sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2018)



Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2018, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Roma, de Alfonso Curón (foto acima);

02. The Square- A Arte da Discórdia, de Ruben Östlund;

03. Sem Amor, de Andrey Zvyagintsev;

04. As Herdeiras, de Marcelo Martinessi;

05. Cachorros, de Marcela Said;

06. Baseado em Fatos Reais, de Roman Polanski;

07. Custódia, de Xavier Legrand;

08. The Post- A Guerra Secreta, de Steven Spielberg;

09. O Banquete, de Daniela Thomas;

10. Visages, Villares, de Agnés Varda e JR.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- O Insulto, de Ziad Doueiri
- Três Anúncios para um Crime, de Martin McDonagh;
- Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras, de Tom Volf;
- Carnívoras, de Jérémie e Yannick Renier;
- À Sombra de Duas Mulheres, de Philippe Garrel.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Roma



Reminiscências Arrebatadoras

O cineasta mexicano Alfonso Cuarón é reconhecido pelas obras E Sua Mãe Também (2001), Filhos da Esperança (2006), e os hollywoodianos Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) e Gravidade (2013). Agora em seu último longa-metragem, Roma, em que dirigiu, escreveu, produziu, montou e foi o responsável pela fotografia, um dos filmes mais comentados e aguardados do ano, que por méritos merece todo o clamor de púbico e da crítica. Por questões de logística de lançamento nos cinemas, foi barrado no Festival de Cannes deste ano, após decisão da organização de excluir produções da Netflix da competição. Mas no Festival de Veneza logrou êxito ao abocanhar o Leão de Ouro de Melhor Filme. Conseguiu ser incluído na programação do Festival de Toronto, e desponta como um dos fortes favoritos a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019, como representante do México, além de ser indicado em três categorias para o Globo de Ouro do próximo ano.

O título do drama memorialista não tem relação com a capital da Itália, porém a um bairro de classe média da cidade do México, próxima do aeroporto, que serve de cenário entre 1970 a 1971, para ser relembrada e contada as reminiscências da infância e o cotidiano dos familiares do realizador, através de uma família observada com acuidade de maneira silenciosa pela carismática Cleo (Yalitza Aparício- de ótima interpretação), que trabalha como babá e doméstica de confiança extrema, vive e divide um quarto pequeno com a irmã, também empregada. A protagonista foi inspirada na vida de Liboria Rodríguez (Libo), uma espécie de ouvidora do casal pelas passagens atritadas nas relações pessoais que envolvem a infância do diretor, nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. Também há algumas semelhanças com o documentário intimista brasileiro Santiago (2007), de João Moreira Salles, visto pela ótica do mordomo da família.

A produção se passa durante um ano, onde diversos acontecimentos inesperados afetam a vida de todos os moradores daquela casa, que dará origem a várias mudanças comportamentais, coletivas e pessoais. O machismo é cutucado com ironia, tanto na figura do marido pouco presente, como pelo namorado que rejeita a paternidade e ainda faz ameaças à doméstica. A gravidez e as consequências nefastas que irão advir, tais como o terremoto ocorrido durante a ida de Cleo ao hospital, soa como uma metáfora para o desenlace do parto. O protesto dos estudantes nas ruas com o namorado da personagem central em luta que acaba em mortes beirando o fuzilamento, também é outro presságio de mau agouro. O carro Ford Galaxy enorme que mal entra na garagem e a vida da patroa que terá de se reinventar após a separação, diante do choro compulsivo dos quatro filhos menores inconsolados são os sinais das mudanças iminentes e devastadoras. Não há pregação de falso moralismo entre patrões abastados e os subalternos sofridos, muito menos o panfletarismo recorrente nestas relações próximas em realizações menores.

