Um Grande Legado
Uma das aguardadas atrações do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano era o documentário O Roteiro da Minha Vida- François Truffaut, dirigido por David Teboul, que também assina o roteiro com Serge Toubiana e Antoine de Baecque. Baseado na biografia dos roteiristas sobre François Truffaut (1932-1984), publicada em 1996, editora Record, além de escritos inéditos do realizador. Teboul explora a ligação entre os filmes para uma construção com um ângulo intimista. O espectador terá algumas inusitadas revelações, detalhes e situações densas até então desconhecidas sobre a vida do cineasta. Alguns mistérios são decifrados com luzes sendo lançadas na controvertida e tumultuada carreira de uma trajetória pequena, tendo em vista que faleceu precocemente com 52 anos, de câncer no cérebro, sendo um ícone da história do cinema do século XX. Uma das marcas do meritório diretor foi ser um dos nomes expoentes que fundou o célebre movimento cinematográfico Nouvelle Vague nos anos de 1950 e 1960, insatisfeito com os rumos da indústria do cinema, juntamente com outros cineastas, tais como: Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette.
O documentário segue um estilo convencional narrado em off, às vezes exagera e se torna didático, repetitivo e cansativo. A edição e a montagem apresentam falhas, com ausência de informações precisas, muitas vozes com depoimentos pouco importantes, embora os recortes do imenso arquivo de imagens da filmografia sejam adequados. O protagonista era um aficionado por filmes, escolhia lugares nas primeiras cadeiras para ficar mais perto da tela e mergulhar nas histórias de Alfred Hitchcock e Howard Hawks. Escreveu para Cahiers do Cinema, do editor André Bazin, quase que um pai do Truffaut na importante revista, que também morreu cedo, com 40 anos, em 1958. Os textos demonstravam ser um ferrenho crítico do cinema francês praticado na época pelos métodos utilizados que resultavam em realizações artificiais e ruins, porque os diretores preferiam trabalhar somente em estúdios que permitiam um controle de som, luz e movimentos de câmera insossos e simples. Posteriormente, largaram as máquinas de escrever para carregar câmeras filmadoras, surgindo uma série de filmes e realizadores revolucionários conhecidos pelo movimento que fundaram.
A biografia adaptada para o filme aponta entre curtas e longas-metragens 25 realizações, iniciando com o curta Uma Visita (1955) e finalizando com o longa De Repente, Num Domingo! (1983). Menciona os mais admirados como Jules e Jim- Uma Mulher Para Dois (1961), A Sereia do Mississipi (1969), As Duas Inglesas e o Amor (1971), O Último Metrô (1980), O Homem Que Amava as Mulheres (1970), A Mulher do Lado (1981), e o clássico Os Incompreendidos (1959), com boa dose autobiográfica, na qual mostra uma infância desestruturada, beirando a marginalidade, com falta de comida diante da ocupação nazista na França. São marcantes a falta de afeto da mãe ausente e de um padrasto, Roland Truffaut, que nunca assumiu a referência masculina paterna. Ambos o viam como um estorvo, não tinham nenhum pudor em livrar-se do filho quando surgiam viagens nos fins de semana, férias, e até na celebração de Natal. A morte e a perda deixaram sequelas profundas para sempre por não conhecer seu pai biológico. A resposta do Truffaut adulto aos infortúnios da puberdade, a detenção por furto, os escapes sedutores para ir ao cinema, que se tornou um ritual obsessivo, veio transformada em inspiração para filmes autobiográficos com uma mescla de dados da realidade, evocações variadas sem necessariamente implicarem das memórias pessoais.
Truffaut e Godard eram muito amigos, mas acabaram brigando e rompendo os laços profissionais, abordado superficialmente. Godard se tornou mais político e criou o grupo Dziga Vertov, praticamente abandonando o cinema dito convencional. Truffaut se rendeu ao cinema americano, inclusive atuou no papel de cientista-chefe na obra vencedora do Oscar de melhor de filme estrangeiro em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), de Steven Spielberg. Venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro com A Noite Americana (1973) ao falar de sua paixão pela sétima arte. O grande amor de sua vida foi Madeleine Morgenstern, ficaram casados de 1957 a 1965, com quem teve duas filhas (Laura e Éva). Apaixonou-se por muitas atrizes de seus filmes, celebrando o amor pela figura da mulher, entre elas estão: Julie Christie, Catherine Deneuve, Claude Jade, Françoise Dórleac, Jacqueline Bisset, Jeanne Moreau, Marie-France Pisier e Fanny Ardant, com quem teve uma filha (Joséphine).
O documentário deixou de mostrar o ator Jean-Pierre Léaud que encarnava o personagem Antoine Doinel sendo premiado com a Palma de Ouro honorária do 69º. Festival de Cannes, em 2016. Léaud estreou no evento apresentando Os Incompreendidos, seu primeiro trabalho como protagonista, aos 14 anos, com o personagem era Doinel, alterego de Truffaut que voltaria a encarnar em Antoine e Colette (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979). A postura política do cineasta foi marcante ao lado de Godard nos protestos que levaram ao cancelamento do Festival de Cannes em 1968, uma espécie de continuidade da rebelião do famoso maio daquele ano, em Paris, ainda que na juventude tivesse alguma simpatia pelas posições de direita. Era um leitor compulsivo, por isto entrevistou Hitchcock por 8 dias consecutivos em Los Angeles, que deu origem ao livro Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, produzindo uma publicação de referência nas livrarias para os abnegados cinéfilos e estudiosos. Louvável o esforço para reconstruir a sua memória com um legado magnífico para quem viveu pouco. A sucessão de perdas o envolveu, mas a tragédia nunca barrou sua arte, exceto quando esteve internado numa clínica com depressão. Há passagens em que se discutem as representações do amor e da sexualidade no cinema, sempre enfatizando a Nouvelle Vague na busca obstinada de formas mais autênticas e coerentes para representar o ser humano nesta interessante reflexão, mesmo com seus equívocos, sobre a vida e a celebração existencial.