quinta-feira, 7 de março de 2024

Eu, Capitão

 

A Odisseia

O respeitado cineasta italiano Matteo Garrone tem em sua cinebiografia dois filmes extraordinários. Consagrou-se internacionalmente com o inesquecível Gomorra (2008), vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes. Baseado em reportagens que resultaram na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de uma cidade e espalhar o pânico pelo temor. Pungente, destruidor e acachapante foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador, pela sua audácia e uma garra ímpar ao expor com realismo cru as mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente. Já Dogman (2018) obteve o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes para Marcello Fonte, ao ser o protagonista em uma atuação antológica. Ele é o filme. Uma realização magistral de um enredo aparentemente simples, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa, sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos, ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma periferia.

Depois de assinar uma obra menor como Pinóquio (2022), retorna em grande estilo com Eu, Capitão, sua última realização que mostra estar ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama em ritmo de epopeia, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Massimo Gaudioso. Indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, já ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de melhor direção e o Prêmio Marcello Mastroianni para melhor ator jovem a Seydou Sarr, decorrente de sua exuberante interpretação na pele do protagonista. O diretor recupera sua credibilidade ao abordar uma temática bem atual como a crise de refugiados da África para o exterior pelo olhar invertido, no qual há uma brutalidade bem objetiva com ingredientes de um realismo fantástico. A narrativa dramática retrata a jornada dos dois adolescentes primos Seydou (Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), ambos com 16 anos, que anseiam por um futuro melhor. Os dois decidem deixar Dakar, no Senegal, e partir rumo à Europa mítica em uma aventura com tintas épicas. Enfrentarão uma série de desafios para testar a própria dignidade humana numa arriscada travessia do Mar Mediterrâneo a bordo de um barco precário superlotado, depois de ter enfrentado a hostilidade do deserto e a crueldade dos centros de detenção e sequestros de grupos terroristas na Líbia.

No drama Dogman, a prisão e a condenação levam para a cadeia o protagonista e mostram ingredientes que fazem dele um homem transformado num verdadeiro animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do tempo em que ficou enclausurado para se vingar. Já em Eu, Capitão, o personagem central ao sair daquela masmorra repleta de torturas e ameaças à vida, ainda tem forças para se submeter a um processo de trabalho escravo para se libertar e encontrar o parceiro que havia sumido. Quer dar continuidade para sua saga de percalços num caminho tortuoso e cruel até conseguir encontrar a realidade de seus sonhos e fantasias para um futuro edificante. São as fragilidades das amarguras e peripécias da odisseia confrontadas com a esperança de uma solução pragmática em uma sociedade doente em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos presos sendo torturados no cárcere clandestino, bem como dos personagens dentro do atulhado barco quase à deriva em busca da liberdade e de um horizonte tênue, mas auspicioso, no porto da Sicília.

Eu, Capitão tem um contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de medo da miséria recorrente e do terror psicológico pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os dois jovens e o espectador se chocam com as circunstâncias, embora surpreendidos no epílogo com elementos de fábula moderna adulta para resgatar a dignidade ultrajada pela humilhação dos imigrantes. Os efeitos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada no destino almejado diante da destreza do herói negro com seu troféu emblemático, ao melhor estilo das grandes epopeias pela busca de uma civilização para trazer empregos e vida digna, pela ótica dos próprios africanos. Uma realização com amplitude maior na abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade selvagem pelas dificuldades, a corrupção, a violência e a solidão. Uma viagem marcada pela frase de Seydou para o primo: “Começamos a jornada juntos. Vamos terminá-la juntos”.

Cabe ressaltar as imagens fascinantes da paisagem desértica que os personagens enfrentam durante a maior parte da trama, pelas lentes do competente fotógrafo Paolo Carnera, em consonância com a bela trilha sonora. O filme é muito bem construído pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado, embora pontue o heroísmo irônico no desfecho pela transformação que traz reflexos pelas mudanças comportamentais de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados. O carismático protagonista não demonstra fragilidades, mesmo sendo alegoricamente um representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Não é um simples relato sobre a jornada de dois garotos senegaleses que decidem imigrar em busca de uma vida melhor. É uma história com elementos humanos fortes na sua essência, que revela diversos aspectos sobre todos os seres humanos que decidem sair escondidos da pobreza do ambiente familiar pela coragem e resiliência diante do caos para seguir em frente. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana da miséria até as irracionalidades bestiais de seus detratores ocultos neste épico espetacular para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel arrebatador pela sobrevivência, que se insere na listagem dos melhores de 2024.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Dias Perfeitos

 

Cotidiano Enfadonho

Desde a morte do genial Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982), um dos maiores nomes da cinematografia da Alemanha, existem alternativas para tentar não deixar cair em decadência o cinema alemão. A esperança se renovou em muito a partir dos anos 2000 com o diretor e roteirista Christian Petzold, considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo de seu país, o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim, autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), passou por Phoenix (2014) e finalizou com Em Trânsito (2018); bem como surgiu a promissora Ângela Schnalec, realizadora de Marselha (2013) e Eu Estava em Casa, Mas (2021). Já o cineasta Wim Wenders tem dois momentos distintos em sua carreira. A primeira é voltada para dramas fortes e profundos no qual brilhou com a obra-prima Paris, Texas (1984), o inesquecível Asas do Desejo (1987) e o magnífico longa de ficção O Céu de Lisboa (1994). Fez documentários como o contagiante Buena Vista Social Club (1999) e a mini obra-prima Pina-3D (2011), voltado para o sensorial ao mostrar a leveza da alma e do espírito na arte clássica da dança.

Depois veio o segundo momento de Wenders, que apresenta um considerável declínio pela falta de inspiração e a contundência nas suas obras, com realizações menores a começar por Até o Fim do Mundo (1990), os constrangedores Medo e Obsessão (2004) e Estrela Solitária (2005), além dos descartáveis O Sal da Terra (2014), Tudo Vai Ficar Bem (2015) e Submersão (2017). O retorno parecia indicar que tivesse se recuperado com mais energia da fonte que o alimentava, para uma suposta redenção triunfal com Dias Perfeitos que, inexplicavelmente, representa o Japão no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo o excelente Koji Yakusho vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes em 2023. Ledo engano. Embora tenha sido um realizador mais voltado para as feridas sociais e as angústias derrotistas de seus personagens, em dramas memoráveis, parece que perdeu definitivamente a inquietação e o foco. O tema da solidão sempre merece muito estímulo, o que faltou flagrantemente em Wenders e seu parceiroTakayuki Takuma, ao escreverem um roteiro burocrático e repetitivo com cenas recorrentes, tendo uma montagem desleixada.

