terça-feira, 28 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Melhor Enlouquecer na Natureza)

 


Os Gêmeos

Com procedência da República Tcheca em coprodução com a Eslováquia, Melhor Enlouquecer na Natureza é um dos bons filmes apresentados nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Baseado no livro homônimo de Aleš Palán, que inclui várias histórias sobre os eremitas de Sumava, na região de montanhas, em um parque nacional localizado no sudoeste da República Tcheca, na fronteira com a Alemanha e a Áustria. Nascido em Ladce, atual Eslováquia, em 1983, o diretor eslovaco Miro Remo também assina o roteiro em parceria com o autor do romance. Estudou na Academia de Cinema da Bratislava, e seu filme de conclusão de curso, Arsy- Versy (2009), premiado no Festival de Sheffield. Entre seus outros longas estão Comeback (2014), Richard Müller: Nespoznany (2016) e At Full Throttle (2021). Em entrevista à Variety, o cineasta afirmou: “Passamos 60 dias com os irmãos ao longo de cinco anos, e comecei a sentir que os animais deles também estavam se comunicando conosco. A maior vantagem era que tudo era possível naquele projeto. Só precisávamos superar nosso medo de convenções”. Foi vencedor do Globo de Cristal de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary.

O enredo tem seu foco total nos irmãos gêmeos Franta e Ondra (interpretado também pelos gêmeos František Klišík e Ondřej Klišík). Os protagonistas são dois eremitas inseparáveis que vivem completamente afastados da civilização naquelas montanhas com suas fantasias e idiossincrasias. Eles estão mergulhados na imersão da natureza, enfrentando a tensão entre o anseio por aventura e a necessidade de segurança. A rotina pacífica e harmoniosa que dividem começa a sofrer abalos quando as diferenças entre eles se tornam evidentes: enquanto Franta anseia por liberdade e aventura, Ondra se agarra à segurança das coisas que não mudam. Essa dupla existência se parte como um espelho, diante das vontades distintas. Há uma dinâmica como uma simbiose entre os dois que compartilham uma vida pacífica na natureza, mas cujas vontades distintas começam a causar pequenos conflitos. No silêncio da paisagem que os rodeiam, se desenha um delicado drama de separação, reconciliação e reencontro. Uma fábula humana adulta de devaneios sobre o que permanece quando os laços que unem começam a fraquejar.

Um painel excêntrico e afetuoso dessa convivência fora da realidade do mundo daqueles personagens barbudos, ásperos e quase míticos envelhecendo juntos. Ora nus no meio do mato, ou discutindo sobre a morte e a própria existência. Eles estão rodeados de vacas, cães, galinhas e árvores. Sonham e discutem filosofia de vida, brigando, bebendo e rindo como se o tempo tivesse parado. O realizador mescla o real e a poesia com um humor sarcástico oriundo da convivência entre algumas cenas com delicadeza e o grotesco. Uma vaca narra algumas cenas, lambe a vasta barba em clima afetuoso, deixando fluir um tom mágico com situações irônicas ao fazer menções contundentes sobre os seus tutores, até que um touro bravo chamado de Tolstói investe contra um dos irmãos, tendo como consequência a perda do antebraço. Há algum encanto na observação do dia a dia dos irmãos sem que haja um definitivo julgamento. Alterna momentos de silêncios contemplativos com risos de preocupação com o futuro. Ou seja, quem vai morrer primeiro e deixar aquela natureza com seus fascínios próprios, captada pelas lentes do diretor de fotografia Dušan Husár, que transforma a floresta em personagem, capturando a luz fria e seus reflexos pelo som dos pássaros, do vento que corta os diálogos entre eles e a iminência da solidão de quem ficar ali por último.

O filme segue uma temática semelhante ao islandês A Ovelha Negra (2015),dirigido por Grímur Hákonarson, que retratou de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Mas surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores de ovinos. A iminente falência do sustento familiar faz uma reflexão literal do desenrolar da trama o modo de sobrevivência de um povo, que poderia sugerir e remeter para uma alegoria do país decorrente da avassaladora crise financeira mundial de 2008, que abalou várias nações europeias e nas Américas, deixando um rastro de desemprego como poucas vezes visto. Tanto o longa da Islândia como o da República Tcheca proporcionam uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes daqueles habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida.

Melhor Enlouquecer na Natureza é bem atual ao mostrar em uma única cena fora do meio rural a premiação de um dos protagonistas recebendo a láurea pela liberdade e a luta dos povos. No discurso de agradecimento, o homenageado não perde tempo e alfineta com revolta os arroubos autoritários de Vladimir Putin, visto como um novo Adolf Hitler contemporâneo, pela arrogância, pouca sensibilidade e virulência com os países vizinhos. Embora menor que Ovelha Negra, apresenta alguns equívocos de roteiro e edição sem invalidar a obra, tem como ponto alto os diálogos ásperos marcantes dos irmãos broncos, por vezes românticos e saudosistas na aldeia com seus aspectos poéticos contrapondo com a dureza da vida cotidiana. As brigas e provocações soam como combustível para se amarem e se beijarem como característica de gêmeos inseparáveis do instinto da natureza humana. Um não vive sem o outro, pois a solidão seria devastadora sem um deles, que filosofa: “A morte não existe, o que existe á e a vida”. Uma realização que marca pelos diálogos e a fotografia, sendo fundamental pelo sentido existencial do grande amor e ternura fraternal e a relação indissolúvel naquele lugarejo bucólico. Sobra afeto para uma energia humana diante da provável perda de uma das referências do vínculo familiar que se romperá, mas sempre permanecerá o sentimento de carinho entre os gêmeos.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Terra Perdida)

 

Os Irmãos

Vem do Japão em coprodução com a Malásia, a França e a Alemanha o filme Terra Perdida, um surpreendente drama social sobre a imigração nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com a fascinante fotografia de belas imagens captadas pelas lentes do competente fotógrafo Yoshio Kitagawa. Venceu o Prêmio especial do júri da seção Horizontes em Veneza. A direção e o roteiro são do japonês Akio Fujimoto, formado em cinema na Visual Arts Academy em Osaka, onde nasceu. Sua realização mescla ficção e documentário com uma abordagem humanista ao retratar dois irmãos menores que viveram em um campo de refugiados e acabam entrando numa jornada rumo à Malásia na esperança de se reunirem à família. Frequentemente, o diretor trata da vida de pessoas que vivem à margem da sociedade. Tem em sua filmografia os longas-metragens Passage of Lif (2017), vencedor dos prêmios de melhor filme e direção na seção Asian Future do Festival de Tóquio, e Along the Sea (2020), apresentado no Festival de San Sebastián.

A trama gira em torno de Somira (Shomira Rias Uddin Muhammad), a irmã astuta de 9 anos e Shafi (Muhammad Shofik Rias Uddin), o simpático irmão de 4 anos. Depois de viverem em um campo de refugiados em Bangladesh, os inseparáveis irmãos são colocados num barco pela própria mãe rumo à Malásia com um grupo de outros refugiados rohingya, A crise deles é humanitária que começou com a intensificação da violência contra a minoria rohingya no pequeno país Mianmar em agosto de 2017, forçando mais de 750.000 pessoas a fugirem para Bangladesh. Na esperança de se reunirem com sua família, os manos passam dias intermináveis em um barco de contrabandistas superlotado, até que um incidente no mar os deixam sozinhos e perdidos na Tailândia. Mas existe alguma bondade em pessoas com o mesmo foco que encontram aleatoriamente pelo caminho, aliada aos seus espíritos resilientes, mostram que não estão sozinhos no mundo e a distância de casa pouco importa. O sonho de encontrar os parentes biológicos é mais forte, tendo em vista que foram separados pelas dificuldades por onde andaram. No entanto, jamais poderiam imaginar que o trajeto seria altamente perigoso pelas circunstâncias alheias.

