terça-feira, 22 de março de 2022

A Felicidade das Pequenas Coisas

 

Sonho e Realidade

Vem do Butão em coprodução com a China o sensível drama social A Felicidade das Pequenas Coisas (o título original seria Lunana, um Iaque na Sala de Aula), indicado ao Oscar e considerado um dos favoritos para abocanhar a estatueta de Melhor Filme InternacionalA direção é do estreante Pawo Choyning Dorji, de 38 anos, que também assina o enxuto roteiro. Ele é cineasta e fotógrafo butanês. O cenário é Lunana, distrito de Gasa, no noroeste do país, onde está localizada a "escola mais remota do mundo”. A maioria do elenco é de estreantes que moram na região e nunca saíram de lá. Butão tem a alcunha de ser “o país mais feliz mundo”, com uma população de 771 mil habitantes, está localizado no extremo leste do Himalaia, na Ásia, sendo conhecido por seus mosteiros, suas fortalezas e suas paisagens impressionantes que incluem desde planícies subtropicais até montanhas íngremes e vales. A Capital é Timbu e fica a 3.000 metros de altura, e seus habitantes usam roupas tradicionais no dia a dia, tendo o regime da monarquia constitucional exercido pelo rei que lá também faz o papel político e ainda governa o Estado.

A trama é uma realização minimalista sobre as descobertas do jovem professor relutante Ugyen Dorji (Sherab Dorji), que está terminando sua formação profissional, mas não tem nenhuma vocação para ensinar. Seu grande sonho é conseguir um visto para a Austrália, mas há uma enorme dificuldade burocrática para sair, o que só o desanima ainda mais a cruzar o país, diante do desejo inegociável de poder cantar e tocar violão nos bares de Sydney. Ele é enviado pelo governo ao longínquo vilarejo de Lunana, no topo de uma imensa montanha, com 56 moradores aproximadamente. Um lugar de pouca transitabilidade que só é possível chegar lá a pé, após uma semana de caminhada com alguma alternância de andar no lombo de cavalos cansados por trilhas nas matas virgens. Não há condições de qualquer outro tipo de transporte, como carro, por exemplo, que é desconhecido pela população. Quando chega a nevasca, a região fica inacessível e incomunicável por vários meses. Inexiste tecnologia para o uso de celular, internet, televisão e energia elétrica, sequer um quadro negro na precária escola para os alunos, nem uma bola para se jogar basquete ou outro esporte, além do péssimo estado do quarto que é destinado ao docente com janelas protegidas do frio com papel de arroz. O estrume do iaque, uma espécie de búfalo, com presença marcante em pequenos rebanhos, serve como combustão para acender o fogo.

O diretor dá ênfase no realismo pujante da comunidade e seu afeto e louvação aos educadores que perderam sua autoridade, pois lá ainda se acredita que “os professores tocam o futuro”, razão pela qual o protagonista é visto como uma celebridade e tem um tratamento privilegiado, tendo revelações constantes para perder o gelo da alma e colocar generosidade, amor e gratidão numa pessoa que vai ao iminente encontro da felicidade. O filme nos remete para o extraordinário drama similar do gênero Sociedade dos Poetas Mortos (1989), de Peter Weir. O surgimento da jovem pastora Saldon (Kelden Lhano Gurung) que o conquista através de suas músicas pela bela voz que se esparrama na natureza para os possíveis espíritos que flutuam naqueles deslumbrantes vales montanhosos, além de presenteá-lo com um iaque que deve ser criado dentro da sala de aula, para ser protegido do frio, o animal irá dividir o espaço com os alunos. O sonho do personagem central vai sendo desconstruído com muita delicadeza e sensibilidade para o emocionante desfecho com um banho de humildade trazida dos ensinamentos de outrora, ao interpretar a canção já em Sydney, com mais de 5 milhões de pessoas, que aprendeu na aldeia. Até a metáfora do célebre educador brasileiro Paulo Freire se faz presente: “a educação se faz até debaixo de um pé de manga”. Todos vivem como se fossem uma grande família sob a batuta do chefe da aldeia e sua garra e obstinação para obter o melhor a todos. Embora haja algumas desestruturas, como o pai da encantadora menininha líder da turma de aula (Pem Zam), um alcoólatra inveterado e ausente no núcleo, fica acentuada a contextualização da vizinhança e seu cotidiano inerente com suas fraquezas, mas com um raro humanismo e solidariedade.