A trama acompanha a história de Hirayama (Yakusho- tenta carregar o filme pelo seu talento desperdiçado), um homem de meia-idade muito reflexivo que vive sua vida de forma modesta como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Sua rotina começa pela manhã ao abrir a janela e olhar o sol, fazer a barba, aparar o bigode, tomar café, apanhar as ferramentas e colocar no carro ou na bicicleta e se dirigir para o local de trabalho e realizar suas tarefas profissionais do dia a dia. Mora num modesto sobradinho em um arrabalde pobre, sem luxo, com uma cozinha-banheiro onde escova os dentes de manhã, tem uma escada estreita e uma luz neon rosa que ilumina o quarto no andar superior. Adora ler na salinha pequena onde guarda seus livros, que pode ser claustrofóbica ou aconchegante, depende do ponto de vista e da observação do espectador sobre a simplicidade no local exíguo. Seguidamente passa numa livraria e compra um novo exemplar. Tem um amor platônico pela dona de um bar nas redondezas, e por aí vai.

Uma rotina com algum encanto ao transitar pelos parques e praças para tirar fotografias, e frequentador contumaz de lanchonetes e lojas de discos. Estas cenas se repetem à exaustão, numa compulsão do diretor pela reiteração até cansar o espectador. A monotonia é a mola propulsora do drama, às vezes se salva, graças ao diretor de fotografia Franz Lustig, que busca por ângulos de câmera em novos horizontes para um olhar mais expressivo do dia a dia, através de imagens que retratam momentos silenciosos, mesmo com distância da emoção na abordagem da tristeza e da alegria do protagonista metódico. A aparição de uma sobrinha parece trazer um alento, mas logo tudo se dilui e se esfarela pelo surgimento da irmã do personagem central recheada de preconceitos, ainda que artificialmente, foi uma das raras cenas que trouxe equilíbrio e alguma lucidez do diretor. O passado sombrio ficou ali e não evoluiu, exceto os encontros inesperados com alguma sensibilidade.

Velvet Underground, Otis Redding e Lou Reed com o título da música Perfect Days, disco produzido por David Bowie e lançado em 1972, compõem a boa trilha sonora, com canções aprazíveis e sugestivas da internacionalização de Tóquio. Quase que uma ode sacral do cotidiano pelo repetitivo esforço de Hirayama em se manter vivo e aprender com situações novas diariamente, como do seu empregado apaixonado por quem lhe despreza; da mãe que perde a criança na praça; do surgimento do ex-marido da dona do bar, que pouco acrescenta e logo descamba para o melodrama apelativo junto às águas do rio. O longa transita por temas como a solidão, a rotina, e a fuga para o sentido na vida moderna. Mas quase nada funciona ou é abordado sem profundidade. Na oscilação entre ajustes e desajustes, constâncias e quebras, a narrativa se debruça na observação rasa da repetição, em que conflitos vêm e vão pela vida. Eis um paradoxo da previsibilidade da indignidade da rotina de revezes do protagonista em seu silêncio constante, mas que aprecia a paisagem e sua tranquilidade ao fazer seus passeios contemplativos para encontrar conexão com a vida e, quem sabe, acreditar em alguma coisa mais significativa, mesmo que resignado com a rotina. Caso o diretor não se entregasse à preguiça criativa e sonolenta, e o filme fosse melhor estruturado, poderia sair algo melhor nesta redundância da repetição.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Zona de Interesse

 

Agonia do Holocausto

Não é nada convencional em suas narrativas o cineasta Jonathan Glazer, de 58 anos, nascido em Londres numa família judia. Assim foi no elogiado Sob a Pele (2013), uma ficção científica existencialista sobre uma alienígena que chega à Terra e começa a percorrer estradas desertas e paisagens vazias em busca de presas humanas. A principal arma é sua sexualidade voraz, mas descobre uma inesperada porção de humanidade em si mesma. O polêmico e impactante Zona de Interesse, quarto longa-metragem do diretor que também escreveu o roteiro, foi laureado no Festival de Cannes com o Prêmio do Júri, indicado ao Oscar em cinco categorias: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional - representa o Reino Unido-, Direção, Roteiro Adaptado e Som. É um drama histórico numa mescla com o gênero de guerra sobre o Holocausto que se passa durante a Segunda Guerra Mundial. Aborda o horror do nazismo, a partir de uma perspectiva singular e perturbadora, numa adaptação do romance homônimo de Martin Amis, de 2014, para contar a triste história de uma família alemã na Polônia, com efeitos assombrosos na humanidade. O cenário é reconstruído ao lado do hoje Museu de Auschwitz, com passagem em uma das chocantes cenas, embora a casa antiga ainda exista, o realizador preferiu ambientar numa réplica nas proximidades.

No prólogo e na parte final do longa, simbolicamente as cinzas das chaminés enfumaçam a telona que fica por alguns minutos sem brilho ou cor. A trama acompanha Rudolf Höss (Christian Friedel- impecável atuação), o comandante do campo de extermínio em Auschwitz, casado com Hedwig (Sandra Hüller- sóbria e convincente). Eles possuem cinco filhos menores, mais a sogra do militar que chega de repente. Parecem bem felizes, fazem piqueniques na beira do rio, pescam descontraidamente, desfrutando uma vida comum naquele lugar bucólico. Moram num lindo casarão com um jardim de belas flores cultivadas com delicadeza, embora uma delas, vermelha com seu esplendor ao se abrir sugira o sangue abundante. Há uma enorme piscina, o som dos pássaros se mistura no silêncio familiar e no cachorro amigão de todos. Mas, por trás da aparente fachada de tranquilidade que eles vivem, está o campo de concentração do outro lado muro, com suas câmaras de gás letais e chuveiros químicos. O cotidiano destes personagens se desenrola entre os gritos e sussurros abafados de desespero, tiros ao longe, sirenes disparadas, os uivos dos trens chegando com milhares de judeus para trabalhos forçados, experiências médicas horripilantes, fome, doenças como tifo, até serem mortos e cremados nos fornos. Um genocídio em curso, do qual, eles também são diretamente responsáveis, inclusive as mulheres, tanto do comandante como dos soldados alemães, sabiam dos horrores. Comentavam com regozijos sobre o diamante dentro do tubo da pasta dental, o casaco de pele pequeno e os dentes dentro de uma pasta, retirados dos corpos das vítimas.

Com muita elegância e a classe britânica peculiar, o realizador mostra as crueldades expostas para chocar com sutilezas numa imersão sensorial através daquela família nazista. O protagonista não tinha empatia com ninguém, exceto com seu cavalo de estimação que expressa amor; bem como se entusiasma em um projeto para aumentar a produtividade de um novo crematório. Demonstra traços de uma psicopatia amoral em seu delírio. O filho mais velho prende o irmão dentro da estufa de flores, como um bom aprendiz dos pais, numa referência evidente à filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX, Hannah Arend, e seu conceito notável sobre a “banalidade do mal”, ainda hoje polêmico e incompreendido. O drama segue uma linha próxima de O Filho de Saul (2015), com direção de László Nemes, que retratava de forma seca os porões ainda não vistos do Holocausto, focando um integrante de uma espécie de brigada de judeus encarregada de limpar as câmaras de gás e carbonizar os cadáveres. O visceral e controvertido filme teve como cenário o ano de 1944, nos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma solução adotada como prática abjeta pelo nazismo, em como resolver e limpar os milhares de mortos advindos dos extermínios em massa. Já no documentário média-metragem Noites e Neblina, do mestre Alain Renais (1956), o cineasta soube com incrível fidelidade relatar os acontecimentos macabros 10 anos após o fim do Holocausto. Méritos para Glazer que não se deixou levar pela espetacularização e banalização da temática como retratados em A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg e A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni.