O realizador em sua narrativa dramática retrata, de forma sutil e sensível, sem usar recursos de clichês recorrentes em realizadores incompetentes, mostra cenas dos imigrantes à procura de um lugar melhor para se estabelecerem, sem as apelações usuais. Conta a história das crianças e seus parceiros de ocasião que vira uma verdadeira epopeia entristecedora, como o confronto com a polícia costeira tailandesa; a tempestade em alto-mar que dizimou vários refugiados, entre eles, o rapaz sonhador que queria ser dono de uma escola e o jovem que desejava ser professor. As amarguras e contratempos são confrontadas com a esperança de uma solução pragmática em uma sociedade doente em ruínas. Fujimoto aproxima a câmera nos rostos dos personagens para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias que brotam e se espalham pelos olhares, como dos imigrantes dentro do atulhado barco quase à deriva em busca da liberdade e de um horizonte tênue. As crianças correm e se divertem ingenuamente numa comunidade logo após o acidente com a embarcação, logo se integram a um novo grupo que também procura o retorno para a Malásia. A cobrança de valores exagerados de agentes mesquinhos misturados a facções inescrupulosas sem pudor, sendo mal recebidos e extorquidos, fazem vítimas com alguns sendo executados como exemplo.

Tudo anda em compasso de espera até a abrupta separação dos irmãos pela brutalidade objetiva com ingredientes de um realismo cruel. O novo lar do menininho não o consola e seus sonhos com a irmã são reveladores para um destino de procura incessante da desaparecida. A dor, a lembrança e a esperança andam juntas, porque nada substitui o afeto e o vínculo rompido pela separação involuntária. Um relato triste e realista de uma situação da pobreza extrema na busca de novas perspectivas, que remete para o espetacular longa italiano Eu, Capitão (2023), do badalado cineasta Matteo Garrone. A similitude é muito próxima pela temática da desagregação familiar diante da separação pela imigração ao especular um mundo melhor. A crença religiosa em Alá, o Deus muçulmano em que acreditam para exprimir os sentimentos de confiança, alegria e vitória, no qual é venerado, intuindo que este nunca os abandonarão. Serve como um puro combustível potente para seguir a saga da fé e da resistência nesta luta dolorosa de pouca perspectiva. Enfrentam uma série de desafios para testar a própria dignidade humana nesta arriscada empreitada. Nada porá fim na esperança até a tragédia chegar com uma força devastadora e jogar em cada espectador, para sair da zona de conforto, a dura realidade da insensatez. Os caminhos são tortuosos e de muita hostilidade parar encontrar as fantasias de um futuro edificante de ilusões, apenas.

O contexto narrativo é fundamental para criar um clímax de medo da contumaz miséria e do terror psicológico pela barbárie das facções encontradas como entraves pelo caminho, torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os irmãos e a plateia se chocam com as circunstâncias adversas. Embora surpreendidos no epílogo como elementos distorcidos do resgate da dignidade ultrajada pela humilhação. Uma realização com amplitude maior na abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre as perdas acumuladas. Os elementos opressores obscuros são retratados pela realidade selvagem das dificuldades impostas como a corrupção, a violência e a solidão. Terra Perdida é um drama magnífico com um desfecho nada alentador, aflorando o pessimismo. Ainda que haja ausência total do gênero melodrama apelativo no enredo ao escapar das armadilhas do maniqueísmo, fica difícil segurar a lágrima que escorre pelo rosto. Uma história com subsídios fortes na sua essência, que revela diversos aspectos sobre os seres humanos que decidem sair da pobreza diante do caos para seguir em frente. Serve como reflexão sobre as irracionalidades bestiais neste painel arrebatador pela sobrevivência.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (The President's Cake)

 

Regime Opressivo

Digno e fortíssimo representante do Iraque no Oscar do próximo ano, coproduzido com os EUA e o Catar, The President's Cake, traduzido do inglês para O Bolo do Presidente, com direção e roteiro de Hasan Hadi em seu primeiro longa-metragem, que cresceu no sul do país durante a guerra e, ao longo dos anos, trabalhou com jornalismo e produção. Provavelmente o melhor filme desta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Uma fábula moderna adulta mesclada com drama social sobre uma criança encarregada de fazer um bolo em homenagem ao aniversário do ditador Saddam Hussein numa celebração com uma festa cívica obrigatória. Despertou reações entusiastas no Festival de Cannes, tendo vencido o Caméra d’Or, prêmio de melhor filme de estreia, e do prêmio do público da Quinzena dos Cineastas. O cinema iraquiano é, sobretudo, associado a nomes como Abbas Fahdel com Retour à Babylone (2002) e Homeland - Iraq Year Zero (2015); Mohamed Al-Daradji, premiado em Berlim com Filho da Babilónia, (2009); e Mohamed Shukri Jameel conhecido por King Ghazi of Iraq (1993).

O longa foi ambientado nos anos 1990, em meio à guerra e uma gigantesca falta de comida, sob o regime totalitário de Saddam. Conta a triste e instigante história de Lamia (Banin Ahmad Nayef em uma antológica atual infantil), uma menina de nove anos que tenta escapar da tarefa, mas acaba sendo escolhida para fazer um agrado ao déspota na comemoração de sua passagem de ano, determinada por ele mesmo para que todas as escolas do país fizessem um bolo em sua homenagem. Com poucos recursos e medo de ser punida, embarca em uma jornada culinária em uma cidade próxima de seu povoado na busca de ingredientes como ovos, farinha de trigo, fermento e açúcar. A protagonista está sempre acompanhada da severa avó (Waheed Thabet Khreibat), do colega de sala de aula Saeed (Sajad Mohamad Qasem), e um galo vermelho de estimação como fiel escudeiro, cobiçado por todos os aviários da região. O filme constrói um magnífico painel de opressão e subserviência interna pelo regime autoritário; e externa, pelas bombas que caem ao redor oriundas do ataque na guerra contra os Estados Unidos da América.

O cineasta mostra sem concessões uma sociedade que está numa angustiante miséria na qual tudo gira em torno do todo poderoso governante. As fotos e os porters do tirano estão espalhadas por todos os lados e ninguém ousa contrariá-lo, sob pena de ser eliminado ou sofrer torturas nos porões. O diretor do colégio segue à risca os dogmas e orientações do governo ditatorial ao realizar um sorteio duvidoso com tintas de simulação entre os alunos. Um deles é o menino Saeed em que o pai foi torturado, tendo que trazer frutas frescas. A menininha terá que fazer um bolo saboroso e bem feito. Os sorteados são avisados duramente de que seus familiares serão castigados exemplarmente caso não cumpram as regras do jogo. A saga de Lamia vira um verdadeiro inferno dantesco, mesmo que acompanhada do coleguinha e da avó, da qual foge ao ser oferecida como objeto para uma mulher suspeita de prostituição. Durante o calvário, a idosa fica doente e vai parar num posto de saúde imundo e sem recursos. Enquanto isto, os dois menores cometem pequenos furtos para tentar obter os ingredientes e as frutas.

