quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Inverno em Paris

 

Solidão e Luto

O festejado cineasta francês Christophe Honoré tem em sua filmografia obras menores e de pouca relevância, tais como: Bem Amadas (2011), Metamorfoses (2014), Os Desastres de Sofia (2016), Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2017) e Guermantes (2021). Inverno em Pais é o seu mais novo filme para retomar o caminho de êxitos com méritos peculiares. Novamente se debruça e aprofunda com sensibilidade as lacunas e os conflitos da temática que faz parte essencial de seu estilo humanista e preocupado com os elementos decorrentes do núcleo familiar. Assim como já o fizera no Em Paris (2006), sobre o relacionamento de dois irmãos que moravam com o pai, que acabara de se separar da mãe, convivendo com a tragédia da irmã e da depressão profunda com tendências suicidas do irmão mais velho que rompera com a noiva. Já no excelente A Bela Junie (2008), uma garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe e o suicídio aflora outra vez como temática contundente. Talvez o melhor de todos seja Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009) ao retratar uma mãe de dois filhos, recém-separada, larga o emprego num hospital de Paris e vai morar com os pais e os irmãos na Bretanha, interior da França, onde passou sua infância. Os prazeres da vida e os seus incômodos restritos nas suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo a figura materna da falsa moralista, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo.

Eis um drama familiar surpreendente em uma viagem carregada de luto que acaba se tornando uma oportunidade de autodescoberta. Acerta em cheio com um elenco coeso, intenso e em sintonia harmoniosa. Uma trama sensível sobre um longo inverno frio, sombrio e doloroso para Lucas Ronis (Paul Kircher- atuação convincente), um jovem de 17 anos, que está prestes a terminar o último ano de internato. Porém, a morte trágica em um acidente de carro de seu pai desmorona suas certezas e planos futuros. Um vínculo paternal estabelecido que sequer ele soubesse, aflora e o faz ter muita angústia e desespero solitário num vazio imenso. Logo após o funeral eivado por discussões políticas sobre uma série de atentados terroristas na França, e o possível envolvimento de imigrantes. Com o aval da prestimosa mãe (Juliette Binoche- sempre magnífica na interpretação, ilumina a telona com seu carisma, beleza, charme e talento) parte numa viagem para Paris em busca de consolo na companhia do irmão mais velho, Quentin Ronis (Vincent Lacoste- boa atuação). Uma jornada de desafios para se adaptar a uma nova cidade em uma nova realidade, decide encarar as dúvidas que o tem atormentado. Busca recuperar seu sentido existencial de vida para encontrar um novo caminho. Ainda preocupado com a mãe que ficou no interior, mergulhado na abissal e devastadora dor da perda e o sentimento de culpa pela morte do pai, que talvez não tenha absorvido sua opção sexual na qual estava em fase de descobrimento.

O diretor, que também assina o roteiro com um enredo bem alicerçado, coloca habilmente em cena a preocupação do jovem adolescente, quando o irmão determina que ele saia pela manhã do apartamento e só retorne depois das 18h. Ao mesmo tempo, sente-se atraído pelo amigo de Quentin, Lilio (Erwan Kepoa Falé), que mantém uma distância prudente diante da linha tênue que separa a amizade do despertar de um relacionamento amoroso, bem como pontua as diferenças circunstanciais entre os dois, colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa na possível descoberta amorosa que irá influenciar em uma ruptura violenta. São as construções impostas, embora aparentemente improvável, diante das consequências e do rumo pela reviravolta da história, que acaba amarga em uma dura realidade. Um processo longo para curar as mazelas do tempo e da imensa tristeza para um relacionamento familiar fragilizado pela carência de amor, diante da solidão recorrente, pela ausência repentina do pai e da distância da mãe, simbolizada no marcante jantar com a genitora do amigo. A curiosidade leva a encontros sexuais com desconhecidos, numa clara busca de novos horizontes e também testar sua culpa latente que carrega como sentimento de dúvida marcada pela morte e a tristeza do luto vivenciado pela tragédia. Tenta encontrar um subterfúgio para as mudanças sobre o rumo de sua vida e de sua mãe diante de situações novas como elementos que darão passagem à vida adulta. Por algumas semelhanças, remete ao drama Close (2022), do belga Lukas Dhont, uma sensível e delicada reflexão sobre amizade, amor e suicídio.

O microcosmo familiar é debatido e questionado amplamente. Sua crítica é reveladora ao demonstrar os seus propósitos de relações afetivas como uma maturidade atingida pela mescla do equilíbrio narrativo na abordagem direta, sem grandes metáforas. O sofrimento e toda a angústia da perda paternal pela possível culpa associados como fator de desagregação na espera para resgatar seus suplícios e aflições que estão ancorados. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato com uma melancólica aparência, que não são entendidas como as indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. Por toda a sua complexidade e seu dinamismo de abordagem singular, Honoré mostra estar maduro e com indiscutível criatividade, com temas atuais, acarretando em análises psicológicas dignas de um artesão voltado para um mundo em tempo real. Assistir seus filmes dá prazer e a mesmice passa longe, desabrochando a criatividade da mais alta finesse e suavidade, mesmo que ocorra pela forma do forte choque necessário de alerta, visa mexer com o espectador mais desatento ou aquele que busca somente o entretenimento.

Tanto Honoré como Dhont seguem caminhos semelhantes ao da cineasta Céline Sciamma na narrativa e nas pulsões incompreendidas da adolescência e suas tipicidades da idade, consagrada com o icônico drama Tomboy (2011). Filme que orientou e deu novos rumos aos destinos de uma nova geração de diretores, sobre questões da inexperiência da juventude para tratar com profundidade a precoce descoberta da homossexualidade. Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, os badalados irmãos Dardenne, dos longas Rosetta (1999), O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008) foram os precursores de filmes com mais delicadeza e menos rudeza da juventude. Sem nunca perderem o foco e o cerne da questão, utilizam o recurso da câmera na mão para registrar a rotina com seus atritos peculiares através de planos longos, por vezes optam para os close-ups para capturar a intimidade e os desatinos do mundo ao redor. Inverno em Pais mergulha nos inevitáveis rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na verdade, nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da amizade resiste pela importante intervenção materna em cena, na mensagem de apoio do amigo, quando da recuperação do protagonista na tentativa de suicídio. Longe de filigranas de emoção superficial, deixa o espectador livre para refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem admirável e contagiante de contrariedades, contradições e resgate da vida, da busca pela opção sexual e da morte. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada e cultivada no desfecho.

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