Crepúsculo da Vida
Demonstrando grande e calibrado poder de fogo, continua afiado, corajoso e em boa forma, o cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Uma Bela Vida, título completamente equivocado batizado no Brasil. Baseado no livro Le Dernier Souffle, de Claude Grande e Régis Debrav, que numa tradução livre e mais próxima do original poderia ser O Último Suspiro. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), o ótimo Amém (2002) que retrata a Igreja Católica e sua proximidade com o nazismo, os bons O Corte (2005) e O Capital (2012), e o penúltimo longa, instigante e revelador Jogo do Poder (2019), inspirado no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. Gavras revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada”.
A trama aborda a medicina paliativa pouco incentivada nos países, entre os quais está a França. O realizador ressalta que as mais difundidas são as clássicas: curativa e a preventiva. Em muitas vezes são inúteis aos pacientes medicações sem resultado, sendo ótimos para os laboratórios que os fabricam. O médico Augustin Masset (Kad Merad) é o fio condutor da história. Especializado em tratamentos atenuantes para aliviar ou diminuir a dor, no qual não se busca a cura, mas o alívio dos sintomas decorrentes da enfermidade, em especial dos cânceres terminais. Os diálogos filosóficos travados exploram a vida e a morte com o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydés), que tem a suspeita de uma grave doença, está quase sempre acompanhado da resiliente esposa, Florence (Marilyne Canto). Ajuda e compreende o marido nos encontros para confrontar o medo e a ansiedades sobre o envelhecimento e a possível enfermidade que dá sinais de surgimento lentamente. O profissional expõe e relata minuciosamente os fatos do cotidiano da clínica. São histórias de diferentes pacientes com doenças sem cura: uma rica socialite parisiense (Charlotte Rampling), a mãe (Hiam Abbas) com o último desejo de comer ostras e tomar um vinho Breizh’Cadet à beira do mar, a matriarca que prefere que sua morte assistida seja mantida em segredo, sem esquecer do idoso que só se acalma com a chegada de seu cãozinho de estimação para lhe confortar no último suspiro.
Há algumas similitudes com o drama O Quarto ao Lado (2024), do celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que constrói uma despojada exaltação à vida, com pitadas acre-doce. Mostra os dilemas advindos das suas personagens e os seus direitos de escolhas como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a fim da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença devastadora com consequências de penúria pela autopiedade. A protagonista quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva, mas há o temido fundamentalismo religioso. Já Gavras conduz um drama existencial com sensibilidade arrebatadora e com alguma doçura, com tintas de notável humanismo diante da perda para a transposição ao infinito. No alto de seus 92 anos de idade, capaz de encarar a proximidade com a finitude de frente e sua familiaridade. Sempre com bom humor, disseca com doses homeopáticas nos diálogos a existência para outro plano, mencionando tanto pela filosofia do Espiritismo como do Budismo.
O grande mérito do realizador é ir aos poucos tornando aquele ambiente menos hostil e mais acolhedor para contrastar com o terror do diagnóstico negativo. Uma Bela Vida foca em cada paciente como um universo inteiro de emoções e interesses que irão guiar o escritor no confronto com suas dúvidas recheadas pelo anseio da verdade na revelação de seus exames. A perspectiva dos sentimentos de imortalidade da juventude passada e a motivação para continuar lutando e vivendo são combustíveis para superar os obstáculos, sutilmente colocados como um poema agridoce, como na cena inesquecível de Estrelia (Ángela Molina) ao partir da clínica para sua casa numa carreata com música e uma solenidade sem o vício do pieguismo barato, que somente um cineasta genial poderia construir pelo consagrado formalismo típico e o domínio narrativo peculiar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na cena, em que a oncologista revela seu corpo mutilado ao personagem central hesitante de um tratamento humanista. Um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar uma temática que assusta, mas libertada nas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma das eventuais traições do destino.
Um enredo que tem a morte assistida como a temática em foco está acima de qualquer viés doutrinário, sem afastar a vida e sua celebração. A marca registrada de Gavras está presente, como grande observador que lança situações controvertidas, quase que escabrosas, assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal, a morte se aproximando pelas confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre o ocaso da existência e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de vidas repletas de contratempos e solidões para decisões tomadas com lucidez pela ausência de perspectiva do ser humano desesperançado. Uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido existencial como um poema profundo da transição da vida para a eternidade. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia musical da personagem partindo em carreata. Um drama profundo e delicado através de uma narrativa de magia e ancestralidade. Fica o olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano em um epílogo singular nesta obra fabulosa.