A peregrinação intensa é chocante e de puro realismo para o casal pré-adolescente oriundos de uma aldeia pobre em que o único meio de transporte é o barco. Eles andam pelas ruas da cidade interiorana, sofrem tentativas de abusos, são trapaceados por golpistas que querem sempre um algo mais. Um painel vigoroso e sórdido de uma sociedade machista composta por homens sem escrúpulos que não respeitam minimamente as mulheres. Pululam personagens horrendos, como o tarado que abusa de uma grávida prestes a entrar em trabalho de parto; um pedófilo que usa artifícios ignóbeis para manipular a personagem central com o objetivo de estuprá-la no cinema. Alega que tem o seu galo de estimação, animal que interage com Lamia e lhe dá sinais de respostas de situações complicadas e inusitadas. No desfile cívico, percebe-se os meninos militarizados nas suas vestimentas, saudando e gritando histericamente cantos de regozijos com frases e slogans para mobilizar e expressar na defesa do sinistro presidente.

The President's Cake é um filme singular que retrata com fidelidade as mazelas da saúde e suas deficiências crônicas e estruturais, além da fome, da miséria e da falta de infraestrutura no saneamento básico de esgoto e água potável. Não bastassem os problemas internos, há os constantes bombardeios, inclusive as escolas com alunos como alvos, oriundos dos aviões sobrevoando dos norte-americanos. Eis uma fábula extraordinária retratando com muita veemência as atrocidades com crueza, embora haja um humor contido para aliviar a tensão, fica plasmada a caótica situação de um povo desprotegido devido à crise institucional do país. Um retrato cruel de uma coletividade humilhada e faminta, mas ainda assim luta com suas forças que saem do fundo da alma de um população resiliente, representada metaforicamente pelas duas crianças em suas andanças para sobreviverem. Um marcante libelo histórico contemporâneo, significativo e relevante por seus aspectos, de um regime totalitário.

Um grito contra a opressão pela beleza da arte cinematográfica inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre como se expressar numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, e de um sistema ultrapassado e sem um mínimo de liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder alegórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas, usando sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força dos personagens oprimidos sem terem o direito de contestar nesta desassombrada obra contra o despotismo. Remete como similitude para o inesquecível drama Os Incompreendidos (1959), do mestre francês François Truffaut. Importante destacar a monumental melódica trilha sonora rítmica, sem ser invasiva, que ecoa num tom melancólico, e se alinha com a primorosa fotografia de Tudor Vladimir Panduru, sem glamourização, dando o equilíbrio exato nesta trama bem urdida. A montagem, a edição, o enquadramento, o roteiro, a direção e todo o elenco são impecáveis. Por todo o conjunto estrutural da realização, com simplicidade e notável profundidade de realismo, uma legítima obra-prima.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Mostra de Cinema São Paulo (Vida de Fantasia)

 

Relação Improvável

Vem dos EUA a agradável surpresa nesta 49ª. Mostra de Cinema de São Paulo, a boa e sensível comédia dramática familiar intimista Vida de Fantasia sobre ética médica, os amores, ciúmes, como consequência e, em alguns casos, a traição como um ingrediente preponderante no tema e subtema desta obra norte-americana. Vencedor do prêmio especial do júri de melhor interpretação para a bela e talentosa atriz Amanda Peet, e do prêmio do público de melhor longa-metragem de ficção no Festival South by Southwest, também chamado de SXSW, um conjunto de festivais de cinema, mídia interativa, música e tecnologia realizado anualmente no mês de março em Austin, Texas, nos Estados Unidos. Após atuar em diversos longas, o ator nova-iorquino Matthew Shear, de 41 anos, faz sua estreia na direção, além de assinar o roteiro. Conhecido por atuar em filmes como Mistress America (2015) e Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (2017), ambos de Noah Baumbach, The Boy Downstairs (2017), de Sophie Brooks, Tempo (2021), de M. Night Shyamalan, e Entre os Templos (2024), de Nathan Silver.

O enredo aborda uma família judia com seus problemas inerentes em Nova Iorque, no característico estilo das comédias românticas neurotizantes de Woody Allen, no qual o cineasta se mostra como um bom discípulo. Um veterano psiquiatra trata de um jovem advogado tributarista, Sam Stein (Matthew Shear), que acaba de perder o emprego e tem crises de ataque de pânico. Acaba conseguindo provisoriamente um trabalho como babá das três netas de seu médico. O realizador astutamente coloca a mãe das meninas, Dianne (Amanda Peet), uma atriz que começa a envelhecer para os padrões de Hollywood e vê sua carreira estagnar pelo etarismo. Ela passa boa parte do tempo enclausurada no quarto com depressão profunda, sem ânimo para trabalhar e nenhuma libido para transar com o marido. Não bastassem os problemas profissionais, vive um casamento conturbado com David (Alessandro Nivola), um baixista de uma banda de rock que com suas turnês frequentes, algumas no exterior, acaba se afastando da família, especialmente da companheira. Embora previsível o affair, surge a química entre Dianne e Sam, diante da afinidade natural e a proximidade do ora cuidador de crianças com a empregadora, nora de seu terapeuta.

A realização foca com sutileza no histórico comum de transtornos mentais do jovem protagonista e suas recaídas e inclusive algumas patacoadas. Com o desenrolar da história, ele se junta à família da atriz em crise para cuidar das três garotinhas durante o verão em Martha’s Vineyard, indo morar na mesma casa na qual está a mulher por quem se apaixonou, com a presença do esposo, as crianças e os quatro avós- incluindo o próprio psiquiatra. A amizade que logo vira uma relação com algum vínculo mais profundo irá propiciar crises de ciúmes em David, um dos lados do triângulo, em um dos jantares de toda a família reunida, com consequências desastrosas que acarreta em um acidente grave fisicamente. O gatilho é acionado para o amor e para a vida ser levada com intensidade, eis o grande fator para os dois atormentados pelos problemas psicológicos de desânimo e insatisfação. As cutucadas na janta e a lavagem de roupa suja, como se fosse uma lavanderia, são fatores determinantes, bem como a ética médica do não envolvimento com paciente no microcosmo familiar.

O filme coloca como pano de fundo algumas alfinetadas de indignação com o governo Donald Trump e suas fanfarronices sofocantes. O antissemitismo é apresentado como um ingrediente corrosivo dentro da própria família judia como um questionamento interessante. Há boas tiradas de humor para intercalar com os momentos tensos e melancólicos até o desfecho pouco convencional, considerando as circunstâncias do que será melhor para todos, ainda que um politicamente correto típico de uma sociedade de aparências e hipócrita. A luz no fim do túnel é o indicativo primordial de que nunca é tarde para recomeçar e tentar de novo e sempre, como manda o tradicional manual de reconstrução. Mesmo que haja dissabores como elementos próprios de transformação. As inequívocas circunstâncias da alma e do coração com o amor, o ardor e a dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de beleza e tristeza como uma poesia. Dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa a ser amada.