Eis uma obra equilibrada ao mostrar o horror que estava impregnado nas entranhas do mal e o abuso de poder, em que as vítimas faziam parte da terrível paisagem propiciada por Adolf Hitler. A câmera mantém sempre distância no enquadramento para não glamourizar ou dar empatia aos bárbaros nazistas. O casal com diálogos mesquinhos sem que se sintam abalados ou afetados, passa perfeitamente essa desumanização pela total falta de empatia de seus personagens, mais preocupados com seus interesses particulares. Embrulha o estômago e causa náusea no espectador, mesmo que o filme não seja explícito. As sugestões sem imagens sensacionalistas soqueiam e levam à lona por nocaute com mais precisão do que uma cena grotesca sendo publicizada, como de Gillo Pontecorvo no longa Kapò (1959), em que uma prisioneira morre eletrocutada na cerca elétrica com o rosto retorcido sendo mostrado em detalhes nos closes. Glazer prefere sugerir pelo som extraordinário captado dos pequenos detalhes do cotidiano, no trabalho eficiente realizado por Johnnie Burn, através das câmeras espalhadas dentro da residência para o espectador vigiar e sentir as torturas psicológicas advindas de uma cruel bestialidade através de uma frieza fenomenal dos protagonistas. Em meio à tensão no que ocorre do lado de lá do muro, com as dificuldades do cotidiano hostil da morte rondando naquele ambiente sombrio e tétrico, imaginada pela plateia, o casal se diverte e faz planos para o futuro como se tudo fosse normal.

O diretor busca uma abordagem voltada para os efeitos da dignidade, da moral, da ética e da reflexão sobre as atrocidades cometidas. Dentro de um notável equilíbrio, através de uma história contada com uma leveza aterrorizante, embrutecida por um panorama deixado pelos gritos e sons emanados de possíveis vítimas ocultadas propositalmente pela lente. Evidente que há feridas abertas de difícil cicatrização, permeando a selvageria intercalada por momentos doloridos, o que faz desta realização um registro forte, sem cair no maniqueísmo ou na mesmice de alguns filmes didáticos e pouco convenientes, com pessoas amontoadas dentro de trens rumo à morte. Um filme silencioso de imagens, diálogos e sons poderosos com força de grande expressividade. São rostos, gestos e olhares marcados pela distância intencional da câmera que levam à perplexidade até o desfecho simbólico das mortes massificadas pelo escabroso genocídio. Não há corpos em evidência, mas se acompanha os ruídos, mesclados com vozes longínquas oriundas dos campos de extermínio daquela travessia do inferno. O cineasta poupa o espectador do realismo macabro ao se posicionar por algumas regras éticas neste tema recorrente, foca em uma experiência sonora vinda dos campos de concentração, sem precisar mostrar nada. Zona de Interesse é impactante sobre todos os aspectos daquilo que ouvimos, mas ignorado pelos personagens. Um filme fabuloso neste alucinante mergulho de um passado brutal que tirou a vida de mais de seis milhões de pessoas.

Em tempo: Faltou informar nos créditos finais que Rudolf foi encontrado em maio de 1946, após ter seu paradeiro delatado pela esposa. Em 1947, ele foi julgado e enforcado em Auschwitz, perto da casa onde morou com a família. A esposa morreu dormindo aos 90 anos de idade nos Estados Unidos.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Pobres Criaturas

 

Redenção Surrealista

Surgiu um movimento cinematográfico chamado O Novo Extremismo Francês, que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão com temáticas pesadas e com uma violência explícita e sangrenta como essência para desafiar o público e fazê-lo pensar sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês que teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje. É um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco e a bizarrice são a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis; Irreversível (2002) e Clímax (2018), ambos de Gaspar Noé; Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja; A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury; Mártires (2008), de Pascal Laugier; Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista. Realizou em meio a muitas polêmicas Titane (2021), para vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e abraçar definitivamente este novo movimento, em que não há delicadezas para expor.

O cineasta grego Yorgos Lanthimos tem em sua filmografia A Favorita (2018), indicado ao Oscar, O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e O Lagosta (2015). Retorna em Pobres Criaturas, com 11 indicações ao Oscar e vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado, parece ter aderido definitivamente a este movimento com fundamentos nos estereótipos. Baseado no livro de Alasdair Gray, adaptado pelo roteirista Tony McNamara, tanto o livro como o filme são inspirados em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, publicado em 1816, famosa obra do gênero que se tornou um clássico que se passa na Era Vitoriana. Integra outros dois clássicos do gênero: Drácula, de Bram Stoker (1992) e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson. Após a clássica adaptação de 1931, estrelada por Boris Karloff e dirigida por James Whale, o personagem ficou famoso. A trama de Lanthimos acompanha uma visão surreal de emancipação feminina a partir Bella Baxter (interpretada brilhantemente por Emma Stone, que venceu o Oscar de melhor atriz em La La Land- Cantando Estações (2016), de Damien Chazelle), trazida de volta à vida, depois de ter se suicidado, tem o cérebro substituído pelo do filho que sobreviveu e que ainda não havia nascido. É difícil não associar com a lesão no crânio da protagonista em Titane, e por ser grave necessita de um implante de uma placa de titânio em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais.

O diretor mostra sem nenhum pecado ou culpa sua obra recheada de violência, sexualidade explícita corporal visceral, no qual ousa pela degradação e privação sem cerimônia com o viés autodestrutivo o experimento diabólico realizado pelo doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe), um cientista maluco, mas engenhoso e bem distante da ortodoxia. Tudo conduz para uma espécie de releitura de Frankenstein e seu fiel escudeiro, o assistente Max (Ramy Youssef). Cria com um surrealismo grotesco invenções humanas que se misturam com algumas monstruosidades como porco com galinha, cachorro com pato, até chegar no cabrito com aquele homem tenebroso que come capim, o general marido de sua amada criatura que o idolatra. O resultado tem uma visão cruel da transformação civilizatória do humano num animal. A jovem que se tornara uma prisioneira de seu Deus, como ela o chama, acaba fugindo com o arrogante e inseguro advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo está magnífico no papel) para conhecer o mundo. Viajam para Lisboa, Atenas, Paris, mas ela retorna para Londres. Os ambientes são mostrados pela fotografia singular de Robbie Ryan com o design de Shona Heath e James Price, em uma estética futurista combinada com cenários reais. Livre dos preconceitos de sua época, se coloca firmemente em seu propósito de defender a igualdade e a libertação das amarras dos preconceitos e submissão da mulher. A sexualidade entra num processo de fusão com as intenções libertárias que dominam a mente, até a fuga para dar asas às suas imaginações naquele processo de independência, tanto do seu criador como posteriormente do responsável pela evasão. Desde sua descoberta até vivenciar livremente seus desejos, com passagens exóticas pela prostituição em Paris. Primeiro para sobreviver, depois para satisfazer sua libido, mostrada sem falso moralismo ou fetiche gratuito da protagonista.

