quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2015)















Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2015, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Winter Sleep (foto acima), de Nuri Bilge Ceylan;

02. Retorno à Ítaca, de Laurent Cantet;

03. Phoenix, de Christian Petzold;

04. A Lição, de Kristina Grozeva e Petar Valchanov;

05. Mia Madre, de Nanni Moretti;

06. Tristeza e Alegria, de Nils Malmros;

07.Mapas para as Estrelas, de David Cronenberg;

08. Sicário- Terra de Ninguém, de Denis Villeneuve;

09. A Pele de Vênus, de Roman Polanski;

10. Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Deephan- O Refúgio, de Jacques Audiard;
- Segunda Chance, de Susanne Bier;
- Ida, de Pawel Pawlikowski;
- Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert;
- Whiplash- Em Busca da Perfeição, de Damien Chazelle.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Eu Sou Ingrid Bergman
















Uma Diva Reverenciada

Um filme sobre a vida da bela e talentosa Ingrid Bergman, uma das mais premiadas atrizes da história do cinema, três vezes vencedora e outras oito indicações ao Oscar. Eu Sou Ingrid Bergman é dirigido pelo conterrâneo sueco Stig Björkman, que tem em sua filmografia Imagens do Playground (2009) e Mas o Cinema é Minha Amante (2010). Realizado como documentário intimista obteve um resultado além da expectativa, numa narrativa sensível, poética e reveladora que passeia pela conturbada trajetória da personagem-título, através de fatos verídicos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Lança um olhar breve de lembranças do passado, sem deixar de mostrar seus últimos dias já enferma do câncer, mas querendo atuar e relembrar os episódios marcantes de sua carreira, como na cena do depoimento orgulhoso do único filho homem.

O realizador utiliza materiais pessoais como diários íntimos da biografada, cartas enviadas às suas amigas e vídeos amadores. Traça com isenção todo o percurso pessoal e profissional da célebre atriz, incluindo seus diversos casamentos, entre eles com o cineasta Roberto Rossellini, quando se ofereceu para trabalhar com ele resultando numa grande paixão e três filhos, sendo a mais famosa Isabela Rossellini. A relação fria e controvertida com os filhos, o escândalo de adultério do primeiro marido, logo que veio de Estocolmo para os Estados Unidos a convite de David O. Selznik para fazer carreira em Hollywood. Suas andanças pela França, Inglaterra e Itália, num relato sobre os principais filmes como Intermezzo: Uma História de Amor (1939), Casablanca (1942), À Meia Luz (1944) -que rendeu o primeiro Oscar-, Quando Fala O Coração (1946) e Joana D’Arc (1948). Ficou afastada por muitos anos, retornou à indústria cinematográfica americana e abocanhou outra estatueta com Anastácia, A Princesa Esquecida (1956).

A narrativa tem depoimentos dos filhos que não demonstram amarguras, a começar pela filha mais velha, Pia, seguindo pelos outros irmãos; passa por depoimentos de atrizes consagradas como Liv Ullmann e Sigourney Weaver; ocupa espaços como se a própria protagonista efetuasse a leitura dos textos com boa dose de emoção, num tom ficcional com muito realismo das encenações bem representadas pela voz da personagem-narradora (Alicia Vikander), ajudado pelas imagens antigas em 8 mm, num tom agradável como de um sonho transcendental. Björkman tem um olhar maduro e equidistante para mostrar os fatos numa cronologia sem ser didática, mas que imprime boa velocidade num clímax certeiro sobre a vida de Ingrid Bergman (1915-1982), ao perder a mãe com 3 anos, sofre o impacto da morte do pai com14 anos, por quem nutria um grande amor e a herança da paixão pelo cinema. A trilha sonora é adequada ao clima nostálgico, cria-se uma atmosfera de reminiscências para as passagens da grande ascensão, alguns tropeços pelos caminhos como o boicote pelos estúdios, em que beirou o abandono da carreira, até chegar ao epílogo da existência.

Eu Sou Ingrid Bergman retrata as passagens que se sucedem, principalmente a determinação para lutar contra o conservadorismo de uma época para uma mulher que queria ser livre, imprimindo muita coragem para enfrentar as rígidas regras morais dos anos 1940 e 1950. Ressalte-se que não há pelo diretor o intuito de colocar julgamentos morais às atitudes da estrela. Transparece um relato mais afinado com os ideais feministas na defesa da mulher de espírito libertário, sem amarras, poucas raízes de vínculos afetivos maternais, na qual definia-se como “um pássaro migratório”, dona da escolha de seu destino, afirmava que: “não se arrependia de nada do que fizera, mas pelo que não fez”. Um belo tributo para uma atriz que estava bem à frente de seu tempo. Mas ao filmar os quatro filhos sem mágoas ou ressentimentos do passado da mãe, o cineasta retrata a fantasia decorrente da beleza de uma celebridade de espírito criativo e intenso, nesta reverência familiar para uma diva dedicada exclusivamente ao cinema como elementos de amor e paixão pela vida, e, pelo que fez, que se fundem como uma simbiose. Um filme sobre a trajetória de viver marcada por ensinamentos reflexivos e existenciais nada convencionais num passeio pela história do cinema e seu fascínio, como uma aula acoplada para os apreciadores mais devotados.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Mia Madre


A Dolorida Perda

O festejado Nanni Moretti flutua entre os dramas familiares e filmes políticos e sociais como O Crocodilo (2006), quando sobrou para o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão pelas críticas do diretor; questionou a escolha do papa em Habemus Papam (2011) com boa dose de humor e ironia fina, ao abordar a eleição do Sumo Pontífice realizada entre os cardeais, sendo escolhido o vacilante Melville, como já o fizera em A Missa Acabou (1985), ao satirizar a igreja através de um complicado padre na periferia de Roma. Mas sua obra maior talvez seja o premiado com a Palma de Ouro em Cannes, O Quarto do Filho (2001), sobre o drama de um psicanalista que reside e trabalha na cidade de Ancona, tem dois filhos, até que uma tragédia o transtorna completamente, ao deixar de acompanhar o filho à praia e nesse passeio o rapaz morre afogado.