O diretor disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor e da perda em toda sua extensão com os vínculos afetivos decorrentes. Vida de Fantasia reflete a solidão, o etarismo, a ética aranhada e a traição que estão presentes nos personagens envolvidos ao representar em seus papéis da vida no dia a dia e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã. Como uma simbologia da existência pelo rompimento, a reconciliação de um outro personagem mergulhado na incerteza, além das idas e vindas nas relações turbulentas. Há simplicidade com os romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao drama vivido. São as escolhas livres ou não e as consequências que os personagens irão assumir. A tentativa de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual, além do desconforto da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos tacanhos, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do amor. É boa a dose de emoção, neste aspecto estão presentes as grandes virtudes desta trama que deixa fluir os traços de uma realidade dolorida e prazerosa.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O Último Azul

 

Sonho de Liberdade

O festejado diretor pernambucano Gabriel Mascaro alçou voo alto e conquistou vários prêmios importantes na sua admirável e consistente produção Ventos de Agosto (2014), com menção honrosa no Festival de Locarno, na Suíça, único filme brasileiro a participar do evento. Foi premiado no 47º. Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia, e o troféu Vagalume de melhor filme. No seu segundo longa-metragem ficcional, Boi Neon (2015), arrebatou a láurea de melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para a garotinha Alyne Santana no Festival do Rio de Janeiro, além de conquistar críticos e públicos em aproximadamente 30 festivais brasileiros e no Exterior, totalizando14 prêmios, entre os quais também o do júri na Mostra Horizontes no Festival de Veneza, e participou do 40º. Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2015. Impõe-se como um dos maiores cineastas brasileiros contemporâneos, tendo ainda em sua filmografia o drama Divino Amor (2019), e os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).

A última obra do realizador, O Último Azul foi coproduzido com o Chile e os Países Baixos, tendo conquistado o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Há boas chances de representar o Brasil no Oscar de 2026, embora haja a forte concorrência dos pesos pesados multipremiados Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho e Manas (2024), de Mariana Brennand. O diretor divide o dinâmico roteiro com Tibério Azul para criar esta interessante obra de ficção científica mesclada com drama social. Retrata um Brasil distópico organizado de uma forma opressiva e assustadora no qual os idosos são confinados compulsoriamente em colônias habitacionais ao completarem 75 anos. Com uma fascinante fotografia de Guillermo Garza na captura de belas imagens do cotidiano apresentado em planos próximos das ações em uma cidade industrializada e das águas dos rios e afluentes da região com suas matas ensolaradas que permite a apreciação. O enredo acompanha Tereza (Denise Weinberg em uma estupenda atuação), uma idosa de 77 anos que, ao ser intimada para deixar sua casa, inicia uma saga pela Amazônia para realizar seu último desejo de uma viagem de avião, antes de ser forçada pela política autoritária do exílio implementada pelo governo.

O filme explora o tema como etarismo e a busca pela autonomia e a liberdade, tendo em vista que lhe são cassados seus documentos, ficando a filha adulta com a guarda automática, pela ideia de permitir que os jovens possam produzir sem se preocupar com os mais velhos para eles "desfrutarem" seus últimos dias de vida. Expulsa de seu lar para ser enviada para bem longe, de onde ninguém retorna, foge e conhece o barqueiro (Rodrigo Santoro em atuação rápida), este apresenta à protagonista um elemento mágico para alterar os sentidos, a percepção e o pensamento da dura realidade, uma gosma azul alucinógena para pingar nos olhos que é extraída de um caracol capaz de revelar o futuro. Sem imaginar que essa viagem de aventura irá mudar o rumo de sua vida. Lá conhece pessoas de bom e mau caráter que tentam dar pequenos golpes na personagem central. Uns ultrapassam o marco da boa civilidade por uma série de delitos que testam a própria dignidade humana. O realizador pontua com amplitude as relações dos fragmentos da dura ruptura social de seres humanos sensíveis e sonhadores de cabelos brancos, vilipendiados pela estupidez de uma política criminosa contra os velhos pela vigilância permanente e cerrada que aprisionam em um “cata-velho”, uma espécie de carrocinha que não leva cachorros, mas idosos, como bem frisou o crítico Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo.

A aventura da fugitiva é uma interessante alegoria para conhecermos um futuro surreal paralelo ao mundo real. A liberdade oprimida pelos desejos vigiados significa embrenhar-se no risco, mas não se exilar numa colônia perigosa e desconhecida. O envelhecimento provoca a reflexão de um tabu no futuro, onde a juventude é vista como bela, sadia, promissora e otimista, e precisam estar livres para produzir e viver. A viagem apresenta alguns dissabores, e bons momentos para Tereza que encontra Roberta (Miriam Socarrás), dona de um barco enorme que flutua pelos rios, logo elas fazem uma grande amizade. Querem viver livres com boas ou más situações, agradáveis ou não, como a luta mortal entre dois peixinhos, mas sempre com os riscos inerentes e as surpresas que o destino apresenta. A plenitude da vida e sua essência tanto na aventura, como no sofrimento, no jogo, no qual depois do medo vem o riso da vitória com o encantamento de não morrer esquecida num depósito de velhos. O retorno com o olhar para as palafitas após a aventura junto à natureza soa como a retomada da existência. O cinema autoral de Mascaro, assim como Kleber Mendonça Filho, se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com boa precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi.

Todos os sons e ruídos são familiares para o cineasta, que apresenta domínio de uma estrutura narrativa sem cair na obviedade e sem perder a poesia em suas obras. Em Ventos de Agosto havia situações caracterizadoras e envolventes que marcavam a revolta da natureza para colocar os contrastes da vida de um lugar pré-histórico com a existência do mundo dito civilizado de embarcações com turistas ávidos pelo descanso, ignorando a total falta de assistência social àqueles nativos e suas superações que virão como se um peculiar novo dia nascesse como sugere o desenlace, embora dentro de um contexto negativo da estratificação social pelas desigualdades contundentes. Já em Boi Neon, talvez sua obra máxima, existia elementos com rara qualidade num drama bem brasileiro distante das metrópoles como essência da revolta silenciosa dos personagens para fincarem desejos nos contrastes da vida civilizada daqueles nativos e suas superações que virão como se um novo dia nascesse. Mas a reflexão no desfecho sugere um contexto pouco otimista, que dificilmente irá se afastar da trivialidade como continuação de suas trajetórias realistas da existência amarga e melancólica. O Último Azul é menos pessimista e mais alvissareiro ao criar mundos familiares e estranhos com uma trama aparentemente simples e uma narrativa consistente, sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com razoável profundidade num clímax de suspense aceitável. Eis uma simbologia do futuro pouco promissora aos idosos, da natureza tratada com descaso, tanto a do ecossistema como a humana. Mas há um sopro de luz no fim do túnel no epílogo redentor da liberdade independente e irrestrita que contraria o estereótipo comum e condenável da terceira idade descartável.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

A Luz

 

Sociedade Disfuncional

O diretor e roteirista alemão Tom Tykwer- conhecido internacionalmente por Corra, Lola, Corra (1998) e Perfume- A História de Um Assassino (2006)- está de volta com um dos filmes mais impactantes deste ano, seu mais recente longa-metragem, A Luz, coproduzido com o Reino Unido e a França, exibido na sessão de abertura do Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2025. Soube desenvolver a conexão espiritual de uma mulher simples com uma família completamente desintegrada por conflitos internos, que acaba sendo radicalmente transformada ao passar por uma experiência fora do comum e da rotina habitual na qual viviam. Um suspense que transita para o musical em algumas cenas, passa pelos problemas políticos internacionais e ingressa no drama familiar. A chuva em abundância constante em quase todo o desenrolar é o ingrediente metafórico para o final inusitado, surrealista e revelador. Intenso e quase sempre frenético capta a grande solidão familiar como elemento propulsor de uma sociedade moderna cosmopolita sem rumo, pelo deleite do realizador em sua narrativa, que tem sua marca registrada na qualidade estética e estrutural. Mostra personagens perdidos na selva humana que tentam fugir dos seus demônios.

