segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

La La Land: Cantando Estações


Ode ao Romantismo

O jovem diretor Damien Chazelle, tinha 29 anos, e já demonstrava grandes virtudes em seu longa-metragem de estreia Whiplash- Em Busca da Perfeição (2014), na abordagem seca e profunda do duelo titânico na tela entre o mestre tirano com o aluno obstinado, com muita emoção num tom dramático em alta voltagem dentro de um conservatório para alunos de música, no qual um rapaz ambiciona galgar um posto de destaque na carreira de baterista profissional, mas encontra no encolerizado regente um método selvagem de lidar com seus pupilos, dentro de um rigorismo excessivo em que age com assustadora violência física e psicológica, desferindo tapas e bofetões, com cadeiras voando nas aulas. Entende que assim criará gênios como Louis Armstrong e Charles "Bird" Parker. O resultado é fabuloso num filme elogiado pela crítica diante da intensidade dos personagens bem estruturados psicologicamente, com G. K. Simmons no soberbo papel do professor enlouquecido pela técnica perfeita para descobrir novos talentos do jazz.

Em seu segundo longa, La La Land: Cantando Estações, Chazelle retoma sua admiração pelo jazz, mas desta vez num clima de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais das décadas de 1950 e 1960, com longos números de canto e dança de poucos cortes. Sua inspiração é explícita em Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Faz também algumas referências aos cenários que rodaram os inesquecíveis Juventude Transviada (1955) e Casablanca (1942). No plano-sequência do prólogo no engarrafamento na autoestrada, quase manda a plateia para casa pela fragilidade da cena. Após um gesto obsceno de um rapaz para uma moça no carro, está dada a senha para o grande romance que virá no desenrolar da trama. Primeiro desdenha e depois tenta conquistar, como nos velhos enredos de Hollywood à moda antiga. Ao chegar a Los Angeles o pianista jazzístico Sebastian (Ryan Gosling) reconhecerá Mia (Emma Stone), uma atendente de uma cafeteria dentro de um grande estúdio que luta para ser atriz. Ele é despedido de uma apresentação pelo proprietário do estabelecimento, coincidentemente interpretado pelo ator G. K. Simmons, que encarnou o irascível mestre na realização anterior; ela segue a saga de rejeições de aspirante ao estrelato.

La La Land é o grande favorito ao Oscar, dificilmente deixará de abocanhar as estatuetas principais. Está respaldado pelas 14 indicações, empatando o recorde histórico da premiação atingida por A Malvada (1950) e Titanic (1997). Disputará em várias categorias, entre as quais: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Canção Original. No Globo de Ouro ganhou sete troféus, inclusive de melhor filme musical ou comédia. O cineasta é um confesso admirador dos musicais antigos e repele os contemporâneos. Dividiu o filme nas estações do ano, buscando a forma mais pragmática na elaboração de sua obra ao focar no sentimentalismo meloso. Constrói um clímax propício, como as idas e vindas para o previsível casal se apaixonar perdidamente. O roteiro direciona para oportunidades que suas carreiras apresentam paradoxalmente com carros e celulares que remetem para os dias de hoje. Surgem alguns entraves e contratempos de difícil manutenção na competitiva cidade, mas eles tentam fazer o relacionamento dar certo de qualquer maneira, enquanto os personagens centrais perseguem a fama, o sucesso e a paixão desenfreada. Um não existe sem o outro, eis o combustível perfeito para uma trajetória espinhosa.

Os sonhos desfeitos e as tentativas para ingressar no mundo hollywoodiano no apogeu dos anos dourados, como da protagonista que tenta várias vezes a carreira de atriz. Uma fábula adulta sobre a impossibilidade da felicidade desfeita de um sonho pela ganância do dinheiro diante das circunstâncias periféricas que rondam destinos do universo de estrelas distantes do cotidiano, magnificamente explorado em Café Society (2016), de Woody Allen. Chazelle não aprofunda como Allen, pelo contrário, seu musical é raso e despretensioso como reflexão ou algo mais sólido, pois se esboroa como areia movediça em termos de construção maior e significativa para um cinema como instrumento da arte superior para reflexão. Debruça-se no mundo que produz beleza externa pirotécnica para fazer brilhar os olhos. O desfecho é o encontro revelador naquele céu estrelado luminoso e singular com uma fotografia primorosa num cenário estonteante para um público menos exigente e especialmente no apelo sentimental. Tecnicamente o filme é bem feito, isto é inquestionável na produção, na montagem, na fotografia, na trilha sonora convencional, no figurino e na iluminação beirando ao neon.