Mesmo que haja exaltação ao grotesco, há boas contribuições do realizador, que lança um olhar feminino para mostrar as transposições com armações sinuosas de Bella, desde quando aprende coisas simples como uma criança que começa a andar, falar e comer, até partir em busca de seu objetivo maior e irrenunciável: a liberdade redentora. Na primeira parte, em preto e branco, são ressaltados os momentos iniciais de uma vida recém-criada com momentos de aprendizagem da vida, que vão do aprisionamento num cenário único dos experimentos, sem ter conhecimento do mundo exterior, onde era vigiada dia e noite. Após, vem a jornada de descobrimento, quando as cores brotam vivas e marcantes como um colírio para olhos secos de ânsia para viver nos diferentes lugares e a conquista de um sonho mágico das inúmeras experiências. A criança dá lugar para a mulher e suas descobertas de um mundo cínico e revelador, como no cruzeiro singrando o mar, que nos remete para Triângulo da Tristeza (2022), do sueco Ruben Östlund, tendo as idiossincrasias de relatos fúteis na escrachada crítica ao universo requintado da aristocracia, acentuada pelas imagens, e às vezes, recheada de ironias à sociedade elitizada. Até mesmo o óbvio sendo caracterizado, causa impacto pela repulsa, mas retrata com brilho ao eliminar os privilégios que perderam, especialmente quando negam a própria consciência.

Pobres Criaturas pode ser visto e entendido como uma odisseia excêntrica que traz no bojo um humor mórbido para criticar e satirizar a sociedade patriarcal e seus aspectos repulsivos. Há representantes de várias nuances nos personagens masculinos com a autoridade ditatorial reinando como uma necessidade abjeta e mesquinha de manter o controle sobre as mulheres num mundo distópico diante das desigualdades absurdas que soam como as lançadas pelo diretor em sua narrativa, embora bizarra, mas com uma lógica de uma visão que tem méritos. Porém, mesmo que tente impor o lado cômico em algumas cenas, sua criatividade carece da força necessária para atingir sutilezas e ironias finas em que predominam as situações kafkianas inverossímeis para lidar com problemas emocionais em meio ao caos. A estética mexe com o espectador e sua comodidade na zona de conforto para nunca ficar desatento, diante da desorientação da lucidez num cenário chocante que abalroa a plateia com imagens agressivas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados. Por isto afasta uma ideia sincronizada reflexiva na essência dentro da psique humana. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula à ficção científica com tintas de desbloqueio para retratar o inconsciente humano, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia bizarra, o que é discutível.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Anatomia de Uma Queda

Amor e Morte

A cineasta e roteirista Justine Triet, de 45 anos, é considerada uma das principais expoentes do cinema francês. Autora dos longas-metragens A Batalha de Solferino (2013), Na Cama com Victória (2017) e Sibyl (2021). Está de volta com a obra mais instigante e notável da sua carreira, Anatomia de Uma Queda, no qual dividiu com Arthur Harari o dinâmico roteiro com grandes reviravoltas, que acabou vencendo nesta categoria o Globo de Ouro. Também foi vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2023, e ainda representará a França no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme, embora não tenha sido indicado oficialmente para concorrer como Melhor Filme Internacional, tendo em vista as críticas da diretora ao governo do presidente Macron. Aborda um drama familiar mesclado com suspense e passagens pelo tribunal, nada a ver com aqueles tediosos filmes norte-americanos recheados de clichês burocráticos. Com um elenco coeso e harmônico em que o grande destaque é a atriz alemã Sandra Hüller no papel da protagonista, numa atuação magistral faz o espectador mergulhar em um julgamento com percepções e interpretações contraditórias até chegar no conflito do microcosmo da família. O grande questionamento da realização é se existe realmente uma verdade absoluta ou se todos são culpados e inocentes nas rasas versões apresentadas.

A realizadora não negou nas entrevistas que se inspirou em vários filmes de tribunais, antes de efetivar o seu. Porém, até pelo título é fácil verificar que sua grande influência foi o austríaco Otto Preminger (1906-1986), um dos queridinhos do Cahiers du Cinéma, tendo deixado sua contribuição ao gênero com Anatomia de Um Crime (1959). O personagem central era um advogado mergulhado na defesa de um militar acusado de assassinar o provável amante de sua mulher. Já Anatomia de Uma Queda tem diálogos marcantes com uma eloquência e profundidade primorosa. Um digno suspense que transita do drama em um rumoroso processo judicial na possível condenação de uma pessoa que atrai para si um fardo imensurável de uma mistura de realidade com ficção, e muita imaginação para os fatos apresentados. Estas impressões justificam uma geração atual acostumada a ter uma opinião formada sobre tudo e todos nas redes sociais. Recentemente foi visto em Monster (2023), do festejado cineasta japonês Hirokasu Kore-eda, muitas verdades e mentiras na reconstituição de um cotidiano para deixar os personagens darem suas versões pelos diversos ângulos de seus pontos de vista.

O espectador fazia parte do enredo em Monster, como uma suposta testemunha dos acontecimentos reconstituídos numa estrutura de mistério que é usada para apontar uma burocracia rígida com o viés das hipocrisias latentes e destruidoras de seres humanos para sufocar e humilhar num contexto de submissão de um universo contemporâneo doentio. Já Triet também chega para mostrar essas percepções e levantar interpretações, não apenas dos personagens pelos rostos e olhares humanos como grandes instrumentos reveladores da alma humana. Mas também o julgamento da plateia na sua história bem contada de Samuel (Samuel Theis), encontrado morto na neve próximo ao chalé isolado onde morava com sua esposa Sandra (Hüller), uma escritora alemã, que depois de viver na Inglaterra, fora de seu país de origem, agora mora na França, tendo dificuldades com o idioma local. A investigação policial conclui se tratar de uma "morte suspeita": A perícia tem dúvidas para apontar um caminho correto. Teria ele tirado sua própria vida ou fora assassinado? Obviamente que sobrou de imediato a responsabilização à viúva ao ser indiciada por um suposto crime praticado. No meio do conflito quem mais sofre é o filho menor deficiente visual de 11 anos, Daniel (Milo Machado-Graner), com um raciocínio superior ao dos adultos. Por uma aparente negligência do pai que não teria buscado o garoto na escola, acabou sofrendo um sério acidente com consequência de cegueira, com a acusação e o ressentimento da esposa. Seu melhor amigo é um cão-guia que o acompanha no cotidiano, enquanto os pais brigavam até o final trágico. O dilema estabelecido ao extremo coloca a criança como única testemunha e peça chave no julgamento e a relação familiar do casal com frequentes desavenças, deixando sequelas e dúvidas que pesam com marcas profundas. Fica improvável, quase impossível, saber ao certo se ele tirou a própria vida, se caiu acidentalmente ou se foi assassinado.

