da USP cobravam na rua, sendo atingidos com um ovo podre arremessado por um aluno da Mackenzie. O confronto explode com gritos, coquetéis molotov, pedras, paus e bombas caseiras que são jogadas de lado a lado. São quase vinte e quatro horas vividas com a paixão da juventude dos anos 1960, em defesa de um ideal, diante da iminência da invasão dos militares e policias ao prédio da USP.
Embora não esteja no roteiro no filme, a história registra que o governador Abreu Sodré determinou o cercamento do local pela polícia. O saldo do confronto foi do aluno secundarista José Carlos Guimarães de 20 anos, que estudava no Colégio Marina Cintra, morto por um tiro na cabeça, três feridos e 30 presos. Segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, a vítima foi alvejada por um membro do CCC, o alcaguete policial chamado Osni Ricardo. Estudantes de outras escolas, como os do Colégio Sion, também se encontravam na região, inclusive a filha do governador Sodré. O confronto se seguiu até que o prédio da USP fosse incendiado. O acontecimento influenciou a transferência dos cursos da USP do campus da Rua Maria Antônia para o campus Armando de Salles Oliveira, no bairro Butantã, cuja obra já estava em andamento. A mudança para a Cidade Universitária desagregou o núcleo do movimento estudantil e também desestabilizou o local que recebia outros movimentos combatentes da ditadura militar. Segundo a revista O Cruzeiro, de 09 de outubro de 1968, estiveram presentes no conflito Boris Casoy (jornalista e âncora da Rede TV), João Marcos Monteiro Flaquer, João Parisi Filho, Raul Careca e Souvenir Assumpção Sobrinho.
A Batalha da Rua Maria Antônia tem uma boa estrutura para uma dramaticidade equilibrada e sem grandes retóricas sensacionalistas, mas com um apreciável tecnicismo para evitar os arroubos de grandes cenários. Uma história contada com sensibilidade e uma visão sobre a ditadura sobrepondo os efeitos da liberdade democrática numa temática muito atual diante do avanço do autoritarismo. Os estudantes da USP, com a camisa ensanguentada da vítima fatal, tomaram as ruas de São Paulo e entraram em choque com a repressão, tendo o jovem José Dirceu, hoje ex-deputado, entre outros, liderado o movimento, segundo jornais e revistas. A realizadora revisita um dos períodos mais nebulosos da história estudantil brasileira, retratando as sombrias e abjetas repressões de uma época a ser lembrada para mostrar as feridas abertas de fantasmas que ainda pululam como lembranças nefastas. A luta pela democracia e pelos direitos esfacelados, tendo como simbologia o ataque aos estudantes, soam como resistência ao sistema truculento com resultados sempre nefandos e contrários ao estado de direito de um país civilizado. Eis um interessante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário.