quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A Prisioneira de Bordeaux

 

Classes Sociais Distintas

Um filme que vem correspondendo à expectativa é a recente realização A Prisioneira de Bordeaux, da competente cineasta francesa Patricia Mazuy, que somente agora estreia nos cinemas brasileiros após exibição na Mostra Internacional de São Paulo do ano passado. Tem uma enorme filmografia, na qual foi assistente de direção em Um Quarto na Cidade (1982), de Jacques Demy, editou Os Renegados (1985), de Agnès Varda, dirigiu os longas-metragens Um Homem Marcado (1988), Travolta e Eu (1993), Saint-Cyr (2000), Basse Normandie (2004), Sport de Filles (2011), Paul Sanchez Está de Volta (2018) e Boliche Saturno (2022), que ganhou cinco estrelas na revista Cahiers du Cinéma. Teve passagem na Quinzena dos Realizadores de Cannes e Locarno. O enxuto e seco roteiro traz as assinaturas da diretora e de Fraçois Bégaudeau e Pierre Courrège, que emprestam credibilidade para a boa recepção de público, bem assessorada pela adequada e não invasiva trilha sonora de Amine Bouhafa e a fascinante fotografia de Simon Beaufils.

A trama de Mazuy foca seu drama familiar em pessoas reais de carne e osso, sendo capazes de mesquinharias, solidariedades e até de gestos generosos. A protagonista Alma Lund é interpretada por Isabelle Huppert, sempre impecável, uma clássica dama do cinema, talhada para este tipo de papel, ao se doar com extremo senso de profissionalismo, como já o fizera em A Professora de Piano (2001), de Michael Haneke. Uma mulher branca de meia-idade, elegante e sofisticada, fruto da elite francesa, que está passando por momentos desafiadores desde a prisão de seu marido, um médico renomado que cumpre prisão ao ser condenado em seis anos por atropelar mãe e filha sem prestar socorro, em estado de alcoolização, morrendo uma delas. Ela é uma mulher solitária que vive numa linda mansão na cidade de Bordeaux. Em um dos dias da visita ao presídio, depara-se na antessala com Mina Hirti, numa atuação magnífica da atriz franco-tunisiana Hafsia Herzi, revelada em O Segredo do Grão, de Abdellati Kechiche. A imigrante é uma mulher árabe que mora com um casal de filhos menores num conjunto habitacional de uma cidade distante e trabalha numa tinturaria para o sustento familiar. Também tem um marido presidiário por assalto à uma joalheria e se surpreende que não poderá fazer a visita naquele dia, por não ter agendada a visita. Entra em completo desespero e finge desmaiar, tendo em vista a distância para um retorno imediato.

No prólogo, a realizadora demonstra uma delicadeza formal na construção da obra, com a câmera voltada para muitas flores coloridas e uma paz aparente naquele cenário solitário. O roteiro dá um pulo e logo mostra Alma dirigindo seu suntuoso automóvel. Compadecida, oferece carona para a desconhecida e oferece sua casa para passar a noite. O encontro fortuito fará um redemoinho na vida daquelas duas mulheres de classes sociais distintas economicamente dentro de um mesmo espaço. Depois de quebrado o gelo inicial, surge uma inspirada amizade, embora improvável entre elas, mas que o destino reservará como uma redenção para ambas, que simboliza serem, ademais, prisioneiras de seus amores. Vivem e se organizam constantemente para incontáveis visitas de afago como duas típicas resilientes companheiras. A narrativa flui com uma significativa dose de suspense e com algumas observações do cotidiano imposto pelas circunstâncias, sem apelar para o pieguismo barato e escapa das armadilhas simplificadoras das questões sociais. Uma está presa ao marido que a despreza, a ignora e constantemente a trai sem nenhum pudor; a outra sofre assédio dos comparsas do esposo trancafiado, que estão sempre atrás de dinheiro e joias remanescentes do crime praticado.

A diretora afasta supostamente a temática contumaz das peripécias dos imigrantes na França. Habilmente não mergulha diretamente no colonizador sendo explorador e os colonizados como vítimas, visto frequentemente em realizações que beiram à demagogia. Ao mesmo tempo, parece não querer bater de frente, optando por uma circunstância de aproximação entre imigrantes e nativos. Cutuca o realismo social sutilmente com suas implicações complexas, apenas nas entrelinhas. Sem os típicos estereótipos advindos, tanto da pobreza como da riqueza, Mina se aproveita da confiança plena da amiga para um plano com astúcia radical de salvação sua e de seus familiares no desfecho para alfinetar a aristocracia, representada pela mulher do inconsequente neurocirurgião. A compaixão e a desonestidade estão presentes, ainda que haja um sopro de libertação das amarras daquela personagem elitizada, infeliz e humilhada, apesar da convivência com os vazios amigos burgueses de alma e coração, quando confundem a imigrante com uma nova governanta do palacete. Há algo verossímil que separa as duas personagens, ou seja, o abismo social intransponível de jamais transpor o limite entre elas. Fica evidente na emblemática cena que há separação de classes como uma forma abjeta de quem detém o poder socioeconômico. A escolha pela leveza na narrativa é enganosa, considerando que a aparência amena esconde a sórdida arrogância mesclada com o distanciamento social implícito na hipocrisia.

A Prisioneira de Bordeaux traz questões pertinentes e indigestas nas entrelinhas do enredo, como a dissimulação marcante que serve para dissecar as estruturas do poder nas sociedades contemporâneas. Além do ponto principal da prisão dos dois homens, há a intrincada interação financeira vista como formas controvertidas de organização dentro da célula máxima das relações humanas. A mulher tentando se impor e se libertar diante da predominância do sexo oposto, ou ainda na rebelião da imigrante contra uma sociedade ainda seletiva. É um questionamento da dominação que irá sedimentar para culminar na abrupta violência do desamor em tempos de solidão pelos fantasmas remanescentes de seus estigmas, fazendo vítimas, principalmente as mulheres submissas em seu meio. A complexidade vai ao encontro do envolvimento da personagem traída no entorno do matrimônio e os desfeitos de caráter do personagem traidor que não acusa a culpa e sequer demonstra ressentimentos alinhados como ingredientes indispensáveis para construir este painel perturbador. O desenrolar da trama prima pela sensibilidade e delicadeza de focar sobre a condição humana feminina, pela pujança estimulante de impor a vontade para uma liberdade inegociável. O intimismo do drama traz situações clássicas do dia a dia bem temperado, para transitar do drama familiar para a separação social de classes e selar como um filme interessante no contexto da história bem urdida de uma cineasta irrequieta para um bom resultado a ser refletido.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Apocalipse nos Trópicos


 


A Religião na Política

O aclamado documentário intimista de estreia da cineasta mineira Petra Costa, Elena (2012), foi uma grata surpresa no aspecto de beleza estética formal que refletiu a preocupação do cinema autoral, sobre a memória reconstruída pela realizadora que aos sete anos viveu um grande drama pessoal com a morte prematura de sua irmã mais velha, de apenas 20 anos, em Nova Iorque. Havia o sonho convulsivo de tornar-se realidade em ser atriz, tal qual sua mãe imaginava contracenar com Frank Sinatra. Deixou para trás uma infância vivida na clandestinidade, devido à Ditadura Militar implantada naqueles repressivos anos de chumbo. São relatos de dor e de tristeza numa realização melancólica de nunca mais poder ver e ter em seu convívio aquela jovem sonhadora, de uma aspiração ao estrelato, que se desiludiu, deixando a morte levá-la por uma mistura de remédios com álcool. No seu segundo documentário, Democracia em Vertigem (2019), Petra, neta do fundador de uma grande construtora brasileira envolvida na Lava-Jato, legitimou-se para abordar por seu ângulo a crise do país, narrado em off, num tom sombrio, entediado e pessimista com o destino das fragilidades democráticas que cercavam o Brasil. Colocou em lados opostos membros da própria família, no qual os avós defendiam a extrema-direita contrapondo com os pais ativistas de esquerda, num relato sincero e destemido sobre os rachas existentes. Embora haja a identificação pelo engajamento, mesmo assim, o partido do PT sofreu críticas bem consideráveis na sua essência, pela diretora, nos lampejos de imparcialidade ao cobrar uma autocrítica de seus membros.