Com uma linda fotografia que capta com arte as cenas com imagens de paisagem exuberante das montanhas, traz sequências com grandes planos abertos de uma região vazia, porém mágica e envolvente, que será relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo, embalada pela pontual e cativante trilha sonora. Uma obra que aborda de forma clara e inequívoca a educação como elemento primordial naquelas contradições de uma aldeia que refletem uma sociedade em ruínas, embora haja civilidade, ternura e amor. Mesmo que aparente um falso universo de paz nas relações humanas num contexto amargo pelas circunstâncias precárias, com poucas condições de dignidade para uma população humilde que recebe de braços abertos os indivíduos aparentemente frios, desconectados da família e da triste realidade que atinge a pureza daquelas crianças que vivem naquela natureza selvagem encravada nesta inóspita região.

A Felicidade das Pequenas Coisas tem um epílogo otimista e redentor, por ser instigante a saga do professor e seu encontro com o sentido da existência humana num filme seco, direto e com boa dose de sobriedade, sem grandes rodeios ou exercícios pirotécnicos, usando apenas a equilibrada dose de amargura mesclada com algum alento. Não há cenas de pieguismos, méritos para o cineasta que conduz com criatividade o espectador a acompanhar sem lamentar o destino dos desprivilegiados. É contagiante na essência cinematográfica pelo simbolismo do descaso com o ensino das crianças pela ausência de um vínculo de importância de seus governantes diante dos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados que passam a fazer parte do cotidiano dos habitantes. O drama comove o espectador, fisga pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas más condições econômicas, ainda que sem atritos ou violência, que levam para um realismo social presente nas comunidades afastadas para ser refletido. Eis uma mini obra-prima que deverá estar entre os dez melhores filmes no final do ano.

sexta-feira, 4 de março de 2022

A Noite do Fogo

 

Domínio do Cartel

A competente cineasta Tatiana Huezo, de 50, anos tem dupla nacionalidade, pois nasceu em El Salvador e atualmente reside no México onde se naturalizou. Iniciou a carreira com o premiado documentário El Lugar Más Pequeño (2011) que abordava a Guerra Civil Salvadorenha. Seguiu no mesmo gênero com A Aula Vazia (2015) e Tempestade (2016). Estreia na ficção com este potente drama social A Noite do Fogo (na Netflix), coproduzido com Alemanha, Brasil, Catar, Argentina e Suíça, tendo escrito o roteiro baseado no romance Reze Pelas Mulheres Roubadas, da escritora Jennifer Clement, publicado em 2014. Conquistou a Menção Especial na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes e foi indicado para representar o México no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022. A realizadora não se intimida e revela muita segurança ao abordar um tema pesado, complicado, tenso, e com grandes implicações econômicas em seu país e nos EUA por envolver o dominante cartel mexicano do narcotráfico e da corrupção. Há efeitos maléficos que deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens atingidos por uma nociva guerra suja entre poderosos que reflete em inocentes na disputa de territórios para dominar o mercado.

A trama gira em uma cidade pequena e solitária situada nas montanhas mexicanas, onde três pré-adolescentes brincam numa casa de uma família que fugiu. Às vezes, se vestem e se pintam como mulheres adultas, desconhecendo o perigo iminente que ronda o lugar. Enquanto isso, a magia, a alegria e o lado lúdico tentam se fortalecer naquele inóspito e impenetrável universo. As mães orientam como podem as três garotas para se protegerem dos grupos de sequestradores de meninas que atuam na região. A diretora faz bem ao contar de maneira delicada a história sob o prisma e o cândido olhar infantil daquelas crianças. A protagonista Ana (interpretada por Ana Cristina Ordóñez González na infância e Marya Membreño na adolescência) vive com sua mãe Rita (Mayra Batalla- de atuação arrebatadora), tem como suas melhores amigas Maria (Blanca Itzel Pérez-com lábio leporino- e Giselle Barreira Sánchez) e Paula (Camila Gaal e Alejandra Camacho). A diretora buscou atores/atrizes amadores para obter mais autenticidade, tendo como preparadora de um elenco infantojuvenil a brasileira Fátima Toledo, que também orientou com os mesmos recursos técnicos Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund, nesta fascinante temática da infância à deriva no meio da criminalidade.