O prólogo tem Sandra recebendo uma jornalista em sua casa para falar sobre sua carreira, mas logo é atrapalhada pelo som musical alto e ensurdecedor que vem do sótão, onde seu marido se dedica à reforma do chalé. A entrevista é interrompida e adiada, a protagonista dorme, até ser despertada pelo filho que passeava com seu cão e encontra o corpo do pai na neve com manchas de sangue. A diretora do filme, casada com o cineasta e roteirista Arthur Harari, por coincidência ou não, os protagonistas formam um casal de escritores, por isto têm subsídios para explorar melhor as complexidades dos personagens no relacionamento matrimonial. Ela é uma autora famosa que aproveita passagens da vida, conhecida por misturar realidade e ficção em seu trabalho literário; ele carrega o estigma da frustração por não conseguir concluir seus livros, alega falta de tempo, razão para as brigas violentas e abusivas do casal, inclusive com registros em vídeos e áudios caseiros gravados clandestinamente. A investigação e a reconstituição do fato ocorrido são lentas e graduais, inicialmente. O julgamento da acusada suspeita do assassinato tem na defesa de sua inocência o advogado, Maître Vincent Renzi (Swann Arlaud), que nutre um amor antigo pela viúva. Como provar algo sem evidências irrefutáveis? Essa é a chave da trama, onde não temos uma verdade definitiva ou resposta pronta, mas uma apresentação de diferentes panoramas.

Méritos absolutos da diretora ao utilizar com eficácia as incertezas para prender o suspiro e causar agonia no espectador na escalada de buscas da verdade com respostas quase sempre imprecisas, como se fosse um jurado colhendo as informações para decidir. A firme narrativa avança e o enredo sombrio vira um imbróglio espetacular. Sem dar pistas, pelo contrário, cada vez mais as dúvidas persistem, servindo de base ambígua da trama, na qual os indícios e interpretações subjetivas contrastam com diferentes pontos de vista, e não são verdades objetivas, necessariamente. As violências psicológicas sofridas pela protagonista vão de encontro da peça acusatória na retórica machista do promotor narcisista pelo fato de ser uma mulher independente e empoderada. Ou seja, uma reputação colocada em xeque pela exposição da vida pessoal que transforma em fragmentos uma relação. Uma obra densa num convívio aparentemente comum numa família, embora alguma ameaça sombria esteja rondando naquele lugar bucólico. O escritor relutante tenta encerrar seu livro, sente a vida mais pesada como um fardo intransponível. Uma realização que não cai na caricatura e nem nas armadilhas fáceis do maniqueísmo contumaz de alguns filmes pouco consistentes. Há tensão, amor e intensidade elaborados sem exageros, com cenas de construções de personagens fortes, mas psicologicamente fragilizados. Estão bem alicerçados por uma direção autoral singular, que segura até o epílogo um enredo opulento de realismo de um cinema perturbador na essência como reflexão admirável desta fabulosa obra, através de uma fotografia de muita beleza e fascínio até chegar no comovente desfecho desta autêntica obra-prima, que possivelmente deverá ser escolhido como o melhor filme do ano.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Folhas de Outono

 

Os Solitários

O finlandês Aki Kaurismäki é um realizador voltado para as questões sociais, tanto em seu país como as diversas mazelas na Europa. No excelente O Porto (2011), ganhador do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, possivelmente seu melhor longa-metragem, ambienta sua trama na cidade portuária Le Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, na França. A solidariedade e a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente, vindos como animais em contêineres e jogados em solo perigoso, são abordadas magnificamente neste manifesto crítico de um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo. Ainda que tenha na mentira do seu personagem principal a forma ilícita para salvar a pele de um garoto, protegendo-o da sanha irascível de uma política de imigração abominável. Também é dele O Homem Sem Passado (2001), no qual um homem após chegar a Helsinque de trem é surrado tão brutalmente que perde a memória. Vive como pode, no submundo da cidade, onde encontrará pessoas como ele, deserdadas da sociedade, que serão suas companheiras e o ajudarão a reajustar sua existência. Em O Outro Lado da Esperança (2017), narra um fugitivo da guerra na Síria que busca asilo. Depois de percorrer vários países, solicita permissão de estadia na Finlândia. Enquanto espera pela resposta, busca pela irmã, desaparecida, obtém ajuda de um pequeno comerciante que dá emprego em seu restaurante.

O veterano cineasta tem em sua filmografia a instigante A Trilogia do Proletariado, mostra a classe trabalhadora protagonizada por mulheres e homens marginalizados pela falta ou condições precárias de emprego. Um ensaio que tem como objetivo verificar como a desolação humana traz em suas narrativas retratos atuais de uma sociedade em decadência, com o sistema capitalista vigente. Sombras no Paraíso (1986) aborda uma caixa de supermercado e um motorista do caminhão de lixo, que tentam nas poucas horas de descanso divertimento em bares escutando música; Ariel (1988) conduz para a história de um homem, que nos minutos iniciais do filme perde seu pai por suicídio. Decide sair da pequena cidade em que vivia e ir para a capital ganhar a vida. Nesse processo passa por momentos complexos em que a brutalidade e o individualismo surgem como os novos pilares de sua jornada; A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos (1990) retrata uma supervisora de embalagens numa linha de produção em uma fábrica, mora com sua mãe e seu padrasto. Vive uma relação bastante caótica e tão exploradora quanto de seu emprego. Agora segue com a saga proletária com Folhas de Outono, coproduzido com a Alemanha, numa quadrilogia que reabre a temática do diretor, que também assina o roteiro, com suas marcas autorais interessantes.

Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado, indicado para representar seu país na 96ª. edição do Oscar, e apontado pela Revista Time como o melhor filme de 2023, esta comédia romântica com tons de dramaticidade acompanha a história de Ansa (Alma Pöysti), uma estoquista de supermercado, e Holappa (Jussi Vatanen), um operário alcoólatra da construção civil que manuseia o compressor de ar, tem como seu único amigo oriundo do último emprego, Huotaria (Janne Hyytiäinen). A trama é ambientada na periferia de Helsinque, quando a Rússia continua bombardeando a Ucrânia e a personagem feminina ouve por um antigo rádio as notícias trágicas, mas cansa dos desprazeres do cotidiano e troca para outra emissora musical que traz mais leveza ao momento delicado mundial. Ela mora sozinha num pequeno apartamento, enquanto ele divide as acomodações precárias com os colegas num contêiner. O destino mostra os dois perdendo os empregos, quase simultaneamente. Um por colocar em sua bolsa um produto vencido da prateleira que era para ser descartado no lixo, metaforicamente alguém se resume àquela parte do resto a ser ignorado e jogado fora; o outro por beber em pleno expediente de trabalho e sofrer um acidente, o que faz o empregador despedi-lo por justa causa, embora os Equipamentos de Proteção Individual essenciais ao trabalhado seguro estivessem vencidos e inapropriados para uso na empresa. Completamente desconhecidos, os caminhos dos dois se cruzam acidentalmente numa noite em um pub de karaokê com frequentadores solitários. Ouvem músicas populares com títulos desde um cancioneiro pop finlandês até a apresentação da girl band Maustetytöt, cuja canção "Nascida na tristeza e vestida de decepção” resume o estado de espírito decorrente do capitalismo tardio.