Ganhador do Prêmio do Júri deste ano em Cannes, Mia Madre é o retorno às origens de abordagens profundas pela reflexão sobre a morte e a forte sensação da perda pelas lembranças do passado, bem como o que poderia ter feito e não fez para quem partiu, quase um remorso instintivo dos que ficaram, numa análise sincera e despojada das picuinhas que remanesceram da existência e sua complexidade, como no drama O Quarto do Filho. Moretti gosta de usar situações que vivenciou para incrementar suas realizações de cunho pessoal, assim fora em Caro Diário (1993) e Aprile (1998), agora retoma com o drama pelo qual passou durante as filmagens de Habemus Papan, quando faleceu sua mãe, também professora de latim, tal qual a personagem em questão deste seu último longa.

O cineasta andava mais focado nos filmes sobre as reivindicações sociais e a crítica corrosiva da política. Agora conseguiu com méritos de sobra abordar os dois temas prediletos de sua filmografia em Mia Madre. Margherita (Margherita Buy) é o alter ego admitido pelo próprio Moretti, uma diretora de cinema angustiada e em conflito com o trabalho paralelo que precisa lidar, diante de várias circunstâncias do cotidiano: recém saiu de um namoro que não deu certo com um colega, vem de uma separação em que a filha adolescente foi morar com pai e, ainda, tem a moléstia grave da mãe, Ada (Giulia Lazzarini), internada no hospital com o diagnóstico de irreversibilidade da doença. Mas a vida não pode parar, apesar dos infortúnios, inicia as filmagens de seu novo longa-metragem que mostra as reivindicações pela greve de trabalhadores numa fábrica, que será o personagem central pelo astro internacional Barry Hughins (John Turturro- perfeito na construção histriônica), um ator arrogante, narcisista, que não decora os textos e se acha o máximo como galã, mas que deixa fluir um humor leve para contrastar com a dor da trama principal.

Margherita pode contar apenas com o irmão, Giovanni (Moretti), um insatisfeito engenheiro demissionário prestes a largar tudo e se dedicar mais nos últimos dias que restam na companhia da mãe, pois ele é uma extensão da irmã sofrida e necessita passar uma certa tranquilidade para um momento tão delicado como a perda irreversível. Uma narrativa dolorida com flashbacks da relação mãe e filha, como a reveladora e chocante cena do automóvel de Ada sendo destruído contra a parede. Alterna com episódios do hospital e a tumultuada e tensa filmagem realizada pela protagonista que terá que enfrentar o luto, a solidão e as frustrações como mulher, também encontrados no ótimo documentário Elena (2012), da diretora mineira Petra Costa, num relato lúcido sobre a desilusão do fracasso diante da derrota que fez uma vítima precocemente.

Moretti passa a sutileza e a sensibilidade à flor da pele como ingredientes delicados e demolidores no desfecho. Um retrato com realismo sem metáforas para tentar entender a subtração marcante de um familiar próximo, no caso a mãe que definha enquanto o casal de irmãos dá o apoio e resgata momentos que ficarão registrados para sempre no pós-vida. Dilacera e mergulha no momento mágico da finitude em que ninguém está preparado para uma circunstância universal do ser humano e seus descendentes que permanecerão como um sopro de esperança e vida de continuidade e renascimento. O diretor dá o recado ao mostrar a neta se interessando pelo estudo do latim como herança infinita de valor deixada pela avó.

Um drama com tintas autobiográficas que tem a morte como tema principal, em que a perda traz reflexos sombrios e devastadores para os enlutados. Mia Madre é um filme em que as imagens pelo olhar da protagonista suplantam os ótimos e indispensáveis diálogos. Reflete toda a tristeza e a melancolia do epílogo da vida pelos olhos doloridos da atriz Margherita Buy, de ótima atuação num papel difícil, mas irretocável no todo, passa e divide suas lágrimas para o espectador atento. Impactante pela complexidade como foi Amor (2012), de Michael Haneke, e nos remete para subtemas como solidão, doença e velhice explorados com a genialidade de Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957) e na incomparável e inigualável obra-prima Gritos e Sussurros (1972); ou ainda em Viver (1952), de Akira Kurosawa. Mas a narrativa de Moretti tem o naturalismo exposto como vísceras pela decadência humana intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta, tem na forma e na estética criativa os traços singulares da marca registrada do cultuado cineasta italiano nesta reflexão estupenda.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O Clã


Família Macabra

Pablo Trapero está de volta com mais um típico filme perturbador em seu qualificado currículo cinematográfico. O Clã é o triste e vergonhoso relato de uma das gangues mais conhecidas da Argentina, sob o comando da família Puccio. Estamos diante de uma narrativa vigorosa sobre a relação e o vínculo dos membros familiares em uma casa no bairro de classe média alta San Isidro, em Buenos Aires, na década de 1980, pelo sequestro de várias pessoas com algum envolvimento político contrário ao regime militar, ou por simplesmente estar numa situação mais confortável financeiramente, desfrutando de uma vida com algum luxo e causando inveja para os falsos defensores da pátria derrotada na Guerra das Malvinas, sob o comando do general Leopoldo Galtieri, ex-presidente militar do país vizinho.

O longa rendeu ao seu realizador o Leão de Prata de melhor direção no Festival de Veneza deste ano; também foi escolhido para representar seu país no Oscar de 2016, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Foi coproduzido com a Espanha pela produtora dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar. Alcançou a expressiva marca de 1,5 milhão de espectadores nos dez primeiros dias nas bilheterias argentinas, ficou atrás apenas de Relatos Selvagens (2014). Com um roteiro bem enxuto, o cineasta desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros, principalmente das duas filhas e do irmão caçula, pouco se lixando para o que está acontecendo no mesmo teto em que residem aparentemente em forma de harmonia. Arquímedes Puccio (Guillermo Francella- excelente interpretação, ao demonstrar toda a frieza do protagonista) é o pai e mentor da execução do plano diabólico e com formação de contador. Para torturar, sequestrar e matar, tinha o auxílio direto do filho Alejandro (Peter Lanzani), o craque do Pumas, base da seleção argentina de rúgbi, era uma espécie de herói nacional. Ninguém desconfiava daquele jovem meigo, pacato, com aparência de bom cidadão, fiel e apaixonado pela namorada, mas que se submetia às atrocidades paternais, atraindo inclusive um amigo para o cativeiro sinistro.