O espectador descompromissado sente-se cativado pela magia do cinemão filmado em Cinesmascope, utilizada para o widescreen, mais um presente aos saudosistas da tecnologia e projeção de Hollywood nos tempos áureos da indústria americana. Pouco importa a previsibilidade do desfecho no seu desenrolar e as armadilhas melodramáticas que descambam para a pieguice barata. Um filme explorado para atingir corações carentes por este cineasta promissor, mesmo que se afaste de uma realização contundente e profunda na essência como a anterior, demonstra equilíbrio cênico num ritmo linear bem popular, quase demagógico, para colher os frutos da bilheteria. Distante de temáticas polêmicas, dentro de uma proposta de fácil digestão, flerta com a atmosfera fantasiosa de números musicais na velha fórmula de fabricar sonhos românticos sem fronteiras distantes de uma realidade. Um musical nostálgico pelos objetivos claros de riquezas em homenagens, mas pobre em conteúdo. Porém, irá trazer lembranças de um passado bem longe, ainda que seu resultado seja meramente transitório, ao passar o fervor da premiação e do apelativo marketing do Oscar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A Criada


Relações Ambíguas

Vem do consagrado cineasta sul-coreano Park Chan-wook o bonito drama erótico de época A Criada, exibido pela primeira vez no Festival de Cannes de 2016. O realizador e também autor do roteiro adaptou de forma livre do livro Falsas Aparências, que serviu de inspiração para uma minissérie na BBC de Londres, em 2005, em uma locação típica da Inglaterra na era vitoriana. No longa, a ambientação é na Coreia do Sul, nos duros anos de 1930, durante a ocupação japonesa no país vizinho, quando a jovem vigarista Sookee (Kim Tae-ri) é contratada pelo falso conde Fujiwara (Ha Jung-woo) para trabalhar como serviçal na casa de uma herdeira nipônica, Lady Hideko (Kim Min-hee), que leva uma vida pacata e sem graça ao lado do autoritário tio Kouzuki (Cho Jing-woong). Há um plano macabro para seduzir a ricaça ingênua, roubar sua fortuna e trancafiá-la em um sanatório, que serve como mote para a trama, porém há motivações guardadas em segredo que aos poucos se revelam.

O habilidoso diretor opta por um filme em três atos, em que é contada a mesma história de forma diferente, porém somente no epílogo se saberá qual a verdadeira identidade do enredo. A narrativa é complexa e não se afasta do rigor formal peculiar das obras anteriores de Chan-wook, quase sempre em cumplicidade com a plateia, tais como: Mr. Vingança (2002), Oldboy (2003), Lady Vingança (2005) e Sede de Sangue (2009). Desta feita, cria-se um clímax de suspense e o espectador fica na dúvida para entender o que está acontecendo realmente. Os personagens, como se fossem colocados ardilosamente num tabuleiro de xadrez, estão sempre aprontando e enganando propositalmente a atenta plateia como numa mágica de engenharia cinematográfica. Às vezes, cansa pelas repetições e diálogos enfadonhos, mas logo dá um salto no roteiro eclético e segue a trajetória transitando entre o Japão e a Coreia.

O drama é bem formatado esteticamente, com uma fotografia deslumbrante numa construção invejável. Mas falta alma para a realização, que por vezes desliza em situações rasas, porém é criado um imaginário bem intenso pelo movimento da câmera para conseguir resultados apreciáveis ao explorar o estilo gótico, numa combinação singular de adereços com a instigante trilha sonora. Há uma mescla de erotismo das amantes fazendo sexo explícito com o iminente perigo em várias cenas. Tudo é verdadeiro num ato como poderá ser desmanchado no outro. O prazer sexual na essência é apresentado como aparência refinada, mas emerge a dúvida, a raiva, o ódio e a vingança. Há uma mistura em cenas tórridas eróticas filmadas como se fosse um poema inesgotável de sutilezas e sensibilidade à flor da pele. Eis uma aventura empírica num jogo perigoso para um mergulho numa imersão de luxúria proposta com algum fôlego.

