quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O Quarto ao Lado

 

Viver e Morrer

O celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar retorna com O Quarto ao Lado, 24º. longa-metragem de sua vasta filmografia, primeiro totalmente falado em inglês, numa coprodução da Espanha com os EUA, foi ambientado em Nova Iorque. Conquistou de forma inédita para seu país o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. O diretor escreveu o roteiro baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, de 2020, da escritora norte-americana Sigrid Nunez, lançado no Brasil em 2021 pela editora Instante. Constrói uma reveladora exposição de exaltação à vida, com pitadas agridoces, para mostrar os dilemas advindos das personagens femininas fortes e o seu direito de escolha como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Uma temática extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a finitude da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença terminal devastadora com consequências de penúria pela autopiedade.

Almodóvar vinha dando sinais de estar exaurindo o poder de criação na carreira, mas retornou com seu clássico estilo de filmar e o rigor característico formal com Mães Paralelas (2021). Deu uma guinada para o resgate sociopolítico, embora sem se aprofundar no estupro, na maternidade, na trocas de bebês, no luto, na ausência dos pais, na ditadura protagonizada por Franco na Espanha com suas consequências nefastas dos inocentes que perderam suas vidas por um ideal. Na sua penúltima obra, Dor e Glória (2019), retratou uma autoficção intimista própria de um realizador homossexual no ocaso da carreira, alter ego de seu criador, com tintas autobiográficas melancólicas do declínio profissional. Encerrou a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte. Antes vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003). Seguiu o mesmo caminho de vários artistas em crise ou próximos do fim existencial, transformando a trajetória como um legado histórico da arte.

Acompanhado de uma trilha sonora contagiante, O Quarto ao Lado é um dos três maiores filmes do cineasta. Aborda um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Duas jornalistas amigas na juventude que trabalharam juntas numa revista terão seus caminhos cruzados por uma notícia na noite de autógrafos de Ingrid (Julianne Moore) num livro de autoficção. Através de uma outra conhecida, fica sabendo que Martha (Tilda Swinton) virou correspondente de guerra, ambas trilharam carreiras muito bem-sucedidas. Moore e Tilda estão magistrais em seus desempenhos numa entrega singular de perfeita sintonia com a história. As circunstâncias do cotidiano e o trabalho desafiador da correspondente afastam as duas por um bom tempo. Há fortes ressentimentos entre Martha e sua filha, que nunca a perdoou pela ausência constante da mãe, pois sempre se dedicou mais ao trabalho do que conviver com a jovem. A descoberta de uma doença terminal, um câncer na medula, muda completamente a vida da enferma que busca proximidade com as velhas amigas. Nenhuma delas quer ser parceira na empreitada dilacerante de assistir e contribuir com a eutanásia tão desejada. Um obstáculo deve ser vencido para a conclusão do desejo de dar fim ao sofrimento. Ela quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Propõe que a velha amiga passe com ela um período numa casa de campo para ter sucesso na ingestão de uma pílula letal que comprou na internet. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva. Entre as duas está o velho amigo, o cientista Damian (John Turturro), que dá algumas cutucadas críticas no aquecimento global, a sociedade conservadora, o neoliberalismo, e o crescimento de uma extrema-direita raivosa oriunda de um temido fundamentalismo religioso.

Um enredo que tem a eutanásia como a temática em foco, mas a vida e sua celebração estão acima de qualquer viés doutrinário. A marca registrada do realizador está presente, como notável observador que lança situações escabrosas e assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal: a morte, com um esgar sarcástico no canto da boca. Confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Há algumas semelhanças com o controvertido Está Tudo Bem (2021), de François Ozon, sobre um painel doloroso de uma amarga história de um industrial independente de 85 anos de idade, acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado. Cansado da situação crítica, decide que não quer mais continuar a viver sequelado. Pede ajuda à sua filha para através do método do suicídio assistido na Suíça, uma situação recente como do ator Alain Delon que optou pela cápsula com substância mortal, que acabou não se concretizando. Marco Bellocchio não se posicionou em A Bela Que Dorme (2012), deixou nas entrelinhas uma contrariedade implícita, possivelmente por não querer se incomodar com a igreja, completamente oposto a Alejandro Amenábar em Mar Adentro (2004), que aborda diretamente um homem que luta para ter o direito de pôr fim à vida. Michael Haneke em Amor (2012) instiga por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia redentora ao dar um soco no estômago do espectador, mas ao mesmo tempo reflexivo sobre métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dá um tapa na cara da morte, como fez o personagem central num ato de desabafo pelo desespero. Stéphane Brizé em Uma Primavera com Minha Mãe (2012) fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre a morte e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de uma vida repleta de contratempos e solidão para uma decisão tomada com lucidez pela ausência de perspectiva para o ser humano.