Baseado em fatos reais para contar uma macabra história de um episódio que eclodiu na imprensa em 1985, sobre o desbaratamento com o posterior julgamento de todos os membros de uma facção tenebrosa que assombrou os argentinos, durante a ascensão de Raúl Alfonsín à presidência, ao fazer o período de transição de 1983 a 1989, o bando de delinquentes perdeu força na democracia. Já o longa é uma mescla ficcional de horror com subserviência, tendo como ingredientes a repulsa, a obediência, o locupletamento de dinheiro fácil em conluio com o sistema de um regime de exceção. Não poderia faltar o molho condimentado das orações à mesa nas refeições comandadas pelo gélido pai, sob o olhar de aprovação da esposa, Epifânia (Lili Popovivh) que cozinhava para as vítimas, tendo mais tarde na companhia o retorno do exterior de outro filho, Maguila (Gastón Cocchiarare) que engrossará o rol dos perversos assassinos de pessoas inocentes. O grupo tinha o aval de três amigos do poder militar que começava fraquejar com o duro golpe da derrocada nas Malvinas.

O diretor tem em sua filmografia realizações de abordagens de situações cotidianas e sociais de uma maneira crua e fria, sem grandes alegorias e metáforas. Assim foi com o excelente Leonera (2008), talvez seu melhor e mais profundo filme, discutindo sobre o sistema prisional de uma detenta grávida e as consequências nefastas para os filhos recém-nascidos naquele lugar inóspito. Outro filme de grande repercussão foi Abutres (2010), com um viés pela inverossimilhança da máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das vítimas fatais, aproveitando-se das brechas deixadas pelas leis reguladoras do trânsito. Com Elefante Branco (2012) opta pela multiplicidade de temas, como drogas, casa própria, má gestão pública, subempregos, celibato, questões sociais da criminalidade nas favelas pelas mortes do tráfico, massacre de camponeses na Amazônia. Sem esquecer ainda que fizera antes os apreciáveis Nascido e Criado (2006) e Família Rodante (2004).

O Clã é uma espécie de A Família Addams às avessas, pois aqueles eram uma inversão satírica do ideal da família americana, no qual um grupo rico e excêntrico que adora o macabro, não lhes interessava que outras pessoas os achassem bizarros ou assustadores. Já Trapero dá o toque requintado do suspense e busca fatos concretos para registrar seu inconformismo ao retratar o improvável nos resgates milionários de empresários raptados e escondidos no seio familiar. Sem invalidar a realização, embora prejudicial, peca ao vacilar por minimizar a atmosfera de tensão e desespero dos sequestrados durante parte do filme. O clima não atinge uma sustentação de realismo por falha de uma trilha sonora invasiva e pouco envolvente, atravessando em algumas cenas o desenrolar e despistando contraditoriamente uma carga mais dramática na ação de desenvolvida. Cortes poderiam ser feitos por elipses pontuais, sem utilizar o disfarce de algumas incômodas canções.

O drama com suspense tem grande semelhança no incrível Miss Violence (2013), do diretor Alexandros Avranas, ao retratar a crise europeia através de uma metáfora sobre o patriarca que manda as mulheres da família se prostituírem, tendo como objetivo claro colocar a família grega falando sobre sua sociedade desencantada e traumatizada com os duros rumos de seu país. Arrasou pela perversidade latente e com os desdobramentos explícitos sem ser banal naquela enigmática casa. Trapero é mais condescendente com seus personagens, mas enfatiza a perda da dignidade humana e o atraso institucional causado pelo regime militar. Avranas usa o realismo cênico eloquente de estupros e assédios sexuais na obra em seu todo, sem firulas. Nos dois filmes estão presentes as sucessões de fatos intrigantes naquelas células familiares pseudoserenas, mas com um rombo nas suas estruturas e prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres na figura do abjeto patriarquismo, em que a hipocrisia anda solta e de mãos dadas com as frequentes mentiras e arranjos para obscurecer a verdade com o intuito de ficar completamente escondida. São delírios enlouquecedores de uma situação pelo pragmatismo daquele suposto homem bom e dono de uma rotisseria no térreo do sobrado, escondido atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, cria-se uma loucura mental combalida de prepotência num sistema em que está presente a derrota iminente pela violência humilhante num ambiente hostil.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Chatô, O Rei do Brasil












Fim de Uma Era

Guilherme Fontes estreia na ficção com a comédia dramática política Chatô, O Rei do Brasil, depois de 20 anos das filmagens até a conclusão da conturbada produção que levou o cineasta a responder processos por mau uso de dinheiro público. Teve o abandono do projeto pelo parceiro Francis Ford Coppola e ainda a intromissão de um neto do personagem-título que se opôs e tentou barrar a exibição do polêmico filme. Acusações falsas ou não, mas que no fim resultaram num longa-metragem de bom nível e com um acabamento que supera as expectativas negativas advindas da demora para seu lançamento e nos remete para um cinema qualificado, caprichado, sem remendos, maduro, com a ironia antropofágica proposta de um realizador que sabia o que queria mostrar aos espectadores.

Uma abordagem sem o didatismo que impera em realizações brasileiras quando retrata uma personalidade histórica biografada. Fontes mostra a relação de amor e ódio do personagem central com o governo do presidente Getúlio Vargas (interpretado por Paulo Betti de forma caricatural) no Palácio do Catete, criador do salário mínimo, da Justiça do Trabalho, sindicatos, entre outras conquistas populares e necessárias para a época, num sistema de poder pela sedução das massas com o intuito da coletividade. A cinebiografia do paraibano Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) tem como um dos grandes acertos Marco Ricca encarnando-o de maneira estupenda. Embora seja uma adaptação fiel da história extraída do livro de Fernando de Morais, há uma liberdade despudorada na criação escrachada imaginada pelo diretor, que dá forma e equilíbrio para um contexto político de pouca fidelidade, mas sobrando traições, conchavos, maracutaias e promiscuidades entre Chatô e Getúlio no retrato cinematográfico dos fatos históricos narrados.