O filme é uma relação conturbada e ambígua entre os personagens no seu cotidiano de uma bem arquitetada tramoia para roubar joias, roupas e uma fortuna imensurável. Mas como todo crime que nunca é perfeito, haverá o enfeitiçamento da empregada transgressora pela patroa bela e sedutora. Num primeiro momento pensa em protegê-la do conde de araque, fica penalizada com a triste saga da jovem herdeira que é obrigada a ler livros pornográficos falsificados pelo tio devasso para homens sedentos de lascividade, devidamente trajada como uma dama da sociedade. O plano começa a se esboroar com a aproximação e o vínculo estreito entre as mulheres envolvidas emocionalmente, acirrando os ânimos ao extremo com o cenário romântico. Soa como uma libertação para ambas, um corte das amarras do preconceito enraizado numa sociedade aristocrática com suas futilidades inerentes daqueles tempos. A felicidade aparente de sorrisos e olhares reveladores está inserida num mundo imaginário de desilusões de vidas fracassadas por um conceito residual estereotipado no gesto autêntico da escolha ousada. Basicamente, é a difícil realidade de dois seres humanos que optaram por uma relação proibida na sociedade conservadora. A solução encontrada para dar guarida e prosseguimento ao idílio é a camuflagem dos encontros.

Um parâmetro da temática de relacionamento homossexual feminino é o drama familiar Carol (2015), de Todd Haynes, embora pegue leve nas cenas de sexo, flutua pelos caminhos da sugestão e as carícias sutis das preliminares; outro seria o longa Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, numa abordagem sobre uma relação intrincada no Rio de Janeiro, em 1956. Não tem o fervor do polêmico drama francês Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que impactou com uma cena tórrida de sexo num plano-sequência de intensidade e realismo em seis minutos, que causou furor e escandalizou críticos e o púbico mais conservador em Cannes. Já o realizador sul-coreano lança um olhar feminista sobre A Criada, embora esteja mais contido no banho de sangue, deixa para o desfecho o violento acerto de contas com mãos e dedos decepados. Seu longa carrega no erotismo, no qual se sai muito bem e surpreende pela ousadia. Não se trata de uma obra sobre duas mulheres que transam o tempo todo, porque não é um filme panfletário, ainda que a voltagem seja alta. Há um bom mecanismo psicológico das personagens que é apresentado com imparcialidade as fragilidades reveladas. Não se acena com facilidades demagógicas para resolver problemas complexos, mas ainda que um tanto repetitivo, é um interessante filme de pequenos detalhes pela lente da ternura.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake


Discriminação Social

Um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha é estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático no fabuloso drama social Eu, Daniel Blake, ganhador da Palmo de Ouro de 2016. Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas, o octogenário diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e por este seu último longa ganhou pela segunda vez o troféu. Anteriormente, havia arrebatado em 2006 com Ventos da Liberdade, em Cannes. O título é mais uma parceria com o roteirista Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla.

A narrativa em tom naturalista pela espontaneidade de puro realismo dramático causa comoção, indignação e constrangimento no espectador atento às coisas do cotidiano na triste saga do operário enfermo, diante do grotesco evento proporcionado pelos burocratas de uma repartição pública inglesa, mas bem que poderia ser no Brasil que atualmente passa por uma reforma com mudanças radicais na Previdência, ou em qualquer outro lugar do Ocidente, pela temática universal abordada com dignidade e sensibilidade. A trama retrata o personagem-título (Dave Johns- numa atuação estupenda) que após sofrer um ataque cardíaco e ser vetado pelos médicos a retornar ao trabalho, tenta receber o Auxílio Financeiro concedido pelo governo aos inaptos por moléstia grave. Já no prólogo do filme, a imagem revelada é uma tela escura, onde apenas se ouve um questionário enfadonho de uma funcionária da saúde que conclui que o protagonista não faz jus ao benefício pretendido.

Daniel é um homem doente, de 59 anos, viúvo, sem filhos, exímio carpinteiro e um artista da madeira. Mas esbarra na burocracia previdenciária estatal, que o obriga a preencher um formulário digital solicitando desta feita um Seguro-Desemprego. Passa por uma reciclagem num curso para encaminhar um currículo e distribuir nas empresas e pequenos comércios locais. Por ser um analfabeto em informática, o fato ganha contornos ainda maiores, pois terá que pedir ajuda para outras pessoas mais familiarizadas com o computador. Depois de tudo isto, tem que provar que entregou os ditos currículos, o que não consegue fazer. Provisoriamente recebe cestas básicas do Serviço Social, mas terá que fazer outros requerimentos para receber então um Auxílio Emergencial. Cada vez mais as coisas se complicam, explode de raiva, picha o prédio do governo, reivindica seus direitos com o apoio de alguns populares, mas acaba preso e solto por um termo circunstanciado.