Em seu terceiro longa-metragem, Apocalipse nos Trópicos, em exibição na Netflix, Petra dirige a assina o roteiro, num mergulho profundo do cruzamento alarmante e perigoso entre a religião e a política brasileira para uma guinada ao regime teocrático consagrado no Irã. Desnuda o movimento evangélico, principalmente o pentecostal, com sua ideologia apocalíptica que revelou no Censo de 2024 o crescimento da religião evangélica no país, que representa 26,9% da nossa população- um aumento de 5,2% pontos percentuais comparado com o Censo de 2010. Mostra o quanto foi fundamental na ascensão de Jair Bolsonaro à presidência e levanta questões sobre a ameaça de uma teocracia nacional. A diretora enfatiza sua visão poucas vezes vista dos bastidores do poder. Acompanha a trajetória do presidente Lula, do ex-presidente Bolsonaro e o influente pastor Silas Malafaia, que mais parece um candidato caricato inspirado nos aiatolás iranianos Ali Khamenei e o sucedido Ruhollah Khomeini, um estrategista político-religioso cujos métodos ecoam no marketing neoliberal. Expõe a crescente influência de líderes religiosos na política brasileira ao traçar a visão funesta do fim de uma era, através de estratégias e decisões para se chegar ao poder. Impossível ficar indiferente diante das consequências de uma crescente guerra ideológica decorrente das dificuldades em afastar o fundamentalismo religioso que atrai o fanatismo e a galopante cegueira, deixando a lucidez se esvair no transe psicológico que se sobrepõe. Ignorar essa premissa poderá levar para repercussões incalculáveis e um futuro drástico sem controle para a permanência democrática.

Uma análise perturbadora e inquietante da conexão da política com a religião se entrelaçando e impactam nossa sociedade que poderá ocasionar novas rupturas, como já demonstrado com pertinência no longa anterior, Democracia em Vertigem. Sem ser definitivo e nem cair em armadilhas recorrentes de obviedades, o filme é narrado na primeira pessoa para retratar em sua construção o intuito de apontar uma extrema-direita brasileira que recebe o apoio incontinenti da comunidade evangélica pentecostal. Embora não conclusivo sobre os rumos da política brasileira, aborda uma proposta com tintas ambiciosas sobre a grande engrenagem religiosa que envolve os meandros intrínsecos e extrínsecos que norteiam o destino do país como um Estado democrático. Adorna com clarividência as fragilidades preocupantes que rondam este painel difuso que poderá rumar para a teocracia. Um diagnóstico significativo e relevante por seu aspecto histórico de um convalescente regime que verga da democracia para o perigoso estado de exceção. Fica o alerta para, quem sabe, uma reforma política estrutural em detrimento de candidatos demagogos em conluio com líderes religiosos oportunistas ditando promessas vazias reiteradamente.

Apocalipse nos Trópicos tem como objetivo principal investigar o aumento do controle exercido pelas lideranças pentecostais sobre a nossa política. Com o aumento expressivo da população evangélica, percebe-se o crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional, bem como a ampliação destes ditos religiosos eleitos para cargos importantes em todas as suas esferas, em especial, a ascensão do governo capitaneado pela extrema-direita, como se tivessem sido ungidos para galgar o poder. Petra retrata diferentes fases até chegar o ápice e o desfecho no ocaso do governo Bolsonaro, como os atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023, em que fanáticos admiradores do ex-presidente, tentaram efetuar um Golpe de Estado. A visão sobre o conceito de apocalipse não inclui especificamente o fim do mundo, mas o significado grego que a palavra revela algo como oculto, na visão da diretora. A vinculação com redes evangélicas norte-americanas, trazida em cenas teatrais para comercializar bênçãos e vitórias eleitorais pela fé e atingir o topo da materialidade, mostra Malafaia divulgando a retórica do "fim dos tempos". Serve para justificar alianças com a bancada da bala e discursos autoritários ao bradar: “precisamos de homens fortes” e contraditoriamente fala em “defesa da vida”. Incita a violência através da “guerra santa”, num paradoxo com a sua realidade. Prega uma geração "que faça a diferença", ou seja, um postulado neoliberal bem individualista que ele pretende transformar em numa dinâmica para revolucionar a história do país.

Há uma cena reveladora onde Lula admite “o erro da esquerda foi negar a religião”, num discurso que aliena as periferias religiosas, facilitando o ingresso fulminante do pentecostalismo no ópio do povo. O magnífico documentário revela aos poucos um adversário com armas poderosas na defesa de seus próprios interesses. Uma ideologia advinda das pregações dos princípios como a salvação pela graça, através da fé em Jesus Cristo, inspirado na Bíblia como regra máxima de fé e a prática na sacralização da política. Nossas instituições através dos instrumentos de poder, responsáveis pela garantia dos direitos e deveres está calcada em uma resistente democracia construída com muito sangue, lágrimas e mortes oriundas dos tempos de horror pretérito. Mexe com o espectador e o tira da zona de conforto. Eis uma reflexão sobre o passado e o presente de uma nação moribunda institucionalmente. Um filme que é, inegavelmente, um registro histórico que ecoa como um alerta máximo urgente da religião pela crença fanatizada se confundindo com o Estado laico como um apocalipse.