Uma superprodução que começa pelo grande elenco, passa por uma reconstituição de cenário e figurinos impecáveis de época e fecha com a bela fotografia de José Roberto Eliezer, com um bom enquadramento de câmera nas tomadas, aproximando rostos tensos e olhares indecisos em closes, captando as aflições e angústias dos personagens do enredo, com planos e contraplanos, especialmente na construção de Chatô, a estrela principal de um programa de TV chamado "O Julgamento do Século", realizado no dia de sua morte. Ali são relembrados fatos marcantes de sua vida, um mulherengo inveterado que não podia ver um rabo de saia, mas que sucumbiu em dois casamentos e uma penca de filhos. Um com Maria Eudóxia (Letícia Sabatella); outro com Lola (Leandra Leal), além da paixão não correspondida por Vivi Sampaio (Andréa Beltrão- magnífica e bela no seu papel de mulher fatal) e a feroz disputa amorosa com Getúlio, sendo ela o pivô de desavenças entre os dois titãs. Fontes demonstra imparcialidade e lisura ao retratar como o magnata manipulava as notícias nos veículos de comunicação que comandava e o estreito elo com o caudilho iniciado antes deste tornar-se presidente.

Com um conjunto de artistas de grande harmonia e compactação, entre os quais Eliane Giardini, Zessé Polessa, Walmor Chagas, José Lewgoy, Marcos Oliveira e Ricardo Blat, o cineasta conta a trajetória de um dos maiores mitos da comunicação de nosso país. Fundou a TV Tupi em 1950, a primeira televisão brasileira; criou os Diários Associados, a maior rede jornalística da época; senador; imortal da Academia Brasileira de Letras; cofundador do MASP com Pietro Maria Bardi. Tornou-se uma figura folclórica e lendária, sendo comparado com William Randolph Hearts (1863-1951), o magnata de um império da imprensa que inspirou Orson Welles no clássico Cidade Kane (1941). Durante o julgamento no programa de auditório, após a trombose que vitimou Chatô, ele passa por delírios acometidos da nefasta doença, que são rememorados com bom humor e sem arrependimentos ou maneirismos revisionais, decorrente da segura narrativa do promissor diretor estreante, que se afasta do pieguismo encontrados em muitas realizações menores.

Chatô, O Rei do Brasil tem como méritos os relatos da vinculação do empresário da comunicação com o presidente mais polêmico do Brasil que se submete aos seus caprichos, como nas cenas entrecortada pelos jogos de poder com toda sua emblemática relação com o povo empobrecido, em meio a uma onda gigantesca de denúncias de corrupção lideradas pela mescla de Carlos Lacerda com Samuel Wainer (Gabriel Braga Nunes), ingredientes indispensáveis num roteiro que não deixa de enfocar o trágico suicídio de Getúlio. Mesmo com personagens fictícios há lealdade aos fatos históricos, mencionando algumas falcatruas engendradas nos bastidores, como venda de uma fazenda e alguns benefícios para pessoas próximas e ligadas diretamente ao governo, em que um dos favorecidos poderia ser o chefe da guarda, além do atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, o estopim para a crise.

Uma comédia dramática que poderia ser um drama ou um documentário para contar a saga de um mito desfraldado dentro de um contexto de uma era de fatos importantes para os brasileiros, embora excessivo por vezes, mas dentro da sincronia para acompanhar os passos do irrequieto e excêntrico Chatô. Do outro lado do enredo alegórico, sem grandes firulas, mas caricato, está um ícone da política com seus acertos e erros, virtudes e defeitos, inerentes de um ditador controvertido, que o levou a entrar na história ao sair da vida, como ele mesmo escreveu na Carta-Testamento. Um filme quase anacrônico pela distância das filmagens até estrear, mas com avanços e em consonância com a transgressão proposta até o emblemático resultado desta instigante contribuição sobre fatos notórios do século passado no Brasil, sem ser definitivo, induz para uma reflexão de um passado, mas que continua atualizado na essência do presente em nossa sociedade.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Chico- Artista Brasileiro

















Intimidade de um Gênio

Um filme de diálogos do protagonista com a plateia e vários depoimentos que normalmente são para endeusar o homenageado, pode parecer uma realização chapa branca, mas não é o caso de Chico- Artista Brasileiro. O documentário passa em revista a vida pessoal, artística e a vasta obra do renomado compositor, cantor e escritor Chico Buarque de Hollanda. É apresentado pelo próprio personagem central, mescla relatos do artista com os de outros nomes da música brasileira, além de encenações com intérpretes das canções mais famosas de sua trajetória. Dirigido com eficiência e competência por Miguel Farias Jr., que também filmou Vinícius (2005) há dez anos, com um público de 300 mil espectadores, recontando cronologicamente a vida de Vinícius de Moraes (1913-1980), popularmente conhecido como poetinha.

Na mesma esteira documental, o veterano Nelson Pereira dos Santos, que dividiu a direção com a neta de Tom Jobim, Dora Jobim, realizou com brilhatura A Música Segundo Tom Jobim (2012), optando pela boa música e o acervo fotográfico da carreira deste extraordinário cantor e compositor brasileiro que conquistou o mundo musical e consagrou-se como um dos ícones de todos os tempos, cantando em português e muitas vezes também em inglês, num formato de videoclipe essencialmente com música nas diferentes vozes e interpretações em vários idiomas, entre eles o italiano, o francês e o inglês. Farias Jr. deixa como fio condutor o próprio Chico contar sua vida na primeira pessoa. Instalado em seu belo apartamento no Leblon, diferente em Vinícius, até porque um está vivo e o outro foi uma homenagem póstuma, situações análogas de seus dois amigos na vida privada. Comovente a cena que menciona como seu grande amor, Marieta Severo, a única mulher com quem conviveu por mais de 20 anos, depois disto nunca mais dividiu seu espaço com ninguém, não só por ser mãe de suas três filhas e dos netos que vieram por consequência.

Sempre acompanhadas de músicas interpretadas pelo próprio compositor ou por outros cantores, além de imagens do acervo fotográfico, mostra um visão artística e pessoal de um dos célebres resistentes da época da ditadura militar de 1964, que menciona seus problemas com a censura implacável. Como na cena que mostra o ridículo dos censores com uma de suas letras que tinha na estrofe: “barriga na miséria do brasileiro...” não podia, teve que alterar para “barriga na miséria do batuqueiro”, aceita sem hesitação. Roda Viva (1967) foi sua primeira incursão na área da dramaturgia teatral, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, foi censurada sem grandes rodeiros; bem como com a peça musicada Calabar (1973) escrita em parceria com Ruy Guerra. Um roteiro vinculado às excelentes composições, com falas e menções de amigos, logo se afasta do oba-oba que pudesse atrapalhar a continuidade e o objetivo da história. Retrata com desenvoltura a volta de Chico à Alemanha para descobrir por imagens o irmão e ator alemão, sendo marcado por uma certa tristeza não poder conhecê-lo em vida. Há um bom humor com sinais evidentes de sentimento de vaga e doce amargura, ao falar da existência e do fim que se aproxima com o avanço da idade. “Para onde vamos?”, indaga em tom melancólico.

