terça-feira, 8 de outubro de 2024

Coringa: Delírio a Dois

 

Sociedade Enferma

Todd Phillips dirigiu o extraordinário filme Coringa (2019), uma comédia dramática em que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix- em laureada atuação antológica marcada pela sinistra risada que provoca calafrios) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, semanalmente, precisava comparecer a uma agente social, devido aos seus distúrbios mentais. Após ser demitido, reage à gozação de três homens dentro do metrô e os mata num surto colérico inimaginável. Logo após, uma sequência de crimes darão início a um movimento popular contra a elite de Gotham City, decadente, elitizada e sem regra, com a magnífica referência a Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936). Provoca um levante dos oprimidos, cujo representante maior dos aristocratas é Thomas Wayne (Brett Cullen), além do crime ao vivo do apresentador de televisão Murray Franklin (Robert De Niro), em um programa líder de audiência. Passa pela origem do Batman ao dialogar com a memória coletiva. Um protagonista doentio que não vê problema em ser violento, em um clima de tensão recorrente, quando os primeiros indícios da eclosão do Palhaço do Crime começam a virar realidade numa mescla de delírios. Um filme corajoso, ousado e transgressor, condizente com a essência de seu personagem-título. Tem uma efervescência política vibrante, independente, catártica pela forma como foi construído, com um fundo psicológico de muito realismo pela sua transformação. É verossímil pelas condições de desigualdade social numa abordagem adulta para um personagem dos quadrinhos. Venceu o Festival de Veneza, ao conquistar o Leão de Ouro, recebeu onze indicações ao Oscar, ganhando em duas (melhor ator e trilha sonora).

Coringa: Delírio a Dois é uma continuação do filme original ao denunciar que as instituições lamentavelmente falharam. O cineasta retorna cinco anos depois, desde que Arthur Fleck- nome verdadeiro do personagem principal- (Joaquin Phoenix novamente em soberba interpretação) foi preso por todos os assassinatos que cometeu no filme anterior. Enquanto espera sua sentença na ala do manicômio psiquiátrico de Arkham, acaba conhecendo na terapia musical Harleen "Lee" Quinzel (Lady Gaga- em atuação contida e pouco inspirada), parecendo cair cada vez mais fundo em um poço de amargura, opressão e tristeza. A proposta do diretor de Se Beber, Não Case! (2009) que teve três continuações fracassadas, é arriscada, principalmente ao optar pela sombria narrativa da comédia musical com algumas pitadas de humor, um gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se arriscou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clima de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo.

Phillips, em nova dobradinha com Scott Silver, assinam um roteiro mais enxuto, menos fantasioso e com delírios bem menores, demonstra ser possível fazer cinema adulto na grande indústria, com brilho e arte. Foca a personalidade pouco convencional do personagem central de origem familiar controvertida, numa reação pela perda do emprego e outras infelicidades na sua trajetória de vida, quando assume uma postura violenta que o torna o anti-herói Coringa, no longa original. O relacionamento romântico e doentio com Lee, a Arlequina, uma psicóloga que se apaixona pelo vilão aos poucos, durante o tratamento dele, tão enlouquecida quanto o seu novo namorado, passa a acompanhá-lo na tentativa de ajudá-lo no julgamento, com uma manipulação que o deixa atordoado ainda mais. A dupla embarca em uma alucinada e fervorosa narrativa musical pelo submundo de Gotham City, enquanto o julgamento público se desenrola, com uma cobertura sensacionalista da mídia, impactando toda a cidade e suas próprias mentes e corações desatinados seguem um ritual de cinema de tribunal. Mostra a força dos que não utilizam artificialismos, nem otimismos ingênuos para elaborar um painel de personagens doentios de uma sociedade convalescente, todos integrantes de um mundo repleto de imperfeições. Constrói um clímax propício, como as idas e vindas para um desenlace surpreendente, sem ser previsível, que poderá desapontar muitos fãs.

Tecnicamente o filme é bem feito, isto é inquestionável, na produção, na montagem, na fotografia, e na trilha sonora agradável, num cuidado melódico, principalmente quando se ouve a voz de Frank Sinatra. Mas há equívocos com derrapadas, como o caos da explosão do tribunal, desnecessária e reducionista, remete para os filmes catastróficos blockbusters hollywoodianos; bem como a proposta de fácil digestão ao flertar com a atmosfera fantasiosa de números musicais na velha fórmula de fabricar sonhos românticos sem fronteiras distantes de uma realidade. Mas há também bons méritos, como a advogada de defesa (Catherine Keener) mostrando no júri que seu cliente é prejudicado no laudo psiquiátrico conclusivo, quando o diagnóstico açodado de sanidade mental é elaborado em apenas uma consulta de apenas 89 minutos, sendo levado apressadamente pelo promotor vaidoso aos autos do processo. No mesmo julgamento, o anti-herói assume sua personalidade desequilibrada e psicótica com nuances de narcisismos estremados do ser humano ao realizar sua própria defesa, tenta se desvencilhar do personagem delirante e fantasioso, mostrando o seu lado de carne e osso. A truculência dos agentes penitenciários com agressões descabidas, que fere os direitos humanos, é um outro achado positivo do enredo. Outra comovente cena do filme é quando Arthur vai até o telefone público e canta para a namorada a versão em inglês “If You Go Way”, do belga Jacques Brel, celebrizada por Edith Piaf “Ne me Quitte Pas”, um hino ao desespero da paixão e do amor. Embora o primeiro filme seja melhor pela ousadia do frenesi delirante, Coringa: Delírio a Dois é muito interessante no conjunto, por ser perturbador, tendo em vista que a sequência da obra é mais reflexiva e com uma crítica consistente ao sistema.

3 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Coringa - Delírio a Dois" é um tapa na cara para aqueles que idolatram um mito e revelando uma sociedade atual mentalmente fragmentada como um todo.

Priscilla Cornacchione disse...

Excelente resenha!! Concordo
....ameeei o Coringa 2 , diferente , sai do lugar comum ,mergulhando num dual de realismo e delírios muito intetessante!! Joaquin Phoenix impecável, magistral 👏💕👏!!

Priscilla Cornacchione disse...

Excelente resenha!! Ameeei o Coringa, Delírio a Dois, diferente, sai do comum . Dualismo entre a realidade e os delírios!! Joaquin Phoenix impecável , magistral👏💕👏!!