Tykwer aborda uma típica família alemã disfuncional que enfrenta o próprio colapso enquanto lida com os problemas inerentes contemporâneos. A trama traz Tim (Lars Eidinger) e Milena (Nicolette Krebitz) casados e dividindo um apartamento em Berlim com seus filhos gêmeos Frieda (Elke Biesendorfen) e Jon (Julius Gause), além do enteado de Tim, filho de Milena, o pré-adolescente Dio (Elyas Eldridge). O marido é um intelectual que ama sua esposa, mas ela é uma mulher estressada em seu trabalho ao desenvolver uma atividade no governo federal, mas quase sempre viajando. Apesar de conviverem no mesmo teto, os cinco membros familiares possuem vidas distintas e estão divorciados da vida em comum. Pouco interessados no que cada um faz, numa relação individualista, sem afeto, que sequer sabem direito o nome da empregada que morre repentinamente. Tudo muda com a chegada misteriosa da nova doméstica, Farrah ( Tala Al Deen). Ela traz um passado de fuga de seu país de origem, a Síria, que passa por convulsões sociais e perseguições aos que se opõem ao regime ditatorial vigente. Aos poucos vai revelando suas emoções subtraídas, deixando as verdades pretéritas serem ocultadas. Busca uma nova vida para aqueles personagens desunidos e perdidos em suas existências, mas gradativamente vai mudando a forma de entender e ver um novo mundo.

A obra é intimista sobre as fragilidades e a presença invisível das relações fraturadas no contexto da desintegração silenciosa de pais esgotados e prestes a se separarem diante do abismo da solidão, de raro vínculo emocional. Os filhos desconectados flutuam numa rotina sem carinho, dedicação e amor. A jovem vive em festas regadas com drogas e bebidas; o rapaz está sempre em seu quarto no mundo virtual; o pré-adolescente anda de um lado para outro, ora com o pai, ora sozinho. Um a um se aproxima da nova componente daquele microcosmo familiar, sem saber que a recém-contratada não chegou lá por acaso. A precipitação climática, com aquele aguaceiro interminável, irá aproximar pessoas perdidas numa metrópole comprometida na conexão com um mundo caótico e enlouquecedor, quase sem saída, como se estivessem presos dentro de um hospício a céu aberto. O cineasta coloca com méritos inquestionáveis uma alegoria das enrascadas que cada ser humano poderá ter no seu dia a dia, remetendo para o drama argentino Chuva (2008), de Paula Hernández, que retratou o comportamento humano dos estranhos que se encontram fortuitamente e descobrem afinidades como a reflexão dos solitários numa barulhenta cidade entre ausências, saudades e medos nas buscas pessoais e seus desejos complexos.

Impressiona tanto pela abordagem intimista familiar desestruturada como pela mudança do roteiro que perpassa do cinema convencional para entrar no realismo fantástico imaginário de mentes e corações, tanto dos personagens como do espectador. Há uma mudança de ritmo e uma inspiração genuína para as vidas modernas estressadas, com a perda da racionalidade pelo ritmo alucinado dos seres humanos dentro de uma engrenagem sombria e exausta, contrapondo com a paixão e a comicidade nas cenas sequenciais musicais inspiradas no filme Matrix (1999), dirigido pelas irmãs Wachowski, no qual os personagens estão atormentados por estranhos pesadelos por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro. O sonho se repete e a desconfiança da realidade emerge. A realização ilumina não apenas espaços, mas pensamento que se tornaram confortáveis através de uma história precisa pelos elementos psicológicos encontrados no enredo que aponta uma amargura na sociedade atual eivada de hipocrisia, sem indicativos de luz, moralmente carregada. A cegueira se faz presente pelos danos causados pelo modo repressor e uma arrogância recorrente.

O diretor foca nos devaneios com consequências nefastas nas relações sociais que atingem o estado de satisfação física, emocional e espiritual pelos poderes sensitivos, às vezes em transe, da empregada síria. O narcisismo e a responsabilidade equivocada estão presentes, como nas constantes cenas do espelho e da luz para quem não quer ver e opta por continuar na escuridão da cegueira. O festejado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e principalmente em Memória (2021), que capta o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por frondosas árvores e montanhas em imagens de uma natureza enigmática para meditação, como elementos essenciais de uma narrativa, com raros diálogos, notabilizou-se um cultor de uma cinematografia exótica, fora dos padrões tradicionais. Já Tykwer também se utiliza dos aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos, com configurações que levam à imersão do espectador, em algumas cenas sobrenaturais do universo cósmico. Os personagens mergulham numa verdadeira hipnose coletiva no desfecho para realizarem uma procura em outras dimensões, algo que assusta e ao mesmo tempo, fascina, como soluções que inquietam nossa realidade. O realizador pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é algo extraordinário.

A Luz é uma experiência sensorial numa viagem ao subconsciente, literalmente. Exuberante nas imagens e na interpretação para todas as evidências lançadas como provocação. A proposta é deixar fluir a história para reflexão que irá se destilando aos poucos em nossa alma, coração e espírito. O desfecho é singular, nada é linear, tudo é contextualizado e complexo, como o estrondo das águas como uma grande tempestade com desdobramentos em diversas camadas da memória para propor uma meditação vigorosa do existencialismo e seus reflexos sutis com o olhar para a realidade humana que transcende e exorbita para o universo da fantasia em uma imersão sensorial catártica. Conduz para um banho de purificação pelas águas torrenciais. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre a existência e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos adequados ao tema, sob o ponto de vista humano. Transcendental, espiritual ou metafísica como possa parecer, fica na retina de cada espectador este soberbo drama para se chegar ao êxtase sensitivo e perturbador no epílogo.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A Prisioneira de Bordeaux

 

Classes Sociais Distintas

Um filme que vem correspondendo à expectativa é a recente realização A Prisioneira de Bordeaux, da competente cineasta francesa Patricia Mazuy, que somente agora estreia nos cinemas brasileiros após exibição na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado. Tem uma enorme filmografia, na qual foi assistente de direção em Um Quarto na Cidade (1982), de Jacques Demy, editou Os Renegados (1985), de Agnès Varda, dirigiu os longas-metragens Um Homem Marcado (1988), Travolta e Eu (1993), Saint-Cyr (2000), Basse Normandie (2004), Sport de Filles (2011), Paul Sanchez Está de Volta (2018) e Boliche Saturno (2022), que ganhou cinco estrelas na revista Cahiers du Cinéma. Teve passagem na Quinzena dos Realizadores de Cannes e Locarno. O enxuto e seco roteiro traz as assinaturas da diretora e de Fraçois Bégaudeau e Pierre Courrège, que emprestam credibilidade para a boa recepção de público, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora de Amine Bouhafa e a fascinante fotografia de Simon Beaufils.