Um documentário que conta os 50 anos da obra do intelectual em 1h50min extraídos de 30 horas de entrevista. Começa com uma de suas canções cantadas por ele mesmo; flutua por Milton Nascimento e a fadista portuguesa Carminho num belo dueto; encanta com Adriana Calcanhoto, Mart’Nália, Milton Nascimento, Péricles, Roberta Sá, Ney Matogrosso, Maria Bethânia e Caetano Veloso com eloquência neste primor de resgate do tempo, sem faltar o rápido depoimento da irmã Miúcha. O grande sucesso da carreira A Banda (1966) terá papel preponderante para lhe dar alegria inesperada na procura do irmão desconhecico, interligado com as lembranças da infância e do pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. O longa mostra os artistas musicais sendo muito visados num período de exceção de direitos, como também eram os cineastas como Glauber Rocha, idealizador do Cinema Novo.

Chico- Artista Brasileiro é um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a música servindo de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolou os brasileiros naqueles anos de chumbo, fica na tela como reflexão mais aprofundada de uma época. Não é um documentário somente para os fãs do compositor, mas para todos os apreciadores de música de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou baixarias. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos. É proibido levantar o volume da voz. Para os que não gostam dele, ao assistir poderão ter a grande chance de mudar alguns conceitos equivocados. Sobre os que estão em dúvida se gostam ou não, dificilmente deixarão de aderir e cantarolar. Não vai sair ganhando festivais por aí, talvez nem ousasse tal intenção, mas ficará registrado na memória todo seu inesgotável poder de criação, pois os gênios nunca deixam secar a fonte e estão sempre presentes para seus admiradores contumazes e os detratores. Para ser lembrado e sorvido com sensibilidade as sutilezas sugeridas, lavar a alma e deixar os ombros mais leves, fechar os olhos e sorver as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, além do resumo sobre o anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dheepan- O Refúgio


Imigrantes Marginalizados

Ganhador da Palma de Ouro em Cannes de 2015, Dheepan- O Refúgio é um drama de muita ação numa abordagem seca do multiculturalismo e da triste sina dos imigrantes na velha Europa invadida por causa dos conflitos internos de países do terceiro Mundo dominados pelas execráveis ditaduras. O diretor francês Jacques Audiard ambienta sua trama num condomínio de classe baixa da periferia dominado pelos traficantes numa gris e sorumbática Paris, contrapondo com as belezas naturais, dos glamourosos cafés, bistrôs e do romantismo da Cidade Luz. Já no prólogo, o protagonista entrega as armas diante da derrota das milícias minoritária tâmil na guerra civil do Sri Lanka, sua terra natal.

O personagem-título é interpretado por Antonythasan Jesuthasan, de excelente atuação, que foi na vida civil um soldado, mas que superou as dificuldades e hoje é escritor. Seu papel é de um guerrilheiro derrotado dos Tigres do Tâmil que quer recomeçar a vida, para isto monta uma farsa de uma união inexistente de laços e vínculos, decorrente das mortes de todos seus membros familiares.Yalini (Kalieaswari Srinivasan) finge ser a esposa e mãe da pequena Illayaal (Claudine Vinasithamby). Para isto assumem identidades falsas para fugir da guerra imposta pelo governo cingalês. Eles não se conhecem e, diante da iniciativa, precisam conviver como se fosse um verdadeiro núcleo familiar de refugiados que ingressam na França. Sem o domínio e o conhecimento da língua local, Dheepan consegue emprego como zelador; Yalini passa a trabalhar como empregada doméstica na casa de um idoso com problemas de saúde, frequentado por um temido gângster local; enquanto que a suposta filha sofre para se adequar aos hábitos do cotidiano de uma escola com colegas que só falam o francês e demonstram racismo e hostilidade.

Um retrato da solidariedade e da amizade entre os imigrantes para obterem trabalho com uma vida de mínima dignidade, vindos como animais repugnantes e jogados em solo perigoso, diante da burocracia e da xenofobia estampadas para se regularizarem. Há uma frieza nas relações para com os evadidos, em estado de desamparo na busca da liberdade de dias mais promissores. São situações clássicas abordadas na imigração por um olhar atento do cineasta que tem em sua filmografia os razoáveis Nos Meus Lábios (2001), De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005), além do perturbador O Profeta (2009), em uma abordagem profunda dos grupos mafiosos e da criminalidade escancarada dos guetos islâmicos que fervilhavam naquele ano, bem como o preconceito com o mundo árabe. É dele também o instigante Ferrugem e Osso (2012), tendo como mote o corpo mutilado de uma treinadora de orcas para aprofundar uma reflexão sobre as lutas de uma selvagem violência de classes sociais tensionadas pelos estigmas entre pares excluídos da sociedade.

Dheepan- O Refúgio é uma realização com tema atual e de boa repercussão pelos acontecimentos trágicos que norteiam o velho continente. Por vezes violento e incisivo, navega nas águas pelas semelhanças próprias com Bem-Vindo (2009), de Philippe Lioret, que focava a política das imigrações, através de um garoto curdo refugiado da guerra do Iraque, na tentativa incessante de ver a namorada na Inglaterra, tendo se estabelecido temporária e ilegalmente em Calais, na França, com todo o tipo de intolerância. Audiard coloca a relação de uma família de mentira asilada em busca da reconstrução em solo estrangeiro, embora o banho de sangue numa situação de extremo limite do protagonista em cenas de registros impressionistas, ainda assim tem uma visão mais otimista que Claire Denis no sombrio Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; do profundo O Porto (2011), do finlandês Aki Karismäki, que apresenta o sofrimento e a ojeriza de uma casta que vira as costas, mostra misericórdia e esperança; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke; ou na comédia dramática de humor cáustico Samba (2014), de Eric Toledano e Olivier Nakache; sem esquecer de O Visitante (2006), de Tom McCarthy, sobre a situação dos forasteiros ilegais, também questionava a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças.