Folhas de Outono é uma agradável obra marcada por diálogos, embora seja silenciosa e repleta de angústias daqueles seres solitários trabalhadores à deriva de uma sociedade de desafios para o futuro. Por não ser descartável, o prazo de validade do casal ainda não expirou, por isto precisa de poesia e direito ao amor na sua plenitude. O cineasta aponta para episódios sombrios através de personagens tragicômicos. Flutua com boa ternura da comédia agridoce romântica para pequenas tragédias pessoais, como o atropelamento que adia ainda mais essa união. A construção de um painel convincente comove e fisga o espectador para os dilemas dos dois desajustados socialmente, que querem e desejam amar. A procura do personagem por auxílio nos Alcoólicos Anônimos é edificante e mostra o quanto o rapaz luta para se afastar do vício destroçante, mas para isto é fundamental o voto de confiança da pessoa amada. Admirável as cenas sequenciais envolvendo a ida e o ponto de encontro dos dois no cinema como resgate e bálsamo para continuar vivendo com dignidade. Assistem um filme contrário ao que ele imaginou, por não ser nada romântico, como Os Mortos Não Morrem (2019), de Jim Jarmusch, com Bill Murray e Adam Driver, comparado por alguns distraídos com obras notáveis de Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Ironicamente ela diz que nunca tinha rido tanto.

Eis um retrato melancólico dessa realidade difícil na qual estão inseridos personagens que vagueiam desanimados como zumbis num cenário adverso, mas com a esperança da essência do amor. Automaticamente atraídos um pelo outro, eles decidem sair em um encontro e, talvez, começar um relacionamento improvável que pode ser a solução para afastar o tédio de uma solidão existencial aniquiladora dos dois. Por culpa da desatenção de um deles, acabam se afastando. São encontros e desencontros marcados por uma melancolia avassaladora, mas que ainda acreditam na felicidade, embora haja uma atmosfera carregada de certa forma pelo pessimismo. Para alguns críticos, uma homenagem ao gênero romântico criado por Charles Chaplin em Luzes da Cidade (1931) e Luzes da Ribalta (1952), protagonizados pelo eterno personagem vagabundo e Calvero, respectivamente. A história é marcada por elipses que impulsionam o enredo, ou o minimalismo nas expressões, gestos e as belas imagens apanhadas dos personagens, como no desabafo de Holappa: "Estou deprimido porque bebo muito". Questionado pelo amigo "e por que você bebe muito?" Responde "porque estou deprimido". O diretor reforça seu estilo que combina questões sociais e mundiais como o desemprego e a guerra nos países vizinhos, através de um humor sutil numa estética e questionamentos bem peculiares.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O Melhor Está Por Vir

 

Tributo a Fellini

Nanni Moretti é um dos mais importantes e competentes diretores da Itália. Flutua entre os dramas familiares, religiosos, políticos e sociais como O Crocodilo (2006), quando abordou o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão; questionou a escolha do papa em Habemus Papam (2011) com boa dose de humor e ironia fina ao discorrer sobre a eleição do Sumo Pontífice realizada entre os cardeais na escolha do vacilante Melville. Já fizera antes em A Missa Acabou (1985) ao satirizar a igreja através de um complicado padre na periferia de Roma. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes com Mia Madre (2015), num retorno às origens de abordagens profundas sobre a morte e a forte sensação da perda pelas lembranças pretéritas, bem como o que poderia ter feito e não fez para quem partiu, quase um remorso instintivo dos que ficaram. Uma análise sincera e despojada das provocações que remanesceram da existência e sua complexidade, como fez no drama O Quarto do Filho (2001), possivelmente sua obra maior, sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes, na história do psicanalista residente em Ancona que tem dois filhos, até que uma tragédia o transtorna completamente, por deixar de acompanhar o filho à praia, e que acabou morrendo afogado. Gosta de usar situações que vivenciou para incrementar suas realizações de cunho pessoal, assim foi em Caro Diário (1993), Aprile (1998) e Mia Madre, drama este que o faz relembrar a morte de sua própria mãe durante as filmagens de Habemus Papam.

Moretti voltou em grande estilo em sua realização anterior, Tre Piani (2021), ao retratar três famílias que vivem no mesmo condomínio de classe média alta, e suas vidas acabam ardilosamente se entrelaçando. Embora pudesse pelas circunstâncias conduzir a trama para um filme menor com demagogias baratas e lacrimejantes, mas habilmente foge das armadilhas piegas e faz uma obra espetacular com cenas marcantes, como dos casais dançando na rua. Agora faz uma justa e merecida homenagem ao mestre conterrâneo Federico Fellini ao realizar um remake de Oito e Meio (1963). Além de assinar o disperso roteiro em parceria com Francesca Marciano, Federica Pontremoli e Valia Santella, também atua como protagonista na comédia de costumes italiana O Melhor Está Por Vir, coproduzida com a França. O longa acompanha o ultrapassado cineasta Giovanni (Moretti), que tenta terminar um filme de época, ambientado em Roma, em 1956, sobre os comunistas italianos, mas enfrenta uma série de obstáculos. Está sempre no limite de suas forças com o contumaz estresse para alcançar seu objetivo de acreditar em algo melhor para sua carreira e vida pessoal conturbada com a esposa Paola (Margherita Buy), uma produtora de cinema que ao mesmo tempo divide as atenções com outra produção para um jovem promissor diretor. Ou seja, dois filmes dentro de um terceiro principal..

Embora faça uma reflexão amargurada com algum humor irônico, o realizador tenta nesta obra retratar uma concepção sobre a arte com o viés da abordagem das ideologias que cercam a sociedade contemporânea, como o comunismo e suas linhas da praticidade e as inconveniências políticas históricas. As diversas contradições são apontadas pelos seus erros, como os comunistas italianos oriundos da extinta União Soviética. O personagem central assume uma postura de desvairado ao encarnar as memórias e os incômodos que o atormentam. Diante das recorrentes provocações rasteiras de uma esquerda em choque com o mercado cinematográfico e os rumos com os novos talentos que surgem e a recepção de um novo público de espectadores. Estão presentes os empecilhos profissionais e pessoais para concluir seu novo filme de esperança. Acredita sinceramente que deve levar para a telona a história do Partido Comunista da Itália, bem como ter perdido a grande oportunidade de ter rompido com os tiranos russos para obter a verdadeira liberdade e o caminho da independência. Porém, ninguém mais se lembra desses acontecimentos, tendo em vista que o mundo mudou e a maneira de fazer uma película sobre aquela época também soçobrou. Pensa que está fazendo uma obra política, mas a atriz entende que ele está realizando é um filme de amor, possivelmente ela esteja com a razão.

