sexta-feira, 25 de julho de 2025

Uma Bela Vida

 









Crepúsculo da Vida

Demonstrando grande e calibrado poder de fogo, continua afiado, corajoso e em boa forma, o cineasta grego naturalizado francês Constantin Costa-Gavras está de volta ao cinema com Uma Bela Vida, título completamente equivocado batizado no Brasil. Baseado no livro Le Dernier Souffle, de Claude Grande e Régis Debrav, que numa tradução livre e mais próxima do original poderia ser O Último Suspiro. Mestre do cinema de denúncia política, entre os quais estão os extraordinários Z (1968), A Confissão (1970), Estado de Sítio (1972), O Quarto Poder (1997), Desaparecido- Um Grande Mistério (1982), o ótimo Amém (2002) que retrata a Igreja Católica e sua proximidade com o nazismo, os bons O Corte (2005) e O Capital (2012), e o penúltimo longa, instigante e revelador Jogo do Poder (2019), inspirado no livro Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment, escrito pelo ex-ministro grego de finanças Yanis Varoufakisb, numa abordagem contundente, nua e crua, dos bastidores da terrível crise econômica da Grécia em 2015. Gavras revelou ao site francês L’Artvues: "O filme é uma espécie de tragicomédia que os gregos viveram e ainda vivem por dez anos e na qual a Europa parece não estar muito interessada”.

A trama aborda a medicina paliativa pouco incentivada nos países, entre os quais está a França. O realizador ressalta que as mais difundidas são as clássicas: curativa e a preventiva. Em muitas vezes são inúteis aos pacientes medicações sem resultado, sendo ótimos para os laboratórios que os fabricam. O médico Augustin Masset (Kad Merad) é o fio condutor da história. Especializado em tratamentos atenuantes para aliviar ou diminuir a dor, no qual não se busca a cura, mas o alívio dos sintomas decorrentes da enfermidade, em especial dos cânceres terminais. Os diálogos filosóficos travados exploram a vida e a morte com o renomado escritor Fabrice Toussaint (Denis Podalydés), que tem a suspeita de uma grave doença, está quase sempre acompanhado da resiliente esposa, Florence (Marilyne Canto). Ajuda e compreende o marido nos encontros para confrontar o medo e a ansiedades sobre o envelhecimento e a possível enfermidade que dá sinais de surgimento lentamente. O profissional expõe e relata minuciosamente os fatos do cotidiano da clínica. São histórias de diferentes pacientes com doenças sem cura: uma rica socialite parisiense (Charlotte Rampling), a mãe (Hiam Abbas) com o último desejo de comer ostras e tomar um vinho Breizh’Cadet à beira do mar, a matriarca que prefere que sua morte assistida seja mantida em segredo, sem esquecer do idoso que só se acalma com a chegada de seu cãozinho de estimação para lhe confortar no último suspiro.

Há algumas similitudes com o drama O Quarto ao Lado (2024), do celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar, que constrói uma despojada exaltação à vida, com pitadas acre-doce. Mostra os dilemas advindos das suas personagens e os seus direitos de escolhas como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a fim da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença devastadora com consequências de penúria pela autopiedade. A protagonista quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva, mas há o temido fundamentalismo religioso. Já Gavras conduz um drama existencial com sensibilidade arrebatadora e com alguma doçura, com tintas de notável humanismo diante da perda para a transposição ao infinito. No alto de seus 92 anos de idade, capaz de encarar a proximidade com a finitude de frente e sua familiaridade. Sempre com bom humor, disseca com doses homeopáticas nos diálogos a existência para outro plano, mencionando tanto pela filosofia do Espiritismo como do Budismo.