Os filmes que abordam a temática polêmica da imigração, portanto, são vários, mas em Dheepan- O Refúgio sustenta o drama cruel de um povo desiludido da raça humana, pois o ex-guerrilheiro também é constantemente insultado nas suas tarefas atuais de laborar dignamente, embora seu trabalho seja sério, honesto e humilde. O que lhe dá força moral é a parceria de uma mulher que abraça a causa e, de uma garota acolhida como filha, que não dispensa a cooperação, a ternura e o carinho sempre que solicitada. A redenção vem da violência trágica do passado de uma insana luta entre irmãos de sangue.

O longa retrata um ambiente carregado de certa forma, até porque moram num local conflitado que serve de rota de tráfico por uma rede solidária clandestina. Uma alegoria da vida em risco e a falta de uma política de governo para atender os refugiados esperançosos em viver com algum prazer que a vida possa oferecer. Ou seja, ficar bem longe dos campos de guerra espúrios mostrados, numa premissa otimista, mas sem deixar de apontar e insistir sobre a ausência de vontade, neste manifesto crítico de um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo, ainda que tenha na mentira do seu personagem central a forma ilícita para salvar sua pele e de seus novos integrantes familiares, protegendo-os da sanha irascível preconceituosa e abominável aos imigrantes que deve ser refletida à exaustão.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Sicário- Terra de Ninguém















Guerra Cruel

O competente cineasta canadense Denis Villeneuve propõe explorar os limites amorais do ser humano no estupendo drama policial Sicário- Terra de Ninguém, apresentado em primeira mão no último Festival de Cannes, sendo aclamado pela crítica e pelo público. O realizador tem em sua filmografia outros dois longas expressivos mostrados no Brasil, suspenses dignos da melhor qualidade cinematográfica, como no drama Incêndios (2010) e no thriller policial Os Suspeitos (2013). Brilha mais uma vez na construção tensa do clímax necessário ao enredo pela intensidade, com o auxílio precioso do roteiro enxuto escrito pelo estreante Taylor Sheridan e com a não menos fascinante trilha sonora assinada por Roger Deakins, já várias vezes indicado ao Oscar, que dá o tom singular no desenrolar da história.

A trama retrata a triste e dolorosa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação caótica e traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA preparando uma audaciosa operação para deter o grande líder de um cartel de drogas mexicano. Kate Macy (Emily Blunt- convincente e correta no papel) é uma policial do FBI de um esquadrão da Swat recrutada que decide participar da ação, mas logo descobre que terá de testar todos os seus dilemas morais e éticos nesta missão que aos poucos vai se desatando como um novelo de lã, como nas cenas macabras com corpos pendurados em locais públicos e outros emparedados em estado de miserabilidade pelas torturas medievais. São imagens poderosas e aterradoras que falam mais que os próprios diálogos, sem o viés apelativo e demagógico. A resposta é definitiva: o tráfico não perdoa naquele mundo sórdido, implacável e sem fronteiras, além da flagrante corrupção que irá ter repercussões devastadoras a todos os envolvidos.

Os efeitos maléficos do narcotráfico e da corrupção deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens bombardeados por uma nociva guerra suja entre poderosos e inocentes na terra de lobos. O cineasta tem um atento olhar para uma sociedade esfacelada e envolvida pela destruição de seus princípios vilipendiados por soluções burocráticas nada inovadoras, como observado nas incursões violentas e despudoradas que levam a lugar nenhum. Segue na mesma esteira do excelente filme Heli (2013), do espanhol Amat Escalante, na denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o diretor intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita no enredo ao longo da história; ou no comedido drama familiar La Playa (2012), do colombiano Juan Andrés Arango Garcia, sob um contexto humano naquele cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em que o tráfico também se faz presente.

Sicário- Terra de Ninguém é um extraordinário relato narrativo com equilíbrio pela potência de um drama superior. É impossível ficar alheio à miséria de um mundo implacável e sem piedade, contrastando com a ilusão utópica e maniqueísta advinda dos americanos, sempre prometida e dissimulada como um sonho de conto de fadas. Mas a empolgação da policial feminina encontrará uma destrutiva realidade dos próprios colegas impiedosos, entre o quais em meio à corrupção passiva e ativa, como do falso galã. Com um ótimo elenco, o filme reflete não só a vingança pelas supostas mortes de familiares do misterioso e vingativo Alejandro (Benicio Del Toro- interpretação excelente) com o auxílio do agente espião Matt Graver (Josh Brolin), mas também dá tintas fortes de um descalabro nas fronteiras, com a soberania violada em território mexicano, através de um painel cruel de uma realidade dura dos cartéis em choque pelo espaço territorial, pesada, sem lei e corrompida. A brutalidade é precipitada pela desgraça severa, sendo apresentada num realismo cênico seco, mas o epílogo dá poucas esperanças para aquelas vidas arruinadas pelo contexto enraizado de equívocos de um pessimista panorama real pela impiedade de uma pífia política de contenção, ou ainda da falta de um estudo aprofundado do universo das drogas.

Com o pretexto de colocar ordem através de um personagem que se alimenta da vingança, por ser um matador de aluguel, mas que pousa como um defensor do propalado bem contra o mal, tão difundido de forma sinistra pelos norte-americanos, como bem retratado em A Hora Mais Escura (2012), de Kathryn Bigelow. A violência da guerra ao tráfico é abordada de maneira incisiva e arrebatadora, com requintes de crueza para estômagos fortes, o diretor deixa uma marca digna de um filme raro dos estúdios de Hollywood, pela ótica da comiseração social e dos consumidores que estão dentro de uma sanguinária máquina sem perspectiva de uma luz no fim do túnel. Um longa-metragem político na essência, pela complexidade do tema, pela contundência das imagens e pelos diálogos curtos e certeiros, que credencia Sicário- Terra de Ninguém como um dos dez melhores filmes de 2015.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Vinho Perfeito

















Mistérios dos Vinhedos

Exibido em 2014 na Mostra de Cinema de São Paulo, só agora chega comercialmente às nossas salas de cinemas a comédia dramática mesclada com suspense policial O Vinho Perfeito, do diretor italiano Ferdinando Vicentini Orgnani, inspirado no romance O Mestre Margarida, do autor russo Mikhail Bulgakov. O cineasta é reconhecido em seus país por Ilaria Alpi- O Mais Cruel dos Dias (2003), um longa-metragem contundente baseado em fatos reais, numa abordagem transposta para a ficção sobre dois jornalistas da Itália mortos estupidamente na Somália.

Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, Orgnani admite como referência e inspiração o longa Barry Lindon (1975), de Stanley Kublick, embora esteja bem distante como produto final do clássico mencionado. Também explica que preferiu como locação para rodar seu filme em Trentino, na Província de Trento, no nordeste da Itália, tendo em vista que esta é a região produtora do famoso vinho Marzemino, citado por Mozart na ópera Don Giovanni. O realizador deixa para trás o filme de denúncia para embarcar e flutuar nas ondas de uma trama que oscila entre um realismo obsessivo dos encantos etílicos para um mundo imaginário transcendental de pessoas afastadas dos mortais, já em outra esfera do pós-vida.

O enredo do longa do diretor está voltado diretamente para uma história em relação aos regozijos dos vinhos, como em Sideways- Entre Umas e Outras (2004), de Alexander Payne, ao narrar a intimidade de dois amigos pelas vinícolas da Califórnia como despedida de solteiro de um deles como forma de refúgio de todos os problemas: separação, trabalho, mulher e amor; já em Um Bom Ano (2006), de Ridley Scott, o protagonista é obrigado a voltar para França, onde foi educado na arte da elaboração para classificar as uvas por um tio, dono de um vinhedo no país, por conta de seu falecimento; ou no instigante Sobre Amigos, Amor e Vinhos (2014), de Éric Lavaine, que agrada pela elegância simples da empatia dos personagens com a plateia, bem como pela maneira como é focada as difíceis relações humanas, principalmente tentar ser agradável com todos, pode soar falso, e até estourar como uma bolha inflada.

O roteiro é linear e fragiliza-se na essência pura do cinema, ao se debruçar num homem fascinado por vinhos raros, com fama de galanteador inveterado e irresistível. Ao sentir o primeiro gole da bebida, a vida de Giovanni Cuttin (Vincenzo Amato) mudou para sempre. De um tímido bancário que recebe propinas, logo abandona a carreira para ser um profissional que vai atrás de safras exclusivas para comprar unidades raras em leilões e transformar-se completamente em três anos, sendo ovacionado como um especialista e renomado sobre a matéria. Sua vida agora se divide entre degustações públicas, conferências e apresentações de seu livro autobiográfico, até surgir na sua vida a bela mulher de um passado enigmático (Daniela Virgilio) que trará algumas tímidas reviravoltas no enredo, mas com pouca profundidade no contexto.

Há uma densidade tenra e um tensionamento inexistente numa realização que poderia ser melhor elaborada para o estilo policial noir, caso houvesse construções de personagens mais consistentes no aspecto psicológico, embora haja uma proposta típica de uma direção autoral. Basicamente a trama gira sobre a vida do sommelier e a acusação inesperada de ter assassinado a esposa (Giovanna Mazzogiorno). Durante as investigações do crime pelo comissário (Pietro Sermonti), a polícia investiga os reais motivos por trás dos atributos compulsivos de Giovanni pelas espécies incomuns engarrafadas, diante do surgimento repentino do personagem O Professor (Lambert Wilson) no pífio interrogatório. Confessa que teve a sensibilidade apurada ao se aproximar do personagem misterioso e que passou a conhecer qualquer vinho no mundo, por um dom vindo do além.

A competição, o ciúme, a soberba, a ganância e a inveja estão presentes no processo construtivo do protagonista, principalmente ao ser pressionado, razão pela qual começa a refletir sobre as decisões que tomou nos últimos anos de sua existência. Há uma similitude com o personagem central da saborosa agridoce comédia intimista francesa Sobre Amigos, Amor e Vinhos. Só que o diretor francês foi mais hábil e direto ao ponto, porém Orgnani descamba para imaginações pouco férteis do plano surreal empírico, com um desfecho previsível e distante de um clímax narrativo de um thriller com estofo pelo bom suspense, ingredientes ausentes em O Vinho Perfeito, embora se ressalte o esforço dos mistérios sugeridos oriundos dos prazeres dos vinhedos, mas aborda com pouco convencimento a fusão dos gêneros policial noir com comédia.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Pele de Vênus













Jogo de Sedução

Roman Polanski é um dos mais competentes cineastas octogenários em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe em muito seu destino no território dos Estados Unidos e países que façam extradição para lá. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça, no entanto, não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Em 2010, preso na Suíça, não pôde receber o Urso de Prata de direção, em Berlim, por O Escritor Fantasma. Já em 2013, voltou a participar do Festival de Cannes com A Pele de Vênus, baseado na peça Venus in Fur, do norte-americano David Ives, que por sua vez inspirou-se no romance de Leopold von Sacher-Masoch, publicado em 1870, que viria tornar-se célebre definidor da fábula clássica da dominação sexual nas relações por perversão, advindo dele a terminologia masoquismo. Hector Babenco montou nos palcos brasileiros a referida peça, com interpretação de Bárbara Paz e André Garolli.

Ainda que o diretor polonês esteja meio devagar para filmar, o penúltimo longa-metragem, Deus da Carnificina (2011), foi sua primeira guinada na carreira para mergulhar no teatro, com bons motivos para ser assistido, também baseado numa peça teatral, da dramaturga francesa Yasmina Reza, que foi encenada várias vezes, iniciando em 2006 no Brasil, com Paulo Betti, Júlia Lemmertez e Deborah Evelyn. Não foi daqueles filmes como se acostumaram seus fãs, faltou vigor e o suspense em alta tensão para uma abordagem mais profunda de uma sociedade em decomposição, num cenário com dois casais, muito cinismo entre os pares com múltiplas acusações mútuas. Nesta segunda investida, A Pele de Vênus apresenta mais elementos consistentes neste puro drama de excelente exercício narrativo, sendo bem auxiliado por Alexandre Desplat na construção da fascinante trilha sonora instrumental. A montagem de Hervé de Luze e Margot Meynier é impecável para um cenário apropriado pela proposta, com duas locações apenas: os teatros Hébertot e Récamier, em Paris, além da mobília antiga e um fálico cactos integrado com a filha de Afrodite.