O longa de Moretti peca por se tornar chato e repetitivo. Ele que sempre estrelou seus filmes, desta vez exagerou, ao usar e abusar do protagonismo histriônico que leva o espectador à exaustão. Nem como temática principal, sequer como construção de personagens, o filme não consegue decolar, tornando-se enfadonho e arrastado até o desfecho ufanista. A história deveria ter um frescor próprio pela tentativa de ser atual neste recorte específico na representação de um artista maniático no decorrer de seu processo de criação. Há uma tentativa válida de explicar as cenas musicais, deslocadas e atravessadas no enredo. Comportamento este que não está na criação do personagem, mas nas incursões dos rumos da história maçante, onde o circo húngaro poderia ter um aproveitamento melhor, mesmo que haja uma tentativa pouco convincente de colocá-lo no enredo através de uma situação de mudanças e conflitos na Revolução da Hungria com a ocupação soviética. Os rituais familiares com a maneira de expressar opiniões, afastam a esposa, que não quer mais continuar com a relação pelos episódios de picuinhas do marido em crise profissional, de ideias e vida amorosa dividida pelos conflitos do cotidiano. Já a filha prefere namorar em segredo um diplomata idoso polonês.

A comédia apresenta, apesar de ter dificuldade de aceitar que as coisas andam rápido, o personagem central com uma tendência de abraçar as novidades e mudar seus caminhos e o destino que o cercam quando observa os novos rumos. Apesar de ser uma contradição de comportamento e de ideais que nem ele acredita, mas que percebe e reconhece os novos horizontes existenciais batendo à porta. Nas variações da visão artística estão presentes as concessões que precisam ser feitas para que haja o financiamento e a distribuição, quando Giovanni fica inconformado numa reunião com a Netflix ao buscar financiamento para seu projeto de filme. Os executivos asseveram que "nossos conteúdos são vistos em 190 países, 190 países, 190 países”, e que sua produção não serve para o streaming. Mas há uma esperança que vem dos cofres da Ásia, após fracassar com a França. Na crise criativa proposta e nas escolhas de filmes dentro de um outro, a comédia se refere diretamente a Oito e Meio. Também há citações aos longas Caçada Humana (1966), de Arthur Penn e Um Grito de Revolta (1972), dos Irmãos Taviani, nas relações amorosas e clichês abundantes. Apesar das boas intenções de Moretti para uma reflexão sobre esquecer ideias retrógadas e dar alvíssaras para um futuro melhor, radiante e politicamente correto, O Melhor Está Por Vir não correspondeu à expectativa. Um mosaico construído por uma gama enorme de personagens em ciclos de amor, política, frustrações, arrependimentos, renovações e desajustes pelas decepções familiares e profissionais. Eis um tributo a Fellini que merecia ser mais meritório, mas que ficou devendo.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Maestro

 

Cenas de um Casamento

No apagar das luzes de 2023, Maestro entrou em cartaz na plataforma Netflix, o segundo longa-metragem do ator galã de 48 anos e agora diretor Bradley Cooper, que havia estreado por trás das câmeras com relativo sucesso em Nasce Uma Estrela (2018), estrelado por Lady Gaga. Uma cinebiografia de Leonard Bernstein interpretado por Cooper que usa um postiço nariz falso para retratar “Lenny”, como era conhecido o regente, compositor e pianista por seus amigos ao focar sua personalidade e suas paixões na vida real. Responsável pela composição da trilha sonora de filmes famosos como Um Dia em Nova Iorque (1949), de Gene Kelly e Stanley Donen, Sindicato de Ladrões (1954), de Elia Kazan, e Amor, Sublime Amor (1961), de Robert Wise e Jerome Robbins. Natural de Massachusetts, nos Estados Unidos, condutor principal da Orquestra Filarmônica de Nova Iorque por 18 anos. Foi o primeiro maestro norte-americano a reger orquestras europeias, como a Filarmônica de Viena com as sinfonias de Gustav Mahler. O diretor e o corroteirista Josh Singer destacaram a Segunda Sinfonia de Mahler, denominada Ressurreição. Compôs obras como Missa, a pedido de Jacqueline Kennedy para a inauguração do Kennedy Center, trecho que está presente no filme. Notabilizou-se como um condutor que não usa apenas os braços e a batuta para controlar o ritmo, a direção e o tom geral de uma orquestra.

Deve ser ressaltado que era para ser uma cinebiografia deste consagrado músico em orquestras que tocaram obras de Mahler, Beethoven, Wagner e Strauss, mas virou um melodrama ao abordar as complexas relações com cenas inusitadas do casamento com a atriz costarriquenha de TV e teatro Felicia Montealegre (Carey Mulligan), na mistura de suas maiores paixões: a arte pela música, a esposa e os flertes com alguns homens. O casal se conheceu em uma festa, em 1946, passando pelo primeiro noivado que foi rompido, e reiniciado para chegar ao matrimônio com vinte e cinco anos de duração, tendo três filhos da união. Um filme oposto a outras cinebiografias convencionais, por ser ousada e estranha. Diferente do empolgante documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; nada a ver com a cinebiografia Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; nem próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações similares sobre grandes estrelas.

Em Ennio, O Maestro havia intensidade, grandiloquência, sublimação e um formato espetacular, que vai muito além de enumerar os sucessos na eficiente montagem que une vários pontos de uma trajetória em que a música é o foco primordial da história contada. Já em Maestro, a música e a história da carreira de Bernstein com todo seu magnetismo, exuberância e brilho estão em segundo plano. Na realidade, o filme está interessado nos conflitos por trás do gênio, relatando seu relacionamento atribulado com Felicia. Apresenta uma análise de um personagem forte e complexo como pretende ser, em uma discutível visão sobre as contradições de um artista entre a vida pessoal e a profissional. Mira completamente na vida dupla do cinebiografado por trás da figura icônica e suas contradições, num duvidoso recorte voltado especialmente para seu casamento com as constantes traições. Com a música de fundo, a trama segue o relacionamento com a esposa como o objetivo principal. Desinteressado em esmiuçar a biografia do regente para quem não o conhece, o que pode deixar muitos espectadores sem norte. Mais preocupado em mostrar os affaires homossexuais pela infidelidade, quando chega a abandoná-la, mas volta para casa apenas quando fica sabendo do diagnóstico de câncer pulmonar agressivo da mulher. A sexualidade e a indecisão do regente renderam uma carta da companheira frustrada: “Você é homossexual, nunca mudará – você não admite a possibilidade de uma vida dupla, mas se a sua paz de espírito, a sua saúde e todo o seu sistema nervoso dependem de um determinado padrão sexual, o que você pode fazer?”

O prisma do enredo é construído sobre um casal aparentemente feliz e perfeito que acabou se separando devido ao constrangimento insuportável da mulher e o medo do marido em assumir a vida dupla. A preocupação do diretor é clara em explorar os desatinos complexos dos sentimentos de uma pessoa indecisa na relação amorosa ao invés de contar sua trajetória artística inquestionável da grande estrela mundial. Até o desfecho, o compositor se mostra inconstante, embora mencione a mulher como seu grande amor, ainda que os percalços, contraditoriamente, estejam presentes no longo relacionamento. Ela diz que sempre procurou um substituto para a figura paterna, enquanto ele revela seu amargor pela violência do pai, revelam angústias e fragilidades presentes, com o passado influindo no comportamento dos dois. O longa inicia com a citação do próprio maestro que não quer trazer respostas, mas simplesmente provocar perguntas. O espectador que esperava uma realização dedicada ao processo criativo e informativo, possivelmente irá se decepcionar.

