quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O Último Azul

 

Sonho de Liberdade

O festejado diretor pernambucano Gabriel Mascaro alçou voo alto e conquistou vários prêmios importantes na sua admirável e consistente produção Ventos de Agosto (2014), com menção honrosa no Festival de Locarno, na Suíça, único filme brasileiro a participar do evento. Foi premiado no 47º. Festival de Brasília com os troféus Candango para melhor atriz e fotografia, e o troféu Vagalume de melhor filme. No seu segundo longa-metragem ficcional, Boi Neon (2015), arrebatou a láurea de melhor filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para a garotinha Alyne Santana no Festival do Rio de Janeiro, além de conquistar críticos e públicos em aproximadamente 30 festivais brasileiros e no Exterior, totalizando14 prêmios, entre os quais também o do júri na Mostra Horizontes no Festival de Veneza, e participou do 40º. Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2015. Impõe-se como um dos maiores cineastas brasileiros contemporâneos, tendo ainda em sua filmografia o drama Divino Amor (2019), e os documentários Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012).

A última obra do realizador, O Último Azul foi coproduzido com o Chile e os Países Baixos, tendo conquistado o Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano. Há boas chances de representar o Brasil no Oscar de 2026, embora haja a forte concorrência dos pesos pesados multipremiados Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho e Manas (2024), de Mariana Brennand. O diretor divide o dinâmico roteiro com Tibério Azul para criar esta interessante obra de ficção científica mesclada com drama social. Retrata um Brasil distópico organizado de uma forma opressiva e assustadora no qual os idosos são confinados compulsoriamente em colônias habitacionais ao completarem 75 anos. Com uma fascinante fotografia de Guillermo Garza na captura de belas imagens do cotidiano apresentado em planos próximos das ações em uma cidade industrializada e das águas dos rios e afluentes da região com suas matas ensolaradas que permite a apreciação. O enredo acompanha Tereza (Denise Weinberg em uma estupenda atuação), uma idosa de 77 anos que, ao ser intimada para deixar sua casa, inicia uma saga pela Amazônia para realizar seu último desejo de uma viagem de avião, antes de ser forçada pela política autoritária do exílio implementada pelo governo.

O filme explora o tema como etarismo e a busca pela autonomia e a liberdade, tendo em vista que lhe são cassados seus documentos, ficando a filha adulta com a guarda automática, pela ideia de permitir que os jovens possam produzir sem se preocupar com os mais velhos para eles "desfrutarem" seus últimos dias de vida. Expulsa de seu lar para ser enviada para bem longe, de onde ninguém retorna, foge e conhece o barqueiro (Rodrigo Santoro em atuação rápida), este apresenta à protagonista um elemento mágico para alterar os sentidos, a percepção e o pensamento da dura realidade, uma gosma azul alucinógena para pingar nos olhos que é extraída de um caracol capaz de revelar o futuro. Sem imaginar que essa viagem de aventura irá mudar o rumo de sua vida. Lá conhece pessoas de bom e mau caráter que tentam dar pequenos golpes na personagem central. Uns ultrapassam o marco da boa civilidade por uma série de delitos que testam a própria dignidade humana. O realizador pontua com amplitude as relações dos fragmentos da dura ruptura social de seres humanos sensíveis e sonhadores de cabelos brancos, vilipendiados pela estupidez de uma política criminosa contra os velhos pela vigilância permanente e cerrada que aprisionam em um “cata-velho”, uma espécie de carrocinha que não leva cachorros, mas idosos, como bem frisou o crítico Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo.

A aventura da fugitiva é uma interessante alegoria para conhecermos um futuro surreal paralelo ao mundo real. A liberdade oprimida pelos desejos vigiados significa embrenhar-se no risco, mas não se exilar numa colônia perigosa e desconhecida. O envelhecimento provoca a reflexão de um tabu no futuro, onde a juventude é vista como bela, sadia, promissora e otimista, e precisam estar livres para produzir e viver. A viagem apresenta alguns dissabores, e bons momentos para Tereza que encontra Roberta (Miriam Socarrás), dona de um barco enorme que flutua pelos rios, logo elas fazem uma grande amizade. Querem viver livres com boas ou más situações, agradáveis ou não, como a luta mortal entre dois peixinhos, mas sempre com os riscos inerentes e as surpresas que o destino apresenta. A plenitude da vida e sua essência tanto na aventura, como no sofrimento, no jogo, no qual depois do medo vem o riso da vitória com o encantamento de não morrer esquecida num depósito de velhos. O retorno com o olhar para as palafitas após a aventura junto à natureza soa como a retomada da existência. O cinema autoral de Mascaro, assim como Kleber Mendonça Filho, se recorre do cotidiano para falar de sua aldeia com boa precisão, seguindo a recomendação de Tolstoi.