O drama reflete a ingenuidade das meninas que não compreendem e nem desconfiam os reais motivos que fizeram algumas mães ardilosamente cortarem os cabelos ao melhor estilo curto masculino. É comovedora a determinação da genitora de Ana para que a filha escavasse um buraco na terra em formato de um abrigo subterrâneo, como se fosse um bunker para esconder-se quando o perigo fosse iminente pelos homens fortemente armados na busca de ninfetas para raptá-las. O intuito único é comercializar as meninas para a prostituição, diante das evidências que existem dos desaparecimentos constatados, e de uma jovem que apareceu morta na mata. O treinamento dado à filha no bosque para entender e ouvir os sons de humanos e animais emitidos bem distantes é uma esperança e uma das poucas e eficientes armas bem utilizadas pelos nativos, bem como as cores decoradas para identificar a cobra coral. A defesa ferrenha da prole reflete o ponto de vista maternal na imaginativa e enternecedora proteção pelo ataque furioso do cartel que controla o povoado. Neste meio tempo, há os momentos pueris de descoberta da primeira menstruação e a candidez do amor platônico pelo professor, com as recorrentes confidências do trio de amigas.

A Noite do Fogo é um retrato fiel das fissuras sociais abertas pelas suas complexidades no México criadas pelo tráfico, na qual se busca um espaço para chegar ao poder, envolvendo diretamente as políticas governamentais. A violência extremada e explícita é o cartão de visita destes grupos do narcotráfico, provocando o horror constante, como já foi muito bem abordado em filmes da mesma temática sobre o cartel mexicano, entre os mais vigorosos estão Sicário- Terra de Ninguém (2015), de Denis Villeneuve, numa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA, que prepara uma audaciosa operação para deter o grande líder de drogas na fronteira. Segue na mesma esteira o excelente Heli (2013), do espanhol Amat Escalante, na denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o realizador intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita da história. Tem ainda o comedido La Playa (2012), do colombiano Juan Andrés Arango Garcia, sob um contexto humano naquele cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em que o tráfico também se faz presente.

A triste e dolorosa sina de uma realidade de barbárie que expõe uma situação caótica pelo abalo constante dos habitantes que estão sozinhos nessa árdua luta contra as forças do tráfico. Até mesmo o exército consegue enfrentar o temido cartel, enquanto isto a própria polícia dá suporte por estar em conluio com os criminosos. Os moradores do povoado para sobrevierem trabalham para uma facção daquele lugar com o pagamento correspondente a uma pífia ajuda de custo nos campos de plantação de papoulas na qual a flor produz a seiva que serve de matéria-prima para a fabricação de heroína e outros opiáceos. Porém, vivem sob o domínio diário do medo aterrorizante, inclusive os professores são ameaçados e desistem de dar aulas. A inevitável catarse trágica está anunciada, como parafraseando Gabriel García Márquez, em sua obra Crônica de Uma Morte Anunciada, no clímax de tom dramático que chega de maneira devastadora, como se arrebentasse uma grande guerra com barricadas nas ruas que contrapõe com os prazeres da infância, pré-adolescência e adolescência neste conflitado ambiente. Há se ressaltar a bela analogia do resistente professor no desfecho ao divulgar tese da cadeira virada para algum aluno se sentar, instigando pela luta de seus direitos de cidadãos numa narrativa que vai do delicado ao intenso pela explosão na épica noite para a sobrevivência. Transita da estupidez humana irracional para o grito de liberdade das amarras neste drama imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel delirante.