Eis uma narrativa com minguados questionamentos do cinema e sua fusão com a música, sendo um filme pouco objetivo. Embora nos caminhos percorridos pelo casal exista alguma beleza com certa tristeza, quando o microcosmo familiar se reúne para uma confraternização para celebrar a existência. A cena ambientada dos dois participando de uma outrora sequência em preto e branco tem o condão de fantasiar uma paixão sob o embalo musical. Também a morte sendo mostrada através do pai abraçando a filha para interromper a dor. Outro significativo momento é o plano do carinho derradeiro aos três filhos com ausência de palavras, apenas a imagem que revela a perda. Cooper faz uma abordagem atípica e completamente fora do convencional para cinebiografias musicais. Por isto, seu filme Maestro, com toda a abundância dos complexos relacionamentos pessoais e focos sexuais reiterados, mesmo deixando de lado muitas informações sobre a vida profissional do personagem central, tem tudo para ser um grande premiado e o queridinho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no Oscar de 2024. Ainda que haja irregularidades e ausência de profundidade, bem como um distanciamento do artista com a essência da música e o descaso voluntário do cineasta com sua obra na criação e fundamentos, com cenas de um casamento fluindo à exaustão, na qual o genial Ingmar Bergman foi mestre em mergulhar nas profundezas da alma, há bons argumentos para os defensores deste melodrama.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2023)

 

Os 10 Mais e as 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão publicando suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2023. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda as 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese (foto acima);

02. Memória, de Apichatpong Weerasethakul;

03. Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho;

04. Afire, de Chistian Petzold;

05. Monster, de Hirokasu Kor-eda;

06. Eo, de Jerzy Skolimoswki;

07. Triângulo da Tristeza, de Ruben Öslund;

08.Meu Nome é Gal, de Lô Politi e Dabda Ferreira;

09. A Noite do Dia 12, de Dominick Moll;

10. Sem Ursos, de Jafar Panahi.

Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Elis & Tom, de Roberto de Oliveira e Tom Job Azulay;

- Os Fabelmans, de Steven Spielberg;

- Close, de Lukas Dhont;

- O Crime é Meu, de François Ozon;

- Holy Spider, de Ali Abbasi.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Puan

Embates Filosóficos

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, Puan, apelido pelo qual é tratada uma instituição universitária que fica perto da estação do metrô em Buenos Aires, que empresta seu nome. Esta comédia dramática com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz uma obra interessante, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e amizades. Apesar do emprego de um humor pastelão com excessivas cenas escatológicas na parte inicial, mostra-se atual e esclarecedora do meio para o fim, pela valorização do cotidiano de alguns personagens em conflito, tanto pessoal como profissional. A dupla de cineastas María Alché, do longa de estreia Família Submersa (2018) - é a mesma atriz revelada por Lucrecia Martel em A Menina Santa (2004)- e Benjamín Naishtat, diretor dos admiráveis Bem Perto de Buenos Aires (2014) e Vermelho Sol (2018). Foi laureado com dois prêmios no Festival de San Sebastián, na Espanha: Melhor Ator para Marcelo Subiotto e Melhor Roteiro.

Já se tornaram frequentes as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrecia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008); e Mariano Cohn e Gastón Duprat com os ótimos O Homem ao Lado (2008) e O Cidadão Ilustre (2016), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo. Muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise social econômica que ainda perdura. Também se impôs no mercado, entre tantos outros fatores, pela presença do icônico ator Ricardo Darín.

A trama retrata a força cultural do povo argentino diante da crise política e sócio-econômica ao focar a árdua trajetória de um professor de filosofia, aparentemente já ultrapassado. Após a morte por mal súbito do mentor do protagonista, o docente Marcelo Pena (Marcelo Subiotto- em interpretação pouco inspirada) está pronto para assumir a cadeira de professor titular de Filosofia da Universidade de Buenos Aires (UBA). É um homem pouco interessante no dia a dia, com atrapalhações em seu cotidiano com a crise da meia-idade iminente. Embora seja aplicado, demonstra algumas limitações, ainda que se ache apto para a escolha no cargo, seus esforços de anos de labuta podem ter sido em vão. Tudo muda com o retorno inesperado do ex-colega, de Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia- convincente na atuação). O oponente é mais atraente, carismático, dotado de oratória brilhante, leciona na Alemanha, dá cursos em Nova Iorque e namora uma famosa estrela do cinema. Quer a vaga e acaba afetando os planos de Pena, que utiliza exemplos do cotidiano de seus alunos para ilustrar as complexas teorias de Thomas Hobbes, Heidegger e, principalmente, o pensamento do filósofo suíço defensor do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau: “o ser humano é melhor quando está mais próximo da natureza”. A rivalidade entre os dois mestres de filosofia se estabelece para concorrer na substituição do célebre professor titular que morreu. Há as ambições reais que sempre foi e continuará sendo o caminho para discussões e encenações desprovidas de uma boa lucidez.

A comédia é apresentada de forma intercalada por capítulos que se encerram com a câmera com um tempero agridoce na rotina dos dias de ebulição em Buenos Aires que se revelam fragmentos de situações de um caos social com o fechamento prematuro da faculdade por corte de verbas, numa situação bem típica de governantes divorciados do ensino e da educação, que remete para a premonição do governo recém- empossado de Javier Milei. A dupla de realizadores aborda com uma dose de cinismo mesclado de humor escrachado os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado intelectual do exterior, que lembra o retorno do escritor no drama O Cidadão Ilustre, visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Sujarchuk é um galã vaidoso e suscetível às bajulações que deu asas para sua candidatura ao cargo, faz um discurso exibicionista em alemão. Por tudo isto é visto como um oportunista por alguns, mas para outros como um elemento de salvação para um momento de efervescência política do contexto social na qual está inserida.

A inflação galopante e os cortes nos gastos públicos fazem parte do dia a dia da população, que impulsiona os conflitos da história, exibindo as manifestações dos estudantes que tomam as ruas portenhas diariamente e a luta para manter viva a universidade, símbolo poderoso da realidade pelas distorções apresentadas. Puan aponta as contradições e constatações num cenário construído pela mediocridade e ausência de inteligência, como da fútil idosa milionária que paga bem por aulas de filosofia, mas dorme quando está sendo iniciada numa explanação sobre O Estrangeiro, de Albert Camus. Só acorda com o barulho ensurdecedor do aspirador de pó acionado pela empregada. A mesma personagem que simboliza um cenário de decadência, desprovido de interesse maior, contrata um mágico para seu aniversário que acaba rompendo o contrato, mas logo é substituído por um pensador grego, transformado numa figura caricata. Os defeitos e as virtudes oriundos da pretensão dos donos da palavra final estão embutidos na citação no epílogo da última parte de Fédon, um dos Diálogos de Platão, onde é narrada a morte de Sócrates. Disseca sobre a maturidade que poderia chamar-se “da imortalidade da alma”, ou “das ideias”, ou “dos contrários”. Eis um dos grandes momentos deste instigante filme, quando no encerramento de um ciclo e de uma vida, uma pergunta existencial fica sem resposta, porque nada é definitivo e absoluto.