O grande mérito do realizador é ir aos poucos tornando aquele ambiente menos hostil e mais acolhedor para contrastar com o terror do diagnóstico negativo. Uma Bela Vida foca em cada paciente como um universo inteiro de emoções e interesses que irão guiar o escritor no confronto com suas dúvidas recheadas pelo anseio da verdade na revelação de seus exames. A perspectiva dos sentimentos de imortalidade da juventude passada e a motivação para continuar lutando e vivendo são combustíveis para superar os obstáculos, sutilmente colocados como um poema agridoce, como na cena inesquecível de Estrelia (Ángela Molina) ao partir da clínica para sua casa numa carreata com música e uma solenidade sem o vício do pieguismo barato, que somente um cineasta genial poderia construir pelo consagrado formalismo típico e o domínio narrativo peculiar. Mas é fulminante e vai ao cerne da questão, no desfecho providencial na cena, em que a oncologista revela seu corpo mutilado ao personagem central hesitante de um tratamento humanista. Um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar uma temática que assusta, mas libertada nas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma das eventuais traições do destino.

Um enredo que tem a morte assistida como a temática em foco está acima de qualquer viés doutrinário, sem afastar a vida e sua celebração. A marca registrada de Gavras está presente, como grande observador que lança situações controvertidas, quase que escabrosas, assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal, a morte se aproximando pelas confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre o ocaso da existência e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de vidas repletas de contratempos e solidões para decisões tomadas com lucidez pela ausência de perspectiva do ser humano desesperançado. Uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido existencial como um poema profundo da transição da vida para a eternidade. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia musical da personagem partindo em carreata. Um drama profundo e delicado através de uma narrativa de magia e ancestralidade. Fica o olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano em um epílogo singular nesta obra fabulosa.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Vermiglio- A Noiva da Montanha

 

Fragmentos da Guerra

Vermiglio- A Noiva da Montanha, em cartaz na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, foi indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano. Laureado com o Leão de Prata no Festival de Veneza do ano passado, também concorreu ao Globo de Ouro de Melhor Longa Estrangeiro em 2025. Conquistou sete categorias na Academia Italiana, entre elas estão a de melhor filme, direção, roteiro original, fotografia (Mikhail Krichman), melhor ator (Tommaso Ragno) e melhor atriz (Martina Scrinzi). Conta uma impressionante história de uma rotina na montanhosa Vila Alpina de Vermiglio, no norte italiano, com divisa para a Áustria, alheia em princípio aos horrores do conflito durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, no inverno de 1944. A aparente paz e serenidade são interrompidas com a chegada de Pietro (Giuseppe de Domenico), um jovem soldado siciliano desertor, que busca refúgio na comunidade e logo vai abalar as relações entre os moradores, principalmente os mais conservadores. A trama se interliga com a história emocionante das jovens irmãs à sombra dos desmandos oriundos nos campos de batalha.

Inspirado em um sonho da diretora e roteirista italiana Maura Delpero, no qual vê seu pai, já morto, recria as circunstâncias da infância através de uma narrativa admirável dos conflitos ocorridos no vilarejo. A realizadora opta por protagonistas mulheres e a maternidade como foco principal, assim como já fizera em seus dois longas anteriores: o documentário Nadea e Sveta (2012) e o ficcional Maternal (2019). Maneja de forma sutil e acolhedora três irmãs compartilhando uma mesma cama. Mostra as intimidades na iminência de um rompimento por fatores desprovidos aos seus desejos. Lucia (Martina Scrinzi) é a filha mais velha do professor do lugarejo, Cesare Graziadei (Tommaso Ragno) e vai se casar, logo trocará aquele espaço pelo de adulta com o futuro marido. Na realidade, são sete filhos e mais um prestes a nascer da mãe, Adele (Roberta Rovelli). Naquela aldeia sem jovens- todos foram lutar no front-, a irmã primogênita da família Graziadei conquista o recém-chegado soldado que aparece carregando o primo dela, Atílio (Fondevila Sancet). Com atuações irretocáveis de um elenco coeso, embora os atores sejam quase todos inexperientes, exceto Ragno, De Domenico e Roberta Rovelli.