Estabelece algumas relações com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e a eloquência em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o ótimo Fale com Ela (2002); Volver (2006) como a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e a obra-prima Tudo Sobre Minha Mãe (1999). O Quarto ao Lado é uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido da existência. Um poema profundo da transição da vida para a finitude, fruto de uma grande amizade de puro sentimento afetuoso entre duas mulheres empoderadas. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia de pássaros na casa de campo em consonância com os flocos de neve de puro êxtase. Eis um drama profundo e inesquecível, que somente um gênio poderia fazer desta forma com uma narrativa de magia e ancestralidade, com um desfecho arrasador de puro envolvimento sensorial que só o cinema proporciona. O olhar atento de um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma dos eventuais equívocos do destino. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano nesta obra-prima, em um dos melhores filmes do ano.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Até Que a Música Pare

 

Descobertas Familiares

A cineasta Cristiane Oliveira teve reconhecimento nacional com o drama familiar Mulher do Pai (2015), que venceu as premiações de Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Verónica Perrotta) e de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2016. Abordava uma adolescente que precisava cuidar do pai cego, após a morte da avó que os criou como irmãos. Quando o genitor percebe o amadurecimento da filha, surge uma grande intimidade na relação afetiva, mas com a chegada de sua namorada, o ciúme tomará uma proporção enorme na vida deles. O segundo longa-metragem da realizadora gaúcha, A Primeira Morte de Joana, estreou no 51º. International Film Festival of India, em janeiro de 2021 e foi vencedor de 11 prêmios, nos mais de 35 festivais pelos quais passou, inclusive no Festival de Gramado com o Prêmio da Crítica. Foi ambientado, no final do verão de 2007, na cidade de Osório, muito conhecida por seu parque eólico com 75 torres geradoras de energia, o imponente Morro da Borússia e dezenas de lagoas, onde foi criada a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos. Também teve locações nas belas paisagens do município de Santo Antônio da Patrulha, ambos no Rio Grande do Sul. Uma história com uma razoável complexidade que começa a se delinear no seu desenrolar ao retratar as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram trilhar em suas vidas futuras no período da transição entre a infância e a adolescência, com reflexões e questionamentos dos mais variados possíveis.

Até Que a Música Pare é o terceiro longa-metragem da jovem diretora, que assina o roteiro em parceria com Gustavo Galvão, foi selecionado para o Festival do Rio de 2023. Uma coprodução do Brasil com a Itália, na qual além de ser falado em português, também são usados diálogos em Talian, dialeto local da Serra Gaúcha que recentemente foi reconhecido como língua pelo IPHAN. Uma trama aparentemente simples conta a história de Chiara (Cibele Tedesco), uma senhora conservadora e cristã de uma família de descendência italiana. Depois que o último de seus filhos sai do lar para morar sozinho na cidade Caxias do Sul, pontuado como uma referência ao ninho vazio, ela decide acompanhar o marido em uma de suas tantas viagens a trabalho para não ficar só em casa, embora sua filha e a neta sejam as únicas companhias mais próximas que a visitam. O marido circunspecto, Alfredo (Hugo Lorensatti), é um fornecedor de produtos de bar, bodegas e armazéns pelas estradas serranas, por muitos anos, mas de pouca conversa. É a primeira vez que a esposa conhece esse outro lado do companheiro nos estabelecimentos e rodovias. Uma descoberta preocupante sobre a vida dele que sempre está na estrada, envolvendo baralhos de cartas vendidos sem nota fiscal e outras falsetas começam a preocupar a idosa estritamente honesta. Reclama que ele bebe vinho com os clientes e que depois segue dirigindo seu veículo antigo. No meio das surpresas surge uma tartaruguinha que colocará a confiança estreita do casal abalada seriamente em um novo desafio de suas vidas deste casamento de mais de 50 anos, sempre juntos.