A cena do mar revolto que quase traga a menina, no contraste novamente entre a vida e a morte em disputa para o renascer da esperança, brilhantemente filmada com a câmera entrando dentro d’água, sem mostrar a criança, cria-se um clímax de suspense com a expectativa agoniante. São tomadas longas de tempo e espaço no enquadramento em oposição aos movimentos panorâmicos, para cima, para baixo e para os lados, nos quais a câmera gira sem se deslocar. Por isto, Roma é um filme soberbo com tintas marcantes de influência da escola italiana do neorrealismo, a começar pela deslumbrante fotografia em preto e branco como elemento de desglamourizar as delicadas e efervescentes mazelas do dia a dia. Atinge no âmago pelo exemplar tom melancólico das situações que perdem a lucidez e ingressam nas conturbadas crises familiares, além da crítica social colocada em xeque pelo cineasta. Um retrato fiel de uma sociedade em transformação com ingredientes amargos dos novos tempos através da impactante narrativa com alta dose de densidade. Neste aspecto está bem evidente a presença dos grandes mestres Roberto Rossellini em Roma, Cidade Aberta (1945), bem como Luchino Visconti com Rocco e os Seus Irmãos (1960) e Vittorio De Sica em Ladrões de Bicicleta (1948).

Há outro aspecto relevante da produção que foi ressaltado pelo designer de produção Eugenio Caballero, ao revelar que 70% da mobília da casa no filme é oriunda da própria família do realizador, além de serem recriadas ruas e até uma avenida de acordo com as suas memórias, como a da cena em que as crianças caminham até o cinema, bem como as cabeças de cachorros empalhadas. Cria-se uma semelhança de realismo puro e próximo de um passado rememorado. Os sons de animais como os cães sempre presentes, os pássaros, o cotidiano com pouco barulho, exceto os aviões, daquele bairro suburbano, são fatores que contribuem para uma extraordinária referência do silêncio emblemático e da solidão aterradora dos personagens, que traz algumas similitudes com o drama O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.

Pelas abordagens profundas, sutis e sensíveis que são estampadas na telinha (na telona ficaria ainda melhor), Roma é um estupendo drama de intimismo pelas memórias do passado sobre um cotidiano reminiscente que tem na complexidade familiar as consequências marcantes que subsistem como forma para a elaboração do diagnóstico desta mini obra-prima de Cuarón. Dá para dizer, sem medo de errar, que é a realização mais madura, pessoal, intimista e completa, que beira ao épico, para atingir o ápice de uma carreira em evolução através desta fascinante autobiografia. Embora não seja um filme fácil e de rápida digestão, há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público. Porém, seu nível de autonomia estimulada com os adeptos da cinefilia é elogiável pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável na essência que se propõe como estabelecida no diálogo entre o espectador e o diretor. Um achado ímpar e inquestionável nesta realização em tempos de escassez de obras comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio de expressão e comunicação. Imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores de 2018.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras



Uma Diva Reverenciada

Um filme sobre a vida da grande diva da ópera do século 20, a bela e talentosa Maria Callas, uma das mais consagradas cantoras e intérpretes da história da música, teatro e cinema. Maria Callas- Em Suas próprias Palavras é dirigido pelo competente Tom Volf, que tem em sua filmografia Le Nègre de Molière (2005), filmado apara a televisão, e Les Aristos (2006). Realizado como documentário intimista obteve um resultado muito além da expectativa, numa narrativa sensível, poética e reveladora que passeia pela conturbada trajetória da personagem-título, através de versões e fatos verídicos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades, ou explicar didaticamente situações evidentes, mas que imprime boa velocidade num clímax certeiro. Lança um olhar sombrio de lembranças do passado, sem deixar de mostrar seus derradeiros dias, já abalada por crises existenciais como uma triste enfermidade da alma, tentando voltar aos palcos que a legitimou como uma soprano tecnicamente perfeita. O retorno sempre foi seu objetivo maior, para relembrar os episódios marcantes de sua virtuosa carreira.

A protagonista nasceu em Nova Iorque em 1923, vindo a falecer em 1977, aos 53 anos. Oriunda de uma família de imigrantes gregos, foi incentivada pela mãe a desenvolver os dotes artísticos desde cedo, teve aulas de canto lírico com a mentora Elvira Hidalgo no Conservatório de Atenas, mostrava-se disciplinada e boa aluna. Logo foi reconhecida internacionalmente como a melhor cantora de ópera de todos os tempos para a maioria dos críticos. O documentarista lança mão de entrevistas na imprensa, com imagens raras buscadas nos arquivos, além de vídeos pessoais amadores realizados pela própria personagem central, com revelações através de diários e cartas íntimas da biografada, em especial com a amiga Grace Kelly. Traça com isenção todo o percurso pessoal e profissional desta celebridade. A vida e a carreira da artista são reconstituídas pelo fio condutor de uma entrevista numa televisão preto e branco, de formato quadrado, dos anos de 1950. Mas é pela atriz francesa Fanny Ardant, que a viveu no drama Callas Forever, que irá emprestar sua voz às cartas confessionais de Callas, narradas em off, num achado significante para a emblemática realização.