quarta-feira, 2 de março de 2022

A Filha Perdida

Maternidade em Xeque

O tema contemporâneo da maternidade parece estar na moda e vem rendendo boas e interessantes realizações com ressonância positiva nas redes sociais. Pedro Almodóvar construiu dilemas e situações bem características sobre suas figuras femininas em Mães Paralelas (na Netflix). Aborda duas mulheres que se conhecem no hospital, sendo que uma é aparentemente independente, com uma carreira sólida e alguma segurança financeira, porém não é tão bem resolvida como demonstra. A segunda é uma adolescente fragilizada, mas com pensamentos avançados teoricamente, que sofreu um estupro coletivo, tem problemas com os pais e está visivelmente assustada e traumatizada com a nova situação. No meio da trama há uma inusitada de troca das crianças no berçário. Já o diretor islandês Valdimar Jóhannsson estreou com o perturbador Lamb (disponível no MUBI), um enredo dividido em três atos com cenas de pouquíssimos diálogos. Gira em torno de um sofrido e silencioso casal de fazendeiros diante da prematura morte da filha, até o dia em que nasce um cordeiro com semelhanças e atributos humanos, que anda de pé sobre duas patas e veste um casaquinho com macacão. É batizada com o mesmo nome da bebê falecida, embora seja grotesca, anda de mãos dadas com os pais adotantes, e dorme languidamente num bercinho no quarto.

Outro sucesso com ótima repercussão de público é A Filha Perdida (em exibição na (Netflix), com a estreia na direção de Maggie Gyllenhaal, que também assina o dinâmico e instigante roteiro adaptado do livro homônimo da escritora Elena Ferrante, tendo levado o prêmio na categoria de melhor roteiro no Festival de Veneza. Demonstra sensibilidade, sutileza e boas qualidades para contar uma interessante história que prende o espectador diante do olhar investigador sobre a vida da mulher que tem dupla e até tripla jornada no dia a dia. Muitas vezes as condições humanas sobrecarregadas fraquejam durante a dura jornada com a missão a ser cumprida por imposição da estrutural sociedade machista hoje ainda existente, mesmo que anacrônica. O manual comportamental dever seguido com o cumprimento rígido dos ditos bons mandamentos orientados por uma casta aristocrática já pré-falimentar. A narrativa toca o espectador, até mesmo os mais insensíveis machos alfas de alguma maneira, diante das ideias e dos sentimentos, até então ocultos ou abafados, sem ter tido um grito de liberdade que tenha ecoado com lucidez e bravura. Romper as regras e os tabus dos conservadores do mundo dominado pelos bons costumes permanentes como prerrogativas da falsa moral é uma tarefa árdua, que reina na sociedade da hipocrisia em que a mulher/mãe perfeita cozinha, limpa a casa, cuida dos filhos, do marido, tudo de forma impecável, sem reclamar das dificuldades, por ser isto que lhe é cobrado diariamente.

O enredo foi bem elaborado e a apta imaginação deu resultados satisfatórios como uma obra de muito bom foco para atingir a meta esperada sobre uma mulher que precisa se recuperar ao confrontar o presente com o passado. Apesar disso, há um excesso de flashbacks com cortes sucessivos, e, em muitas vezes o clímax distensiona involuntariamente a trajetória. As idas e vindas da protagonista, do passado para o presente, foram a nota destoante da neófita diretora, que preteriu equivocadamente uma narrativa mais segura com o uso adequado de voz em off, mas que mesmo assim não conseguiu invalidar ou tirar méritos do todo de sua proposta. Leda (Olivia Colman) é uma professora de literatura comparada e devotada na área acadêmica, de meia-idade, divorciada, com duas filhas já emancipadas, mas que quando crianças davam muito trabalho, ainda que a jovem mãe (Jessie Buckley) fosse muito dedicada e quase sempre presente, demonstra ser sentimental, tem ambição, faz sacrifícios, é explosiva algumas vezes, charmosa e sensual em outras, fica conflitada entre estar com as filhas ou ter que optar pela profissão, além da ausência constante do marido que só lhe cobra resultados do cotidiano. O envelhecimento inevitável traz as angústias do passado, inclusive uma paixão impulsiva que estava anestesiada, mas que aos poucos veio à tona, pelas lembranças pretéritas que emergem ao tirar férias numa paradisíaca ilha costeira da Grécia. Lá ela começa a se sentir mais leve e livre apesar de estar envergonhada pela sensação solitária, pois aproveitou a brecha das filhas que foram visitar o pai no Canadá, ficando com a imagem da boneca raptada por maldade ou impulso que irá ao encontro da relação ambígua na infância de suas crianças agora já adultas.