A diretora foca na protagonista que sofre com a ausência do filho adulto que partiu para novos horizontes, e ainda mais tendo que conviver com o luto da morte de outro filho num acidente de carro. Segue uma rotina de cozinhar, comer, beber e conversar com algumas vizinhas do sítio em que residem nas imediações, tendo como rotina a circulação da imagem da Virgem Maria entre elas. As interações existentes no microcosmo familiar estão cada vez mais fragilizadas e distantes naquela zona rural. Não há pirotecnia, pelo contrário, as situações andam quase se arrastando nas posições de quadro a quadro, sem grandes movimentos da câmera ao captar os problemas do dia a dia. Ver os programas noticiosos de televisão falando da corrupção na política recorrente é a distração da noite, quando há algumas menções tímidas ao bolsonarismo e o conservadorismo reduzido quase beirando ao caricato. Porém, num belo dia festivo, Chiara conversa com o namorado da sobrinha, este faz uma explanação do budismo, e a possibilidade de uma espécie de reencarnação de seres humanos em animais. Explica como funciona a crença na relação particular com Deus e os esclarecimentos dos princípios desta doutrina. Convencida, a personagem central começa a interpretar a pequena tartaruga comprada pelo marido como o filho reencarnado. Ali se estabelece um vínculo muito familiar com o animalzinho, encontrando nele um novo sentido de vida e de interesse capaz de romper com sua vida solitária e monótona.

Do drama familiar, a diretora flerta com a fábula adulta para a superação da morte, além de reinserir socialmente na sociedade uma mulher da terceira idade. As discussões metafísicas e o realismo fantástico do filho que virou um bichinho de estimação pela consciência filosófico-religioso da existência que ocupa um espaço próprio. Estabelece-se um conflito de ideias e crenças, entre o forte catolicismo impregnado na Serra Gaúcha pela cultura italiana contrapondo com o budismo e seus dogmas completamente opostos. O tom de contemplação é a tônica do filme, contribuindo para discussão sobre os parâmetros religiosos. Enquanto a trajetória da protagonista fica cada vez mais eivada pelas incertezas na pequena comunidade em que vive o casal com a realidade da perda e as diversas transformações que cercam os idosos. Os sentidos se constroem numa lógica pueril de um cinema didático, afastando-se da indagação e de um contexto mais profundo, com causas e efeitos imediatos, sempre com respostas prontas, sem a possibilidade da dúvida na próxima cena. Exceto algumas desavenças do casal, na qual ela se recusa a seguir viagem, em seguida tudo volta ao normal na paz celestial. Eis uma narrativa linear, com uma cronologia que transforma a obra em um sentido de ingenuidade e pouco inspirada, diante da ausência de ousadia, dialoga com as telenovelas Globais de época, no horário das 18h.

Um elogio à fotografia fascinante com tomadas de imagens na cidade de Antônio Prado (RS), com cores suaves e harmônicas da natureza, embora se torne cansativa pela repetição. Faltaram atritos mais contundentes e a poesia do lugar teve raros espaços na montagem. A neta explicando à avó como se usa o celular, é outra cena didática e sonolenta. Pouco se discute os valores das vendas e as maquiagens contábeis. A luta do filho para colocar uma lápide do irmão, logo some da narrativa, que se ressente de lucidez e um objetivo com uma melhor consequência. Há um vazio na dramaticidade dos personagens condensados no roteiro e suas falhas, transparecendo uma artificialidade latente, como o epílogo pelo estereótipo de soluções de ordem prática e previsíveis após as descobertas do casal. Ainda que careça de amadurecimento, apresenta para reflexão uma ternura dolorida na busca dos detalhes da temática da morte. Um alicerce conservador envolvido pelos fatos numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes, mas que paradoxalmente avança para uma solução fácil com ausência de criatividade nesta realização rasa.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Inverno em Paris