A trama de Mazuy foca seu drama familiar em pessoas reais de carne e osso, sendo capazes de mesquinharias, solidariedades e até de gestos generosos. A protagonista Alma Lund é interpretada por Isabelle Huppert, sempre impecável, uma clássica dama do cinema, talhada para este tipo de papel, ao se doar com extremo senso de profissionalismo, como já o fizera em A Professora de Piano (2001), de Michael Haneke. Uma mulher branca de meia-idade, elegante e sofisticada, fruto da elite francesa, que está passando por momentos desafiadores desde a prisão de seu marido, um médico renomado que cumpre prisão ao ser condenado em seis anos por atropelar mãe e filha sem prestar socorro, em estado de alcoolização, morrendo uma delas. Ela é uma mulher solitária que vive numa linda mansão na cidade de Bordeaux. Em um dos dias da visita ao presídio, depara-se na antessala com Mina Hirti, numa atuação magnífica da atriz franco-tunisiana Hafsia Herzi, revelada em O Segredo do Grão, de Abdellati Kechiche. A imigrante é uma mulher árabe que mora com um casal de filhos menores num conjunto habitacional de uma cidade distante e trabalha numa tinturaria para o sustento familiar. Também tem um marido presidiário por assalto à uma joalheria e se surpreende que não poderá fazer a visita naquele dia, por não ter agendada a visita. Entra em completo desespero e finge desmaiar, tendo em vista a distância para um retorno imediato.

No prólogo, a realizadora demonstra uma delicadeza formal na construção da obra, com a câmera voltada para muitas flores coloridas e uma paz aparente naquele cenário solitário. O roteiro dá um pulo e logo mostra Alma dirigindo seu suntuoso automóvel. Compadecida, oferece carona para a desconhecida e oferece sua casa para passar a noite. O encontro fortuito fará um redemoinho na vida daquelas duas mulheres de classes sociais distintas economicamente dentro de um mesmo espaço. Depois de quebrado o gelo inicial, surge uma inspirada amizade, embora improvável entre elas, mas que o destino reservará como uma redenção para ambas, que simboliza serem, ademais, prisioneiras de seus amores. Vivem e se organizam constantemente para incontáveis visitas de afago como duas típicas resilientes companheiras. A narrativa flui com uma significativa dose de suspense e com algumas observações do cotidiano imposto pelas circunstâncias, sem apelar para o pieguismo barato e escapa das armadilhas simplificadoras das questões sociais. Uma está presa ao marido que a despreza, a ignora e constantemente a trai sem nenhum pudor; a outra sofre assédio dos comparsas do esposo trancafiado, que estão sempre atrás de dinheiro e joias remanescentes do crime praticado.

A diretora afasta supostamente a temática contumaz das peripécias dos imigrantes na França. Habilmente não mergulha diretamente no colonizador sendo explorador e os colonizados como vítimas, visto frequentemente em realizações que beiram à demagogia. Ao mesmo tempo, parece não querer bater de frente, optando por uma circunstância de aproximação entre imigrantes e nativos. Cutuca o realismo social sutilmente com suas implicações complexas, apenas nas entrelinhas. Sem os típicos estereótipos advindos, tanto da pobreza como da riqueza, Mina se aproveita da confiança plena da amiga para um plano com astúcia radical de salvação sua e de seus familiares no desfecho para alfinetar a aristocracia, representada pela mulher do inconsequente neurocirurgião. A compaixão e a desonestidade estão presentes, ainda que haja um sopro de libertação das amarras daquela personagem elitizada, infeliz e humilhada, apesar da convivência com os vazios amigos burgueses de alma e coração, quando confundem a imigrante com uma nova governanta do palacete. Há algo verossímil que separa as duas personagens, ou seja, o abismo social intransponível de jamais transpor o limite entre elas. Fica evidente na emblemática cena que há separação de classes como uma forma abjeta de quem detém o poder socioeconômico. A escolha pela leveza na narrativa é enganosa, considerando que a aparência amena esconde a sórdida arrogância mesclada com o distanciamento social implícito na hipocrisia.

A Prisioneira de Bordeaux traz questões pertinentes e indigestas nas entrelinhas do enredo, como a dissimulação marcante que serve para dissecar as estruturas do poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da prisão dos dois homens, há a intrincada interação financeira vista como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher tentando se impor e se libertar diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião da imigrante contra uma sociedade ainda seletiva. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência do desamor em tempos de solidão pelos fantasmas remanescentes de seus estigmas, fazendo vítimas, principalmente as mulheres submissas em seu meio. A complexidade vai ao encontro do envolvimento da personagem traída no entorno do matrimônio e os desfeitos de caráter do personagem traidor que não acusa a culpa e sequer demonstra ressentimentos alinhados como ingredientes indispensáveis para construir este painel perturbador. O desenrolar da trama prima pela sensibilidade e delicadeza de focar sobre a condição humana feminina, pela pujança estimulante de impor a vontade para uma liberdade inegociável. O intimismo do drama traz situações clássicas do dia a dia bem temperado, para transitar do drama familiar para a separação social de classes e selar como um filme interessante no contexto da história bem urdida de uma cineasta irrequieta para um bom resultado a ser refletido.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Apocalipse nos Trópicos


 


A Religião na Política

O aclamado documentário intimista de estreia da cineasta mineira Petra Costa, Elena (2012), foi uma grata surpresa no aspecto de beleza estética formal que refletiu a preocupação do cinema autoral, sobre a memória reconstruída pela realizadora que aos sete anos viveu um grande drama pessoal com a morte prematura de sua irmã mais velha, de apenas 20 anos, em Nova Iorque. Havia o sonho convulsivo de tornar-se realidade em ser atriz, tal qual sua mãe imaginava contracenar com Frank Sinatra. Deixou para trás uma infância vivida na clandestinidade, devido à Ditadura Militar implantada naqueles repressivos anos de chumbo. São relatos de dor e de tristeza numa realização melancólica de nunca mais poder ver e ter em seu convívio aquela jovem sonhadora, de uma aspiração ao estrelato, que se desiludiu, deixando a morte levá-la por uma mistura de remédios com álcool. No seu segundo documentário, Democracia em Vertigem (2019), Petra, neta do fundador de uma grande construtora brasileira envolvida na Lava-Jato, legitimou-se para abordar por seu ângulo a crise do país, narrado em off, num tom sombrio, entediado e pessimista com o destino das fragilidades democráticas que cercavam o Brasil. Colocou em lados opostos membros da própria família, no qual os avós defendiam a extrema-direita contrapondo com os pais ativistas de esquerda, num relato sincero e destemido sobre os rachas existentes. Embora haja a identificação pelo engajamento, mesmo assim, o partido do PT sofreu críticas bem consideráveis na sua essência, pela diretora, nos lampejos de imparcialidade ao cobrar uma autocrítica de seus membros.

Em seu terceiro longa-metragem, Apocalipse nos Trópicos, em exibição na Netflix, Petra dirige a assina o roteiro, num mergulho profundo do cruzamento alarmante e perigoso entre a religião e a política brasileira para uma guinada ao regime teocrático consagrado no Irã. Desnuda o movimento evangélico, principalmente o pentecostal, com sua ideologia apocalíptica que revelou no Censo de 2024 o crescimento da religião evangélica no país, que representa 26,9% da nossa população- um aumento de 5,2% pontos percentuais comparado com o Censo de 2010. Mostra o quanto foi fundamental na ascensão de Jair Bolsonaro à presidência e levanta questões sobre a ameaça de uma teocracia nacional. A diretora enfatiza sua visão poucas vezes vista dos bastidores do poder. Acompanha a trajetória do presidente Lula, do ex-presidente Bolsonaro e o influente pastor Silas Malafaia, que mais parece um candidato caricato inspirado nos aiatolás iranianos Ali Khamenei e o sucedido Ruhollah Khomeini, um estrategista político-religioso cujos métodos ecoam no marketing neoliberal. Expõe a crescente influência de líderes religiosos na política brasileira ao traçar a visão funesta do fim de uma era, através de estratégias e decisões para se chegar ao poder. Impossível ficar indiferente diante das consequências de uma crescente guerra ideológica decorrente das dificuldades em afastar o fundamentalismo religioso que atrai o fanatismo e a galopante cegueira, deixando a lucidez se esvair no transe psicológico que se sobrepõe. Ignorar essa premissa poderá levar para repercussões incalculáveis e um futuro drástico sem controle para a permanência democrática.