Todos os sons e ruídos são familiares para o cineasta, que apresenta domínio de uma estrutura narrativa sem cair na obviedade e sem perder a poesia em suas obras. Em Ventos de Agosto havia situações caracterizadoras e envolventes que marcavam a revolta da natureza para colocar os contrastes da vida de um lugar pré-histórico com a existência do mundo dito civilizado de embarcações com turistas ávidos pelo descanso, ignorando a total falta de assistência social àqueles nativos e suas superações que virão como se um peculiar novo dia nascesse como sugere o desenlace, embora dentro de um contexto negativo da estratificação social pelas desigualdades contundentes. Já em Boi Neon, talvez sua obra máxima, existia elementos com rara qualidade num drama bem brasileiro distante das metrópoles como essência da revolta silenciosa dos personagens para fincarem desejos nos contrastes da vida civilizada daqueles nativos e suas superações que virão como se um novo dia nascesse. Mas a reflexão no desfecho sugere um contexto pouco otimista, que dificilmente irá se afastar da trivialidade como continuação de suas trajetórias realistas da existência amarga e melancólica. O Último Azul é menos pessimista e mais alvissareiro ao criar mundos familiares e estranhos com uma trama aparentemente simples e uma narrativa consistente, sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com razoável profundidade num clímax de suspense aceitável. Eis uma simbologia do futuro pouco promissora aos idosos, da natureza tratada com descaso, tanto a do ecossistema como a humana. Mas há um sopro de luz no fim do túnel no epílogo redentor da liberdade independente e irrestrita que contraria o estereótipo comum e condenável da terceira idade descartável.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

A Luz

 

Sociedade Disfuncional

O diretor e roteirista alemão Tom Tykwer- conhecido internacionalmente por Corra, Lola, Corra (1998) e Perfume- A História de Um Assassino (2006)- está de volta com um dos filmes mais impactantes deste ano, seu mais recente longa-metragem, A Luz, coproduzido com o Reino Unido e a França, exibido na sessão de abertura do Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2025. Soube desenvolver a conexão espiritual de uma mulher simples com uma família completamente desintegrada por conflitos internos, que acaba sendo radicalmente transformada ao passar por uma experiência fora do comum e da rotina habitual na qual viviam. Um suspense que transita para o musical em algumas cenas, passa pelos problemas políticos internacionais e ingressa no drama familiar. A chuva em abundância constante em quase todo o desenrolar é o ingrediente metafórico para o final inusitado, surrealista e revelador. Intenso e quase sempre frenético capta a grande solidão familiar como elemento propulsor de uma sociedade moderna cosmopolita sem rumo, pelo deleite do realizador em sua narrativa, que tem sua marca registrada na qualidade estética e estrutural. Mostra personagens perdidos na selva humana que tentam fugir dos seus demônios.

Tykwer aborda uma típica família alemã disfuncional que enfrenta o próprio colapso enquanto lida com os problemas inerentes contemporâneos. A trama traz Tim (Lars Eidinger) e Milena (Nicolette Krebitz) casados e dividindo um apartamento em Berlim com seus filhos gêmeos Frieda (Elke Biesendorfen) e Jon (Julius Gause), além do enteado de Tim, filho de Milena, o pré-adolescente Dio (Elyas Eldridge). O marido é um intelectual que ama sua esposa, mas ela é uma mulher estressada em seu trabalho ao desenvolver uma atividade no governo federal, mas quase sempre viajando. Apesar de conviverem no mesmo teto, os cinco membros familiares possuem vidas distintas e estão divorciados da vida em comum. Pouco interessados no que cada um faz, numa relação individualista, sem afeto, que sequer sabem direito o nome da empregada que morre repentinamente. Tudo muda com a chegada misteriosa da nova doméstica, Farrah ( Tala Al Deen). Ela traz um passado de fuga de seu país de origem, a Síria, que passa por convulsões sociais e perseguições aos que se opõem ao regime ditatorial vigente. Aos poucos vai revelando suas emoções subtraídas, deixando as verdades pretéritas serem ocultadas. Busca uma nova vida para aqueles personagens desunidos e perdidos em suas existências, mas gradativamente vai mudando a forma de entender e ver um novo mundo.

