Pai e Filha
Vem do Reino Unido em coprodução com os EUA o cultuado drama familiar Aftersun, título que pode ser traduzido literalmente como “Depois do sol”. Escrito e dirigido pela escocesa Charlotte Wells, num panorama repleto de sutilezas para mostrar um choque de realidade dentro de sonhos idealizados, mas com nuances de perdas e conquistas diárias. Com relação aos sentimentos dos personagens e da relação dos dois personagens centrais, pouco se sabe, diante do enredo pontuado por uma certa melancolia de lembranças e recordações da adolescência de uma jovem. O filme traz a história sem muitos detalhamentos que irão se desenrolar como um novelo na trama de um roteiro enxuto, mas que elucida aos poucos os enigmas apresentados no prólogo e no seu contexto com marcas sintomáticas de um amor incondicional para ser saboreado a cada cena. Vai desde o ponto de partida até o epílogo num ritmo angustiante que tanto cala, afasta e aproxima dois seres humanos sedentos de ternura, e acerta em cheio uma plateia enjoada de violência explícita. Disponível no MUBI.
A história se passa no final da década de 1990, quando Sophie (na versão infantil é vivida por Frankie Corio, uma grande revelação; Celia Rowlson-Hall está na versão adulta), de onze anos, e seu pai Calum (Paul Mescal- indicado ao Oscar para Melhor Ator) que passavam as férias em um clube na costa da Turquia. Os dois tomam banho no mar e na piscina, jogam bilhar, cantam à noite em karaokês, tomam bebidas deliciosas coloridas, contam piadas, e desfrutam da companhia amigável um do outro. Quando a menina está sozinha, ela faz amigos e tem novas experiências e aos poucos as descobertas são desfraldadas. Um resgate dolorido de um passado de 20 anos, buscado por uma filha em relação ao seu pai e o namoro com sua mãe que não foi adiante. Traz as memórias de acontecimentos pretéritos que ganham um novo significado, enquanto tenta reconciliar o genitor que conheceu com o homem que não conhecia. A saudade mesclada com imaginações e fantasias de um tempo perdido que não mais será recuperado, mas que terá valor inestimável pelo afeto entre eles. Um filme hábil que manipula sentimentos com elementos humanos e dignos, através de delicados quadros e composições que eram cultuadas na época como Macarena. Sem didatismo ou apelação para lágrimas fáceis, afastando-se completamente de pieguismos, méritos para a cineasta que conduz com criatividade o espectador a acompanhar sem lamentar o destino dos personagens, contagia na essência cinematográfica.
Aftersun ganhou prêmios no Festival de Cannes, em Palm Springs, na Mostra Internacional de São Paulo, teve indicações ao Oscar deste ano e ao BAFTA de Cinema, entre tantas outras. A trama gira em torno da filha adulta que surge nos reflexos de espelhos ou na tela de uma TV, com cenas gravadas por uma filmadora caseira, outras por frestas ou fechaduras transformando o espectador quase em uma espécie de voyeur. A realizadora habilmente coloca o sentido da existência que tanto a garota procura para atenuar sua dor que remói para desvendar o passado que será aos poucos descortinado, para que se sinta como uma expoente da vida na ânsia de almejar a felicidade que tanto idealiza. A veneração que sente pelo pai e do sentimento de doçura dele para com ela são ingredientes que ilustram as cenas da bonita história contada do passeio de entretenimento das férias no passado revelador. Eles se admiram com estonteante prazer que darão a alegria de continuar existindo, a amizade solidificada e um indício promissor daquele ambiente tão magnífico vivenciado pela dupla, ou seja, o prazer e o aroma da vida.
Neste redemoinho está encaixada a filha que nutre uma beleza interior, deixando transparecer todo apreço e sua altivez em suas atitudes. Os contornos pacificadores irão se estabelecer nas relações entre os dois, com as revelações maduras sobre as memórias com fissuras dos primórdios de um passado distante, em que ela está aprisionada. Seu fascínio pelo pai soa metaforicamente como o sentido de seu enclausuramento psicológico, diante do fato pretérito causador da curiosidade e de sua amargura que busca entender. Porém, há profundidade no contexto do momento em que o amor paternal é alicerce para sua lucidez que tomam contornos inimagináveis para uma aproximação com a vida marcada pela distância entre eles, cada um morando em países diferentes. O filme busca alternativas pragmáticas para lidar com as dificuldades advindas do cotidiano, através de opções apresentadas como fórmula do bálsamo da convivência civilizada. Um drama atual e exemplar, no qual a narrativa está inserida na linguagem do cinema em toda sua extensão que não cai na mesmice de roteiros complexos e confusos vistos em muitas realizações estéreis, ao dar vazão para um mergulho no imaginário do público.
Para isto é dado o tom certo do clímax que desencadeará no desfecho que trará luz para um futuro difícil, mas com um toque de otimismo nesta admirável obra de valores profundos e marcantes numa atmosfera de amor e melancolia de uma realidade tão presente. Eis uma interessante busca de uma criança que foi um dia, mas que agora adulta precisa reatar os laços de afinidade familiar. Os sentimentos que são necessários para reconhecer a conexão abalada, quase fraturada, que se estabelece entre os protagonistas. Uma abordagem com profundidade sobre os aspectos das intrínsecas querelas familiares. Um drama que consiste em um mergulho psicológico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração quase sangrando. São fatos do cotidiano que gravitam no painel construído por Wells nas ações do tempo que mudam gradativamente e o espectador acompanha a transformação, através de um cenário que corta o silêncio dolorido. Há no desenrolar da história um aprofundamento intenso nos diálogos e nas imagens implacáveis, pela maneira elegante da condução, com um toque de classe seco com extremo realismo de uma infância desnudada e apresentada com sabor agridoce.
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