O zigue-zague do roteiro aproxima a personagem central de uma família nova-iorquina suspeita de pertencer a uma máfia, pois elementos e situações corriqueiras não faltam, como supostas ameaças e um jogo sujo de alguns integrantes daquele esquisito núcleo. Leda se identifica e demonstra um certo fascínio incomum pela jovem Nina (Dakota Johnson), uma espécie de alter ego na frente de seus olhos reflexivos, que lançam luzes novas para um resgate, quase como um fantasma, que martela sua cabeça naquele lugar aprazível e redentor. Tudo é muito semelhante, até mesmo o desaparecimento da filha pequena na praia, rendendo uma procura incessante por todos nos arredores, até chegar ao ápice que é a iminente traição ao marido ameaçador (Oliver Jackson-Cohen). O vínculo e a amizade se estabelecem para elas interagirem com confissões recorrentes que irão construir um forte vínculo diante do atual momento das duas com as inerentes adversidades do cotidiano intenso de caminhos tortuosos. Mas prevalece a intensidade com o denodo do instinto maternal, embora as reações amorosas por ausência de afeto de seus pares sejam uma realidade profunda e mesmo não sendo descartadas as paixões de outrora, marcam corações, almas e mentes infinitamente, deixando feridas abertas com lacunas doloridas. A frase da famosa filósofa francesa feminista Simone de Beauvoir resume tudo: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Nem tudo é só lazer no passeio turístico na vida de Leda, que encontra naquela estranha família coincidências que a faz lembrar dos períodos conturbados e as penitências que teve de absorver como mãe, que lhe vem instantaneamente como memórias recuperadas que passam como um filme antigo, ou nem tanto. Traz uma reflexão comovente sobre entrar nos meandros mais sombrios e inexplorados da maternidade, individualidade e culpa implícita ou explícita do que mais poderia ter feito e não realizou, principalmente o sufoco para a criação intelectual. Tanto como mãe ou como mulher com seus desejos sexuais por paixões efervescentes da juventude. Ou os grandes amores frustrados ou colocados em prática. Há uma teia de aranha envolvendo as lembranças, os esquecimentos e alguns devaneios interrompidos repentinamente com elipses corriqueiras no desenrolar da trama. Talvez a protagonista pudesse ser mais ousada, quem sabe respirar o lado feminino muitas vezes despedaçado em fragmentos que são empurrados para uma linha tênue de seus limites, tanto do cansaço físico como da opressão emocional. São perguntas latentes que ficam no epílogo em aberto para abrir muitas possibilidades interpretativas de cada pessoa na dicotomia apresentada da condição feminina e sua empatia ao trazer um olhar inovador ao questionar a maternidade com todas as complexidades inerentes neste admirável drama familiar.

terça-feira, 1 de março de 2022

Lamb

Revolta da Natureza

A Islândia está em alta em suas realizações e brinda os espectadores com ótimos filmes. A Ovelha Negra (2015), do diretor islandês Grímur Hákonarson, venceu a Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2015, e foi indicado para representar o país no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016. Retratava de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho de ovinos da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores da espécie, onde a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos em todo território islândico. Como um prosseguimento da realização anterior, embora menor, Hákonarson cria uma atmosfera tensa em A Resistência de Inga (2019), diante da iminente falência do sustento familiar de uma fazenda e traz como reflexão literal o monopólio de uma cooperativa de criadores de bovinos.

Agora chega à plataforma MUBI o perturbador Lamb, do diretor estreante Valdimar Jóhannsson que já se credenciou com grande potencial, vencedor do prêmio de originalidade da mostra Um Certo Olhar, em Cannes, no ano passado, também venceu o prêmio máximo do Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha, e ainda foi escolhido para representar a Islândia na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar de 2022, e esteve na programação da Mostra de Cinema de São Paulo no ano de 2021. Há elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia de pastores de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma reintegração da união familiar estremecida neste suspense com variações para uma fábula adulta de terror com pitadas de fantasia sensorial. Proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes dos habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida.