Uma análise perturbadora e inquietante da conexão da política com a religião se entrelaçando e impactam nossa sociedade que poderá ocasionar novas rupturas, como já demonstrado com pertinência no longa anterior, Democracia em Vertigem. Sem ser definitivo e nem cair em armadilhas recorrentes de obviedades, o filme é narrado na primeira pessoa para retratar em sua construção o intuito de apontar uma extrema-direita brasileira que recebe o apoio incontinenti da comunidade evangélica pentecostal. Embora não conclusivo sobre os rumos da política brasileira, aborda uma proposta com tintas ambiciosas sobre a grande engrenagem religiosa que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos que norteiam o destino do país como um Estado democrático. Adorna com clarividência as fragilidades preocupantes que rondam este painel difuso que poderá rumar para a teocracia. Um diagnóstico significativo e relevante por seu aspecto histórico de um convalescente regime que verga da democracia para o perigoso estado de exceção. Fica o alerta para, quem sabe, uma reforma política estrutural em detrimento de candidatos demagogos em conluio com líderes religiosos oportunistas ditando promessas vazias reiteradamente.

Apocalipse nos Trópicos tem como objetivo principal investigar o aumento do controle exercido pelas lideranças pentecostais sobre a nossa política. Com o aumento expressivo da população evangélica, percebe-se o crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional, bem como a ampliação destes ditos religiosos eleitos para cargos importantes em todas as suas esferas, em especial, a ascensão do governo capitaneado pela extrema-direita, como se tivessem sido ungidos para galgar o poder. Petra retrata diferentes fases até chegar o ápice e o desfecho no ocaso do governo Bolsonaro, como os atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023, em que fanáticos admiradores do ex-presidente, tentaram efetuar um Golpe de Estado. A visão sobre o conceito de apocalipse não inclui especificamente o fim do mundo, mas o significado grego que a palavra revela algo como oculto, na visão da diretora. A vinculação com redes evangélicas norte-americanas, trazida em cenas teatrais para comercializar bênçãos e vitórias eleitorais pela fé e atingir o topo da materialidade, mostra Malafaia divulgando a retórica do "fim dos tempos". Serve para justificar alianças com a bancada da bala e discursos autoritários ao bradar: “precisamos de homens fortes” e contraditoriamente fala em “defesa da vida”. Incita a violência através da “guerra santa”, num paradoxo com a sua realidade. Prega uma geração "que faça a diferença", ou seja, um postulado neoliberal bem individualista que ele pretende transformar em numa dinâmica para revolucionar a história do país.

Há uma cena reveladora onde Lula admite “o erro da esquerda foi negar a religião”, num discurso que aliena as periferias religiosas, facilitando o ingresso fulminante do pentecostalismo no ópio do povo. O magnífico documentário revela aos poucos um adversário com armas poderosas na defesa de seus próprios interesses. Uma ideologia advinda das pregações dos princípios como a salvação pela graça, através da fé em Jesus Cristo, inspirado na Bíblia como regra máxima de fé e a prática na sacralização da política. Nossas instituições através dos instrumentos de poder, responsáveis pela garantia dos direitos e deveres está calcada em uma resistente democracia construída com muito sangue, lágrimas e mortes oriundas dos tempos de horror pretérito. Mexe com o espectador e o tira da zona de conforto. Eis uma reflexão sobre o passado e o presente de uma nação moribunda institucionalmente. Um filme que é, inegavelmente, um registro histórico que ecoa como um alerta máximo urgente da religião pela crença fanatizada se confundindo com o Estado laico como um apocalipse.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Uma Bela Vida

 









Crepúsculo da Vida

Demonstrando grande e calibrado poder de fogo, continua afiado, corajoso e em boa forma, o cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Uma Bela Vida, título completamente equivocado batizado no Brasil. Baseado no livro Le Dernier Souffle, de Claude Grande e Régis Debrav, que numa tradução livre e mais próxima do original poderia ser O Último Suspiro. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), o ótimo Amém (2002) que retrata a Igreja Católica e sua proximidade com o nazismo, os bons O Corte (2005) e O Capital (2012), e o penúltimo longa, instigante e revelador Jogo do Poder (2019), inspirado no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. Gavras revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada”.

A trama aborda a medicina paliativa pouco incentivada nos países, entre os quais está a França. O realizador ressalta que as mais difundidas são as clássicas: curativa e a preventiva. Em muitas vezes são inúteis aos pacientes medicações sem resultado, sendo ótimos para os laboratórios que os fabricam. O médico Augustin Masset (Kad Merad) é o fio condutor da história. Especializado em tratamentos atenuantes para aliviar ou diminuir a dor, no qual não se busca a cura, mas o alívio dos sintomas decorrentes da enfermidade, em especial dos cânceres terminais. Os diálogos filosóficos travados exploram a vida e a morte com o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydés), que tem a suspeita de uma grave doença, está quase sempre acompanhado da resiliente esposa, Florence (Marilyne Canto). Ajuda e compreende o marido nos encontros para confrontar o medo e a ansiedades sobre o envelhecimento e a possível enfermidade que dá sinais de surgimento lentamente. O profissional expõe e relata minuciosamente os fatos do cotidiano da clínica. São histórias de diferentes pacientes com doenças sem cura: uma rica socialite parisiense (Charlotte Rampling), a mãe (Hiam Abbas) com o último desejo de comer ostras e tomar um vinho Breizh’Cadet à beira do mar, a matriarca que prefere que sua morte assistida seja mantida em segredo, sem esquecer do idoso que só se acalma com a chegada de seu cãozinho de estimação para lhe confortar no último suspiro.

Há algumas similitudes com o drama O Quarto ao Lado (2024), do celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que constrói uma despojada exaltação à vida, com pitadas acre-doce. Mostra os dilemas advindos das suas personagens e os seus direitos de escolhas como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a fim da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença devastadora com consequências de penúria pela autopiedade. A protagonista quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva, mas há o temido fundamentalismo religioso. Já Gavras conduz um drama existencial com sensibilidade arrebatadora e com alguma doçura, com tintas de notável humanismo diante da perda para a transposição ao infinito. No alto de seus 92 anos de idade, capaz de encarar a proximidade com a finitude de frente e sua familiaridade. Sempre com bom humor, disseca com doses homeopáticas nos diálogos a existência para outro plano, mencionando tanto pela filosofia do Espiritismo como do Budismo.

O grande mérito do realizador é ir aos poucos tornando aquele ambiente menos hostil e mais acolhedor para contrastar com o terror do diagnóstico negativo. Uma Bela Vida foca em cada paciente como um universo inteiro de emoções e interesses que irão guiar o escritor no confronto com suas dúvidas recheadas pelo anseio da verdade na revelação de seus exames. A perspectiva dos sentimentos de imortalidade da juventude passada e a motivação para continuar lutando e vivendo são combustíveis para superar os obstáculos, sutilmente colocados como um poema agridoce, como na cena inesquecível de Estrelia (Ángela Molina) ao partir da clínica para sua casa numa carreata com música e uma solenidade sem o vício do pieguismo barato, que somente um cineasta genial poderia construir pelo consagrado formalismo típico e o domínio narrativo peculiar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na cena, em que a oncologista revela seu corpo mutilado ao personagem central hesitante de um tratamento humanista. Um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar uma temática que assusta, mas libertada nas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma das eventuais traições do destino.