 

Solidão e Luto

O festejado cineasta francês Christophe Honoré tem em sua filmografia obras menores e de pouca relevância, tais como: Bem Amadas (2011), Metamorfoses (2014), Os Desastres de Sofia (2016), Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2017) e Guermantes (2021). Inverno em Pais é o seu mais novo filme para retomar o caminho de êxitos com méritos peculiares. Novamente se debruça e aprofunda com sensibilidade as lacunas e os conflitos da temática que faz parte essencial de seu estilo humanista e preocupado com os elementos decorrentes do núcleo familiar. Assim como já o fizera no Em Paris (2006), sobre o relacionamento de dois irmãos que moravam com o pai, que acabara de se separar da mãe, convivendo com a tragédia da irmã e da depressão profunda com tendências suicidas do irmão mais velho que rompera com a noiva. Já no excelente A Bela Junie (2008), uma garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe e o suicídio aflora outra vez como temática contundente. Talvez o melhor de todos seja Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009) ao retratar uma mãe de dois filhos, recém-separada, larga o emprego num hospital de Paris e vai morar com os pais e os irmãos na Bretanha, interior da França, onde passou sua infância. Os prazeres da vida e os seus incômodos restritos nas suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo a figura materna da falsa moralista, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo.

Eis um drama familiar surpreendente em uma viagem carregada de luto que acaba se tornando uma oportunidade de autodescoberta. Acerta em cheio com um elenco coeso, intenso e em sintonia harmoniosa. Uma trama sensível sobre um longo inverno frio, sombrio e doloroso para Lucas Ronis (Paul Kircher- atuação convincente), um jovem de 17 anos, que está prestes a terminar o último ano de internato. Porém, a morte trágica em um acidente de carro de seu pai desmorona suas certezas e planos futuros. Um vínculo paternal estabelecido que sequer ele soubesse, aflora e o faz ter muita angústia e desespero solitário num vazio imenso. Logo após o funeral eivado por discussões políticas sobre uma série de atentados terroristas na França, e o possível envolvimento de imigrantes. Com o aval da prestimosa mãe (Juliette Binoche- sempre magnífica na interpretação, ilumina a telona com seu carisma, beleza, charme e talento) parte numa viagem para Paris em busca de consolo na companhia do irmão mais velho, Quentin Ronis (Vincent Lacoste- boa atuação). Uma jornada de desafios para se adaptar a uma nova cidade em uma nova realidade, decide encarar as dúvidas que o tem atormentado. Busca recuperar seu sentido existencial de vida para encontrar um novo caminho. Ainda preocupado com a mãe que ficou no interior, mergulhado na abissal e devastadora dor da perda e o sentimento de culpa pela morte do pai, que talvez não tenha absorvido sua opção sexual na qual estava em fase de descobrimento.

O diretor, que também assina o roteiro com um enredo bem alicerçado, coloca habilmente em cena a preocupação do jovem adolescente, quando o irmão determina que ele saia pela manhã do apartamento e só retorne depois das 18h. Ao mesmo tempo, sente-se atraído pelo amigo de Quentin, Lilio (Erwan Kepoa Falé), que mantém uma distância prudente diante da linha tênue que separa a amizade do despertar de um relacionamento amoroso, bem como pontua as diferenças circunstanciais entre os dois, colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa na possível descoberta amorosa que irá influenciar em uma ruptura violenta. São as construções impostas, embora aparentemente improváveis, diante das consequências e do rumo pela reviravolta da história, que acaba amarga em uma dura realidade. Um processo longo para curar as mazelas do tempo e da imensa tristeza para um relacionamento familiar fragilizado pela carência de amor, diante da solidão recorrente, pela ausência repentina do pai e da distância da mãe, simbolizada no marcante jantar com a genitora do amigo. A curiosidade leva a encontros sexuais com desconhecidos, numa clara busca de novos horizontes e também testar sua culpa latente que carrega como sentimento de dúvida marcada pela morte e a tristeza do luto vivenciado pela tragédia. Tenta encontrar um subterfúgio para as mudanças sobre o rumo de sua vida e de sua mãe diante de situações novas como elementos que darão passagem à vida adulta. Por algumas semelhanças, remete ao drama Close (2022), do belga Lukas Dhont, uma sensível e delicada reflexão sobre amizade, amor e suicídio.