A trama é dividida em três atos com cenas de pouquíssimos diálogos e gira em torno do casal de fazendeiros Ingvar (Hilmir Snaer Guönason) e Maria (Noomi Rapace, atriz sueca famosa por protagonizar Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de 2011) que vivem numa fascinante planície isolada de uma região muito fria com frequentes nevascas. Sofrem com a morte prematura da filha pequena, até o dia em que um suposto milagre na noite de Natal proporcionaria o nascimento de um cordeiro com semelhança, forma e atributos humanos, que anda de pé sobre duas patas e veste um casaquinho com macacão. É batizada com o mesmo nome da bebê falecida, Ada, sendo uma figura grotesca que anda de mãos dadas com os pais e dorme languidamente num bercinho no quarto como se fosse natural. O realizador dá asas à imaginação ao transformar um drama familiar aparentemente simples mergulhado num luto profundo, quando o roteiro, também escrito pelo diretor, dá uma guinada na envolvente história, com significativa mudança de rumo para um surrealismo sutil e de boa narrativa numa construção alegórica que beira a inverossimilhança.

O casal ao abraçar este presente que teria caído como uma dádiva superior dos horizontes celestiais, jamais imaginaria que estivesse infringindo algumas regras claras da natureza, como humanizar um cordeiro, que seria de Deus ou do demônio? Mesmo que para isto houvesse o sacrifício da verdadeira mãe em forma de execução dentro do processo de luto. Neste meio tempo surge o irmão do protagonista, Pétur (Björn Hlynur Haraldssson), um homem forasteiro e descompromissado, com um passado nada íntegro, que dá em cima da cunhada, mas mostra-se sensível ao tentar aceitar a aquela criatura nada convencional. O trator que enguiça na estrada e os sinais que surgem durante a trajetória do longa são evidências e acenos de que a natureza acusou o golpe das armadilhas que lhe foram impostas. O ritmo lento da tensão pelo silêncio constante leva para um grau de imprevisibilidade permanente, conduzindo o espectador para uma surpresa que está por acontecer a qualquer momento.

A fotografia de Eli Arenson traz sequências com grandes planos abertos de uma região vazia, porém bela e envolvente, que trará uma intensidade relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo. Tudo conduz para um desfecho catártico ao ser humano, porém com o viés redentor e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos das montanhas, árvores, animais decorrentes do ecossistema, diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos do egoísmo e da intransigência fruto de uma melancolia enraizada pela perda da filha. A maternidade ficou fragilizada com resquícios doentios para uma sobrevivência com um mínimo de qualidade, ainda que o preço seja muito alto, e ao ir de encontro das forças da natureza, a vingança pode demorar mas virá como um prato frio pelas mãos e/ou patas do além.

Lamb é um filme contagiante e traz na sua essência o lado sinistro de um certo mistério no bojo da narrativa, por isto prende o espectador que cria uma interessante perspectiva de visão para o desenlace, toda vez que observa a fisionomia daquela criatura aparentemente meiga que carrega algo sobrenatural. A simbiose da paz e da felicidade que poderia lacrar uma união abalada pela perda inesperada é negada. A própria criatura que solta seu balido ecoante no prólogo irá se socorrer da espécie que sai em sua defesa pelo tom da fábula mitológica reveladora. Uma magnífica reflexão sobre as consequências diante da interferência da dita civilização em situações aberratórias que buscam na excentricidade, como se vivêssemos num universo com características de um grande hospício. Qualquer ação violenta com uma retirada abrupta haverá uma resposta de punição à humanidade pela revolta da natureza agredida de maneira egoísta, sórdida e pusilânime. As referências do vínculo familiar, independente de espécie, ficarão ali marcadas pelo tempo e pelas adversidades inevitáveis nesta estupenda obra com tintas fortes de tragicidade, que mexe com o mais distraído dos espectadores no epílogo.