Um enredo que tem a morte assistida como a temática em foco está acima de qualquer viés doutrinário, sem afastar a vida e sua celebração. A marca registrada de Gavras está presente, como grande observador que lança situações controvertidas, quase que escabrosas, assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal, a morte se aproximando pelas confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre o ocaso da existência e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de vidas repletas de contratempos e solidões para decisões tomadas com lucidez pela ausência de perspectiva do ser humano desesperançado. Uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido existencial como um poema profundo da transição da vida para a eternidade. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia musical da personagem partindo em carreata. Um drama profundo e delicado através de uma narrativa de magia e ancestralidade. Fica o olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano em um epílogo singular nesta obra fabulosa.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Vermiglio- A Noiva da Montanha

 

Fragmentos da Guerra

Vermiglio- A Noiva da Montanha, em cartaz na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, foi indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano. Laureado com o Leão de Prata no Festival de Veneza do ano passado, também concorreu ao Globo de Ouro de Melhor Longa Estrangeiro em 2025. Conquistou sete categorias na Academia Italiana, entre elas estão a de melhor filme, direção, roteiro original, fotografia (Mikhail Krichman), melhor ator (Tommaso Ragno) e melhor atriz (Martina Scrinzi). Conta uma impressionante história de uma rotina na montanhosa Vila Alpina de Vermiglio, no norte italiano, com divisa para a Áustria, alheia em princípio aos horrores do conflito durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, no inverno de 1944. A aparente paz e serenidade são interrompidas com a chegada de Pietro (Giuseppe de Domenico), um jovem soldado siciliano desertor, que busca refúgio na comunidade e logo vai abalar as relações entre os moradores, principalmente os mais conservadores. A trama se interliga com a história emocionante das jovens irmãs à sombra dos desmandos oriundos nos campos de batalha.

Inspirado em um sonho da diretora e roteirista italiana Maura Delpero, no qual vê seu pai, já morto, recria as circunstâncias da infância através de uma narrativa admirável dos conflitos ocorridos no vilarejo. A realizadora opta por protagonistas mulheres e a maternidade como foco principal, assim como já fizera em seus dois longas anteriores: o documentário Nadea e Sveta (2012) e o ficcional Maternal (2019). Maneja de forma sutil e acolhedora três irmãs compartilhando uma mesma cama. Mostra as intimidades na iminência de um rompimento por fatores desprovidos aos seus desejos. Lucia (Martina Scrinzi) é a filha mais velha do professor do lugarejo, Cesare Graziadei (Tommaso Ragno) e vai se casar, logo trocará aquele espaço pelo de adulta com o futuro marido. Na realidade, são sete filhos e mais um prestes a nascer da mãe, Adele (Roberta Rovelli). Naquela aldeia sem jovens- todos foram lutar no front-, a irmã primogênita da família Graziadei conquista o recém-chegado soldado que aparece carregando o primo dela, Atílio (Fondevila Sancet). Com atuações irretocáveis de um elenco coeso, embora os atores sejam quase todos inexperientes, exceto Ragno, De Domenico e Roberta Rovelli.

Na imensidão daquela bucólica paisagem realçada em seus contrastes, está a limitação dos horizontes femininos, pela interpretação caolha de um universo estritamente machista. A ordem e a organização típica de uma família conservadora estão sob a determinação da mãe. Já o pai, um intelectual, é um homem contrário à violência daqueles tempos sombrios, que prioriza os prazeres culturais, pontuado pela trilha sonora do concerto de violino de Vivaldi. Distante das reclamações da vigilante esposa preocupada com a falta de dinheiro para a manutenção das coisas básicas do lar. Ele determina o destino de sua prole: "Lucia não é garota da cidade", diz o pai; Dino (Patrick Gardner), o mais velho, é tratado com descaso e decepção; Ada (Rachele Potrich), a filha do meio, tacha de limitada na vida escolar, incapaz de se destacar, mas apta pela dedicação e o fervor à devoção religiosa; sentencia que o futuro está com a caçula Flavia (Anna Thaler), pela sua inteligência e perspicácia, curiosa e observadora, é escolhida para continuar os estudos em Trento. Um drama sem exageros melodramáticos, no qual os silêncios preponderam para dar mais legitimidade à essência do cinema em seu todo. A insinuação, a sugestão e as meias palavras são ingredientes que enobrecem com extrema delicadeza as situações, mesmo que conflitadas. Os acontecimentos e os fatos que se sucedem são registrados com uma dose certa de sentimentos em cada cena. Os beijos da irmã que irá se casar vistos pelo olhar de Ada, ainda que com ciúmes e desejos próprios, paradoxalmente pelas pulsões sexuais e as restrições religiosas, são abordados sem histeria ou revanchismo.

O drama de guerra mesclado com situações familiares faz um retrato profundo da redução dos alimentos e provisões básicas para a manutenção de uma família imensa. Delpero retrata com maestria o racionamento da comida fruto da grande guerra mundial. Há questionamentos dos filhos que morrem no front por culpa de quem os empurram para lá, ainda que bem distante do arrebatador discurso feito em tom de protesto na excelente realização Frantz (2016), de François Ozon. Derrotados em campos de luta, resta o saldo de vítimas dos dois lados soando como uma proposta objetiva de um libelo contra o armamentismo e seu espírito belicoso. Estampa-se a dor das perdas e a derrota nos rostos do sobrevivente, um soldado silencioso que foge, pouco fala, distante, como se não tivesse ainda saído do confronto. O encadeamento dos dramas pessoais é uma estratégia para a construção de um discurso de um novo mundo pela criança que nasceu como símbolo de horizontes daquela luz angelical para uma suposta pacificação, como a busca de um trabalho digno da jovem mãe para criar sua filhinha. O casal desfeito representa a essência da tragédia de uma guerra ensandecida pelos homens. Como fio condutor, revela-se outras realidades e expectativas frustradas e semelhantes às suas fantasias.

Vermiglio- A Noiva da Montanha tem todos os méritos pela verossimilhança ao retratar um jovem refugiado que encontra uma noiva para atenuar a perspectiva de fugir de sua realidade sem saída, que será revelada no desfecho. A ambição geopolítica das nações com suas fragilidades e os atropelos exercidos estão nas arbitrariedades dos comandantes pelas vidas como joguetes descartáveis. Os personagens se cruzam em suas peripécias de luta num roteiro flexível e complexo pelo clímax do amor sem tempo para delongas, deixando o fervor do cenário se diversificar. Um lindo drama que funciona ao retratar as individualidades pelas peculiaridades do cotidiano das causas econômicas que pairam da loucura da irracionalidade. O olhar atento de uma realizadora lúcida para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino dentro da guerra pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a alma dos eventuais equívocos do destino. Longe de filigranas de emoções superficiais, faz o espectador refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem contagiante de resgate da vida. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada no epílogo. São marcantes a sensibilidade e a delicadeza de focar a chaga maligna enraizada no seio de um universo dominado pelos homens deste tema universal sobre a condição feminina, sem pieguismos baratos. Os paradigmas humanos são pontuais, no qual faz com que as cenas tenham o caráter pela igualdade de gêneros como símbolo da resistência feminina. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica nesta extraordinária obra, em um dos melhores filmes do ano.