O microcosmo familiar é debatido e questionado amplamente. Sua crítica é reveladora ao demonstrar os seus propósitos de relações afetivas como uma maturidade atingida pela mescla do equilíbrio narrativo na abordagem direta, sem grandes metáforas. O sofrimento e toda a angústia da perda paternal pela possível culpa associados como fator de desagregação na espera para resgatar seus suplícios e aflições que estão ancorados. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato com uma melancólica aparência, que não são entendidas como as indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. Por toda a sua complexidade e seu dinamismo de abordagem singular, Honoré mostra estar maduro e com indiscutível criatividade, com temas atuais, acarretando em análises psicológicas dignas de um artesão voltado para um mundo em tempo real. Assistir seus filmes dá prazer e a mesmice passa longe, desabrochando a criatividade da mais alta finesse e suavidade, mesmo que ocorra pela forma do forte choque necessário de alerta, visa mexer com o espectador mais desatento ou aquele que busca somente o entretenimento.

Tanto Honoré como Dhont seguem caminhos semelhantes ao da cineasta Céline Sciamma na narrativa e nas pulsões incompreendidas da adolescência e suas tipicidades da idade, consagrada com o icônico drama Tomboy (2011). Filme que orientou e deu novos rumos aos destinos de uma nova geração de diretores, sobre questões da inexperiência da juventude para tratar com profundidade a precoce descoberta da homossexualidade. Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, os badalados irmãos Dardenne, dos longas Rosetta (1999), O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008) foram os precursores de filmes com mais delicadeza e menos rudeza da juventude. Sem nunca perderem o foco e o cerne da questão, utilizam o recurso da câmera na mão para registrar a rotina com seus atritos peculiares através de planos longos, por vezes optam para os close-ups para capturar a intimidade e os desatinos do mundo ao redor. Inverno em Pais mergulha nos inevitáveis rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na verdade, nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da amizade resiste pela importante intervenção materna em cena, na mensagem de apoio do amigo, quando da recuperação do protagonista na tentativa de suicídio. Longe de filigranas de emoção superficial, deixa o espectador livre para refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem admirável e contagiante de contrariedades, contradições e resgate da vida, da busca pela opção sexual e da morte. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada e cultivada no desfecho.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Coringa: Delírio a Dois

 

Sociedade Enferma

Todd Phillips dirigiu o extraordinário filme Coringa (2019), uma comédia dramática em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix- em laureada atuação antológica marcada pela sinistra risada que provoca calafrios) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, semanalmente, precisava comparecer a uma agente social, devido aos seus distúrbios mentais. Após ser demitido, reage à gozação de três homens dentro do metrô e os mata num surto colérico inimaginável. Logo após, uma sequência de crimes darão início a um movimento popular contra a elite de Gotham City, decadente, elitizada e sem regra, com a magnífica referência a Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936). Provoca um levante dos oprimidos, cujo representante maior dos aristocratas é Thomas Wayne (Brett Cullen), além do crime ao vivo do apresentador de televisão Murray Franklin (Robert De Niro), em um programa líder de audiência. Passa pela origem do Batman ao dialogar com a memória coletiva. Um protagonista doentio que não vê problema em ser violento, em um clima de tensão recorrente, quando os primeiros indícios da eclosão do Palhaço do Crime começam a virar realidade numa mescla de delírios. Um filme corajoso, ousado e transgressor, condizente com a essência de seu personagem-título. Tem uma efervescência política vibrante, independente, catártica pela forma como foi construído, com um fundo psicológico de muito realismo pela sua transformação. É verossímil pelas condições de desigualdade social numa abordagem adulta para um personagem dos quadrinhos. Venceu o Festival de Veneza, ao conquistar o Leão de Ouro, recebeu onze indicações ao Oscar, ganhando em duas (melhor ator e trilha sonora).