Habilmente o realizador conduz o drama com contornos de inverossimilhança pelas circunstâncias apresentadas. O problema não é resolvido e a situação é colocada como um libelo ao poder econômico pela discriminação social de quem depende da assistência no momento em que mais precisa, mesmo cumprindo seus deveres de cidadão honesto e em dia com os impostos. Num clímax de tensão que vai embrulhando o estômago, a história do desvalido cresce e mergulha no desespero da perda iminente da dignidade ao se encaminhar para um desfecho inesperado. Numa de suas várias idas ao departamento governamental, o nosso anti-herói conhece Katie (Hayley Squires), uma jovem mãe solteira de dois filhos menores, abandonada pelo companheiro, que se mudou recentemente de Londres para a fria cidade industrial de Newcastle, norte da Inglaterra, que também não possui condições financeiras para se manter. Daniel é uma espécie de pai e protetor para as crianças, diante da omissão do Estado. Criam um vínculo forte de amizade, logo após o benefício da moça ser negado por ela ter chegado atrasada na entrevista. Os dois são humilhados e enxotados pelos truculentos seguranças. A polícia é um instrumento repressor do sistema como uma ameaça constante para quem protesta de forma veemente. Tanto para a mulher que terá que optar por ganhos indignos como alternativa de sobrevivência, como para o homem derrotado, símbolos do descaso. Entre eles há o vizinho, um rapaz negro que vende produtos pirateados da China, outro marginalizado da sociedade de consumo, que busca na clandestinidade maneiras de tocar a vida como pode.

O veterano Loach cria com extrema magia cinematográfica um doloroso painel kafkiano, que lembra a intrincada máquina burocrática ambientada no best-seller O Processo (1925), de Franz Kafka. Aproxima-se com grande similitude temática do notável drama Um Episódio na Vida de Um Catador de Ferro-Velho (2013), do diretor bósnio Danis Tanovic, em que o marido recorre à Assistência Social para resolver o problema de saúde da esposa, mas só há uma alternativa: ou arruma o dinheiro ou morre sem dó e nem piedade. Tanto na Bósnia-Hersegovina como na Grã-Bretanha, a discriminação social está presente e não faz concessão aos excluídos.

Eu Daniel, Blake tem contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência dos contribuintes. Despojado de alegorias e metáforas, tem uma construção rica de elementos dentro de um roteiro enxuto e direto ao ponto, sem grandes armadilhas ou situações que poderiam levar para uma trama apelativa. Um filme intenso que enobrece o cinema, através de um enredo emocionante sobre os dissabores dos marginalizados, em que personagens são descartáveis como objetos quando não servem mais ao dogmático capitalismo selvagem que leva para o desequilíbrio dos menos favorecidos na pirâmide social, ferindo o princípio da igualdade ao fazer restrições. O conflito é fruto de um sistema previdenciário instável e pré-falimentar que vira as costas para os necessitados quando estes mais precisam. Lança um olhar reflexivo com tintas fortes e marcantes sobre os socialmente desvalidos de maneira eloquente pela falta de dignidade e ética sob o prisma da hipocrisia repleta de nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Estados Unidos Pelo Amor


Solidão Feminina

No apagar da luzes de 2016, eis que surge da Polônia em coprodução com a Suécia Estados Unidos Pelo Amor, terceiro longa-metragem do promissor diretor e roteirista Tomasz Wasilewski, de 36 anos. Uma fabulosa mescla de crítica social com drama intimista sobre os destinos de quatro mulheres que querem mudar radicalmente para buscar a felicidade, por isto darão asas para seus futuros. Elas estão inseridas no meio do histórico fato da queda do Muro de Berlim, em 1990, o que leva os poloneses a vivenciarem um momento de euforia e liberdade, mas paradoxalmente ao mesmo tempo as incertezas rondam fortemente suas aspirações profissionais, como indica o prólogo da reunião familiar durante um aprazível jantar. Foi laureado como o vencedor do Urso de Prata de melhor roteiro no Festival de Berlim do ano passado e levou o Prêmio José Carlos Avellar de experimentação da linguagem no BIFF- Festival Internacional de Cinema de Brasília. O cineasta tem em filmografia os anteriores In a Bedroom (2012) e Um Mergulho no Espaço (2013).