A obra é intimista sobre as fragilidades e a presença invisível das relações fraturadas no contexto da desintegração silenciosa de pais esgotados e prestes a se separarem diante do abismo da solidão, de raro vínculo emocional. Os filhos desconectados flutuam numa rotina sem carinho, dedicação e amor. A jovem vive em festas regadas com drogas e bebidas; o rapaz está sempre em seu quarto no mundo virtual; o pré-adolescente anda de um lado para outro, ora com o pai, ora sozinho. Um a um se aproxima da nova componente daquele microcosmo familiar, sem saber que a recém-contratada não chegou lá por acaso. A precipitação climática, com aquele aguaceiro interminável, irá aproximar pessoas perdidas numa metrópole comprometida na conexão com um mundo caótico e enlouquecedor, quase sem saída, como se estivessem presos dentro de um hospício a céu aberto. O cineasta coloca com méritos inquestionáveis uma alegoria das enrascadas que cada ser humano poderá ter no seu dia a dia, remetendo para o drama argentino Chuva (2008), de Paula Hernández, que retratou o comportamento humano dos estranhos que se encontram fortuitamente e descobrem afinidades como a reflexão dos solitários numa barulhenta cidade entre ausências, saudades e medos nas buscas pessoais e seus desejos complexos.

Impressiona tanto pela abordagem intimista familiar desestruturada como pela mudança do roteiro que perpassa do cinema convencional para entrar no realismo fantástico imaginário de mentes e corações, tanto dos personagens como do espectador. Há uma mudança de ritmo e uma inspiração genuína para as vidas modernas estressadas, com a perda da racionalidade pelo ritmo alucinado dos seres humanos dentro de uma engrenagem sombria e exausta, contrapondo com a paixão e a comicidade nas cenas sequenciais musicais inspiradas no filme Matrix (1999), dirigido pelas irmãs Wachowski, no qual os personagens estão atormentados por estranhos pesadelos por cabos a um imenso sistema de computadores do futuro. O sonho se repete e a desconfiança da realidade emerge. A realização ilumina não apenas espaços, mas pensamento que se tornaram confortáveis através de uma história precisa pelos elementos psicológicos encontrados no enredo que aponta uma amargura na sociedade atual eivada de hipocrisia, sem indicativos de luz, moralmente carregada. A cegueira se faz presente pelos danos causados pelo modo repressor e uma arrogância recorrente.

O diretor foca nos devaneios com consequências nefastas nas relações sociais que atingem o estado de satisfação física, emocional e espiritual pelos poderes sensitivos, às vezes em transe, da empregada síria. O narcisismo e a responsabilidade equivocada estão presentes, como nas constantes cenas do espelho e da luz para quem não quer ver e opta por continuar na escuridão da cegueira. O festejado cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e principalmente em Memória (2021), que capta o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por frondosas árvores e montanhas em imagens de uma natureza enigmática para meditação, como elementos essenciais de uma narrativa, com raros diálogos, notabilizou-se um cultor de uma cinematografia exótica, fora dos padrões tradicionais. Já Tykwer também se utiliza dos aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos, com configurações que levam à imersão do espectador, em algumas cenas sobrenaturais do universo cósmico. Os personagens mergulham numa verdadeira hipnose coletiva no desfecho para realizarem uma procura em outras dimensões, algo que assusta e ao mesmo tempo, fascina, como soluções que inquietam nossa realidade. O realizador pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é algo extraordinário.

A Luz é uma experiência sensorial numa viagem ao subconsciente, literalmente. Exuberante nas imagens e na interpretação para todas as evidências lançadas como provocação. A proposta é deixar fluir a história para reflexão que irá se destilando aos poucos em nossa alma, coração e espírito. O desfecho é singular, nada é linear, tudo é contextualizado e complexo, como o estrondo das águas como uma grande tempestade com desdobramentos em diversas camadas da memória para propor uma meditação vigorosa do existencialismo e seus reflexos sutis com o olhar para a realidade humana que transcende e exorbita para o universo da fantasia em uma imersão sensorial catártica. Conduz para um banho de purificação pelas águas torrenciais. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre a existência e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos adequados ao tema, sob o ponto de vista humano. Transcendental, espiritual ou metafísica como possa parecer, fica na retina de cada espectador este soberbo drama para se chegar ao êxtase sensitivo e perturbador no epílogo.