Coringa: Delírio a Dois é uma continuação do filme original ao denunciar que as instituições lamentavelmente falharam. O cineasta retorna cinco anos depois, desde que Arthur Fleck- nome verdadeiro do personagem principal- (Joaquin Phoenix novamente em soberba interpretação) foi preso por todos os assassinatos que cometeu no filme anterior. Enquanto espera sua sentença na ala do manicômio psiquiátrico de Arkham, acaba conhecendo na terapia musical Harleen "Lee" Quinzel (Lady Gaga- em atuação contida e pouco inspirada), parecendo cair cada vez mais fundo em um poço de amargura, opressão e tristeza. A proposta do diretor de Se Beber, Não Case! (2009) que teve três continuações fracassadas, é arriscada, principalmente ao optar pela sombria narrativa da comédia musical com algumas pitadas de humor, um gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se arriscou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clima de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo.

Phillips, em nova dobradinha com Scott Silver, assinam um roteiro mais enxuto, menos fantasioso e com delírios bem menores, demonstra ser possível fazer cinema adulto na grande indústria, com brilho e arte. Foca a personalidade pouco convencional do personagem central de origem familiar controvertida, numa reação pela perda do emprego e outras infelicidades na sua trajetória de vida, quando assume uma postura violenta que o torna o anti-herói Coringa, no longa original. O relacionamento romântico e doentio com Lee, a Arlequina, uma psicóloga que se apaixona pelo vilão aos poucos, durante o tratamento dele, tão enlouquecida quanto o seu novo namorado, passa a acompanhá-lo na tentativa de ajudá-lo no julgamento, com uma manipulação que o deixa atordoado ainda mais. A dupla embarca em uma alucinada e fervorosa narrativa musical pelo submundo de Gotham City, enquanto o julgamento público se desenrola, com uma cobertura sensacionalista da mídia, impactando toda a cidade e suas próprias mentes e corações desatinados seguem um ritual de cinema de tribunal. Mostra a força dos que não utilizam artificialismos, nem otimismos ingênuos para elaborar um painel de personagens doentios de uma sociedade convalescente, todos integrantes de um mundo repleto de imperfeições. Constrói um clímax propício, como as idas e vindas para um desenlace surpreendente, sem ser previsível, que poderá desapontar muitos fãs.

Tecnicamente o filme é bem feito, isto é inquestionável, na produção, na montagem, na fotografia, e na trilha sonora agradável, num cuidado melódico, principalmente quando se ouve a voz de Frank Sinatra. Mas há equívocos com derrapadas, como o caos da explosão do tribunal, desnecessária e reducionista, remete para os filmes catastróficos blockbusters hollywoodianos; bem como a proposta de fácil digestão ao flertar com a atmosfera fantasiosa de números musicais na velha fórmula de fabricar sonhos românticos sem fronteiras distantes de uma realidade. Mas há também bons méritos, como a advogada de defesa (Catherine Keener) mostrando no júri que seu cliente é prejudicado no laudo psiquiátrico conclusivo, quando o diagnóstico açodado de sanidade mental é elaborado em apenas uma consulta de apenas 89 minutos, sendo levado apressadamente pelo promotor vaidoso aos autos do processo. No mesmo julgamento, o anti-herói assume sua personalidade desequilibrada e psicótica com nuances de narcisismos estremados do ser humano ao realizar sua própria defesa, tenta se desvencilhar do personagem delirante e fantasioso, mostrando o seu lado de carne e osso. A truculência dos agentes penitenciários com agressões descabidas, que fere os direitos humanos, é um outro achado positivo do enredo. Outra comovente cena do filme é quando Arthur vai até o telefone público e canta para a namorada a versão em inglês “If You Go Way”, do belga Jacques Brel, celebrizada por Edith Piaf “Ne me Quitte Pas”, um hino ao desespero da paixão e do amor. Embora o primeiro filme seja melhor pela ousadia do frenesi delirante, Coringa: Delírio a Dois é muito interessante no conjunto, por ser perturbador, tendo em vista que a sequência da obra é mais reflexiva e com uma crítica consistente ao sistema.