O documentário aborda com simplicidade e boa dose de profundidade os grandes momentos do sucesso estrondoso, apresentando interpretações na íntegra como as árias de Donizetti e Rossini, La Traviata, de Giuseppe Verdi, La Sonámbula, de Vincenzo Bellini, e arrasa com Carmen de Georges Bizet. Um dos grandes traumas da diva, foi quando teve uma crise de bronquite e interromper a apresentação de uma ópera em Roma, considerado como um grande escândalo para o público e a imprensa. Foi hostilizada sem dó e nem piedade. Outra situação que o filme tenta esclarecer é a demissão no Teatro Metropolitan, nos EUA. Volf dá voz e apresenta a versão diferente da cantora sobre estes episódios nos bastidores com revelações pouco divulgadas na época. A recuperação aconteceu parcialmente, como ela mesmo diz, a família que imaginava nunca aconteceu, porque o destino guinou para a carreira iniciada precocemente aos 13 anos.

O realizador foca e aborda com farto material o relacionamento de Callas com Aristóteles Onassis. Uma paixão louca que a fez se divorciar do marido, num casamento fracassado, sem apoio e com um viés voltado para as finanças. Renunciou a cidadania norte-americana para se casar com o todo poderoso magnata grego, mas foi trocada pela viúva Jacqueline Kennedy. Outra decepção traumática, ao saber pelos jornais do casamento de sua grande paixão com a não menos linda “Jackie”. Com uma saúde já debilitada acabou por mergulhar numa depressão profunda, que foi curada com o tempo, se reconciliou com Onassis para ficarem bons amigos. O filme aborda a dualidade entre Maria, uma mulher frágil e ao mesmo tempo ousada para época, quando se divorcia, enfrenta as críticas de uma sociedade conservadora numa relação mantida ainda casada com um homem famoso, mas tenta sustentar a imagem de Callas num paradoxo que a leva para crises existenciais e que afetará a carreira profissional. São escolhas difíceis que a marcou pela trajetória de vida, como uma saga. Ao se distanciar e ser incapaz de unir estes dois aspectos cruciais, surgirão os problemas com cobranças severas, bem retratadas como elemento central deste extraordinário documentário.

Maria Callas- Em Suas próprias Palavras é um retrato pungente documentado da vida amarga de uma estrela e sua fervorosa vocação como cantora lírica, com todo seu magnetismo e brilho pessoal inigualável no universo cultuado da ópera, dito por muitos como entediante, porém quando não apresentada de forma correta, afirmava sem titubear a artista. Ainda teve participação expressiva na incursão pelo cinema, ao ser protagonista em Medeia (1969), filme de Pier Paolo Pasolini, um de seus grandes amigos pessoais. Mas gostava mesmo era de interpretar no palco e soltar a voz lírica nas apresentações que a consagraram. Uma pessoa sofrida, mas que acreditava em Deus, nunca desistia, e com muita força de vontade voltava para brilhar. Determinada a lutar contra o conservadorismo de uma época para uma mulher moderna que queria ser livre, imprimindo  muita coragem para enfrentar as rígidas regras morais daqueles anos.

Volf não tem o intuito de colocar julgamentos morais às atitudes no documentário. Transparece um relato conflitado entre os ideais feministas na defesa da mulher de espírito libertário, sem amarras, e com poucas raízes de vínculos afetivos maternais, embora fosse seu desejo íntimo. Havia um contraste na falta de um diálogo harmonioso entre a mulher Maria e a soprano Callas dedicada à ópera como elementos de amor e paixão pela vida e pela profissão, e, pelo que fez e deixou de fazer, que se fundiriam como uma simbiose, dizia: "Quem escutar todas as minhas interpretações vai me compreender por inteiro". Um filme sobre a trajetória marcada por ensinamentos reflexivos e existenciais nada convencionais num passeio pela história de La Divina e seu fascínio. Uma ode para os apreciadores da pura arte na companhia saborosa de uma genial artista com suas dolorosas lacunas pela vida nas armadilhas do destino neste tributo arrebatador.