A história é muito bem construída com subsídios exemplares num cenário propício de dias esperançosos nesse contexto. Agata (Julia Kijowska) é uma jovem mãe em um casamento sem amor, infeliz e turbulento, que mergulha no imaginário platônico de um relacionamento impossível ao sonhar com um padre da comunidade, evita o repulsivo toque do marido. Renata (Dorota Kolak) é uma idosa professora de literatura russa, convive em seu apartamento na companhia de vários pássaros, é apaixonada pela solitária vizinha Marzena (Marta Nieradkiewicz), uma ex-miss casada com um alemão que trabalha no exterior, é professora de educação física e se envolve fortuitamente com um fotógrafo maníaco. Já Iza (Magdalena Cielecka), irmã de Marzena, é diretora do colégio em que Renata leciona, torna-se amante de um médico casado e pai de um dos seus alunos, por quem ama loucamente, faz de tudo para conquistá-lo em definitivo quando ele fica viúvo.

Estados Unidos Pelo Amor faz um resgate das fantasias contidas naquele universo restrito e busca desenterrar a felicidade, ao colocar em xeque o papel da Polônia sobre os novos rumos do mundo, além da reunificação da Alemanha e da extinção iminente da União Soviética, como pano de fundo para uma narrativa densa, silenciosa e melancólica daquele quarteto de mulheres frustradas pelos seus problemas psicológicos que afloram com abundância as inquietudes adormecidas. Há uma derrocada pessoal, através dos devaneios e verossimilhanças de amores malogrados e partidos pelo tempo. Abafa-se a explosão catártica individual de emoções para impedir o coletivo flagrantemente, embora desmistificadora nas almas femininas que pululam e clamam para serem entendidas, tendo em vista que elas estão cobrando uma posição e um comportamento de reconhecimento das lacunas pelas doloridas fendas abertas que continuam sufocadas.

O epílogo sombrio remete para a obra-prima Gritos e Sussurros (1972), de Ingmar Bergman, diante da profunda imersão em suas próprias dores psíquicas que as personagens passam, beirando situações autodestrutivas no consolo e na empatia solidária entre elas. Um filme que aprofunda questões com imagens contundentes repletas de mistério na recriação de época, num cenário realçado e propício para um clímax em tons pastéis esmaecidos quase preto e branco, com locações num enorme condomínio suburbano com ênfase na frieza dos relacionamentos, pelo competente fotógrafo da República da Moldávia Oleg Mutu, que deu show visual em 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias (2007), do romeno Cristian Mungiu e Na Neblina (2012), do russo Sergei Loznitsa. A narrativa visceral é um ótimo exemplo de um enredo bem construído de bons diálogos, numa trama com ingredientes de dramaticidade dos personagens bem condensadas num roteiro eficiente e de muita sutileza sobre a temática sem estereótipos, em situações alucinantes para a reflexão das dúvidas amorosas e a liberalidade sexual, como as descobertas e os sonhos prazerosos nas cenas picantes de sexo intenso e com realismo.

O longa é uma daquelas realizações marcantes e dignas de constar na galeria das obras que mergulham na alma e no âmago de seres humanos perturbados por fatores diversos da plena consciência. Um painel de relatos que impressiona e instiga pela ousadia na mescla de temáticas, principalmente pela maneira como são colocados os fatos em consonância com as dores das personagens bem focados numa angustiante monotonia. A tensão aumenta e o fio do nó irá se desatando, com as revelações e as carências afetivas sendo literalmente expostas como vísceras, num clima que vai se construindo com todas as gradações de nuances do cotidiano tedioso. Um mergulho no sofrimento e na tristeza das perdas amorosas e a solidão que se escancara como resultado final, mas no seu contexto reflexivo há muito mais, como as remoções para os primeiros passos até atingis a liberdade e suas opções livres, como encaminha Wasilewski dentro de uma proposta madura, afastando os preconceitos das amarras repressivas, neste espetacular drama sensível polonês contemporâneo com significativo erotismo e suas abordagens sobre seus espaços num universo de igualdades, mesmo que desemboque em rupturas estruturais na sociedade.