Na imensidão daquela bucólica paisagem realçada em seus contrastes, está a limitação dos horizontes femininos, pela interpretação caolha de um universo estritamente machista. A ordem e a organização típica de uma família conservadora estão sob a determinação da mãe. Já o pai, um intelectual, é um homem contrário à violência daqueles tempos sombrios, que prioriza os prazeres culturais, pontuado pela trilha sonora do concerto de violino de Vivaldi. Distante das reclamações da vigilante esposa preocupada com a falta de dinheiro para a manutenção das coisas básicas do lar. Ele determina o destino de sua prole: "Lucia não é garota da cidade", diz o pai; Dino (Patrick Gardner), o mais velho, é tratado com descaso e decepção; Ada (Rachele Potrich), a filha do meio, tacha de limitada na vida escolar, incapaz de se destacar, mas apta pela dedicação e o fervor à devoção religiosa; sentencia que o futuro está com a caçula Flavia (Anna Thaler), pela sua inteligência e perspicácia, curiosa e observadora, é escolhida para continuar os estudos em Trento. Um drama sem exageros melodramáticos, no qual os silêncios preponderam para dar mais legitimidade à essência do cinema em seu todo. A insinuação, a sugestão e as meias palavras são ingredientes que enobrecem com extrema delicadeza as situações, mesmo que conflitadas. Os acontecimentos e os fatos que se sucedem são registrados com uma dose certa de sentimentos em cada cena. Os beijos da irmã que irá se casar vistos pelo olhar de Ada, ainda que com ciúmes e desejos próprios, paradoxalmente pelas pulsões sexuais e as restrições religiosas, são abordados sem histeria ou revanchismo.

O drama de guerra mesclado com situações familiares faz um retrato profundo da redução dos alimentos e provisões básicas para a manutenção de uma família imensa. Delpero retrata com maestria o racionamento da comida fruto da grande guerra mundial. Há questionamentos dos filhos que morrem no front por culpa de quem os empurram para lá, ainda que bem distante do arrebatador discurso feito em tom de protesto na excelente realização Frantz (2016), de François Ozon. Derrotados em campos de luta, resta o saldo de vítimas dos dois lados soando como uma proposta objetiva de um libelo contra o armamentismo e seu espírito belicoso. Estampa-se a dor das perdas e a derrota nos rostos do sobrevivente, um soldado silencioso que foge, pouco fala, distante, como se não tivesse ainda saído do confronto. O encadeamento dos dramas pessoais é uma estratégia para a construção de um discurso de um novo mundo pela criança que nasceu como símbolo de horizontes daquela luz angelical para uma suposta pacificação, como a busca de um trabalho digno da jovem mãe para criar sua filhinha. O casal desfeito representa a essência da tragédia de uma guerra ensandecida pelos homens. Como fio condutor, revela-se outras realidades e expectativas frustradas e semelhantes às suas fantasias.

Vermiglio- A Noiva da Montanha tem todos os méritos pela verossimilhança ao retratar um jovem refugiado que encontra uma noiva para atenuar a perspectiva de fugir de sua realidade sem saída, que será revelada no desfecho. A ambição geopolítica das nações com suas fragilidades e os atropelos exercidos estão nas arbitrariedades dos comandantes pelas vidas como joguetes descartáveis. Os personagens se cruzam em suas peripécias de luta num roteiro flexível e complexo pelo clímax do amor sem tempo para delongas, deixando o fervor do cenário se diversificar. Um lindo drama que funciona ao retratar as individualidades pelas peculiaridades do cotidiano das causas econômicas que pairam da loucura da irracionalidade. O olhar atento de uma realizadora lúcida para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino dentro da guerra pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a alma dos eventuais equívocos do destino. Longe de filigranas de emoções superficiais, faz o espectador refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa-metragem contagiante de resgate da vida. Uma elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um sopro de esperança germinada no epílogo. São marcantes a sensibilidade e a delicadeza de focar a chaga maligna enraizada no seio de um universo dominado pelos homens deste tema universal sobre a condição feminina, sem pieguismos baratos. Os paradigmas humanos são pontuais, no qual faz com que as cenas tenham o caráter pela igualdade de gêneros como símbolo da resistência feminina. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica nesta extraordinária obra, em um dos melhores filmes do ano.