O realizador imprime consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações dolorosas e instigantes do casal protagonista interpretado por Mathieu Amalric como o diretor Thomas, uma espécie de alter ego de Polanski, também pela semelhança física, e Emmanuelle Seigner- casada há mais de 20 anos com o cineasta polonês- como a atriz Vanda que encarna com ardor seu papel que tem o mesmo nome. Obtém uma excelente performance na pele de uma mulher vingativa numa verdadeira catarse de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, com línguas afiadas para alfinetadas pontuais sobre as relações com submissões humilhantes, onde a reciprocidade se espalha e atinge o âmago dos gladiadores como se estivessem numa arena.

A narrativa segue um ritmo fervoroso, ou seja, uma peça do palco filmada e transportada para a linguagem do cinema, mas bem solucionada pelo diretor no enredo adaptado conjuntamente com Ives, que evita a simplicidade de apenas transpô-la, ao buscar a interação, pois coloca um ótimo ritmo sequencial nos planos e contraplanos. O texto aborda questões como arte e vida, mas se esmera na reflexão das relações intrínsecas e extrínsecas entre um homem e uma mulher. O domínio pelo poder buscado com afinco na guerra dos sexos, temas predominantes na filmografia do cineasta, em especial A Faca na Água (1962), como os choques de um triângulo no mar, visto agora como se fosse uma versão daquele longa, onde se digladiam os dois personagens atritados. A personagem feminina é despudorada, invasiva, sedutora e instável como a tempestade no prólogo. A figura masculina se mostra inicialmente segura, compenetrada, mas que aos poucos passa por um momento de insegurança em vários sentidos, sente-se acuada num canto. Logo começa um clássico jogo de cena por pura sedução de ambos, no qual se mistura ficção e realidade com a perda do espaço demarcado, rompem-se as fronteiras da lucidez.

Polanski é daqueles cineastas que nunca passam indiferentes e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua verve sarcástica inerente, fundindo teatro e cinema, na mesma esteira de Alain Resnais, com Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011) e Amar, Beber e Cantar (2014). Há neste drama o tensionamento sinistro e apavorante de O Bebê de Rosemary (1968), obra-prima do terror; tem a leveza de A Dança dos Vampiros (1967), um misto de terror e comédia; resquícios do frio noir que notabilizou o magnífico Chinatown (1974), que deixou belos ensinamentos de uma realização com fôlego até o último minuto da película; sem esquecer o instigamento de O Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense; bem como na densa abordagem sobre a guerra em O Pianista (2002), que lhe valeu o Oscar de Melhor Diretor.

A Pele de Vênus é complexo e provocativo, pois consegue fazer de um encontro profissional do encenador com uma atriz à procura de um papel, transforma o palco num exorcismo de almas de criaturas amarguradas e ressentidas. A partir disso, surge um grande duelo de dois intérpretes magníficos como se fosse uma sessão de terapia: Amalric e Emmanuelle estão soberbos. O resultado é um filme superior para um exemplar domínio de cena do texto sem se afastar dos recursos da linguagem cinematográfica, construindo momentos dignos de um teatro filmado, como a câmera entrando pela porta principal na primeira cena e saindo pelo mesmo lugar no desfecho. Cria-se uma envolvente e sensível reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, malícia e perversidade, com impacto sensorial e visual que só o cinema propicia.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Tristeza e Alegria


Reconstrução pela Tragédia

Um drama comovente da dura e crua história ocorrida com o próprio cineasta dinamarquês Nils Malmros, pouco conhecido no Brasil, mas com uma trajetória de premiação bem significativa, gozando de ótimo prestígio pela crítica internacional. Participou de três edições na competição oficial do Festival de Berlim, foi diversas vezes premiado pelos críticos da Dinamarca com o prêmio Bodil de melhor do ano, teve o reconhecimento do prêmio Robert pela academia de cinema de seu país em três oportunidades, sendo o escolhido para representar no Oscar deste ano, com Tristeza e Alegria, produção de 2013, que também foi bem recebida na Mostra de São Paulo de 2014.

A realização tem rara perfeição na recuperação por flashbacks do relacionamento controvertido do cineasta Johannes (Jakob Cedergren) com sua mulher, a professora Signe (Helle Fagralid). São mostradas situações rotineiras do passado com evidências de um ciúme doentio oriundo de uma loucura maníaco-depressiva dela para o marido, que também deixa transparecer um narcisismo bem marcante e provocador de uma situação tensa que acaba em surto psicótico ao extremo de matar a filha, como solução para romper um vínculo em forma de libertação, segundo o médico, nas terapias com o protagonista e suas confissões com análises das personalidades dos envolvidos diretamente. Já o presente retrata uma reconstrução de uma grande paixão fragilizada pelo evento da morte, mas que há uma tentativa séria de reinserção social da mãe, que é internada e está visivelmente traumatizada. Culpada ou vítima do contexto?

O diretor coloca em xeque o casal e a perda prematura da criança de apenas nove meses como a maior tristeza em formato de castigo que poderiam enfrentar. Um drama denso que não falta dor, mas há um fio de esperança para ambos. Para isto, os dois terão que se unir e montar uma fortaleza de reciprocidade de afeto, apoio e concessões mútuas, para tentar seguir levando a vida. Johannes pode parecer passivo demais em alguns momentos, por estar repleto de dúvidas e inquietações não acredita no que aconteceu, até perceber a realidade cruel no momento em que dá a notícia para os pais. Uma narrativa contundente num cenário de nevasca, bem característico dos países escandinavos, tendo no frio um fator dominante do ambiente que afeta também os relacionamentos humanos.

Eis um filme chocante e ousado sobre a experiência traumática ocorrida em 1984, numa trama verdadeira que é contada por Malmros. Repassada para a tela como demonstração de coragem e um exorcismo pessoal, através de um exercício de terapia no divã do psiquiatra. Fala sobre sua dor, sofrimento e sentimento de culpa pela falta de cuidados maiores com o fato inusitado, que carrega e o corrói por anos. Não há pieguismo, sequer descamba para o trivial melodrama, num relato sincero com emoções à flor da pele, mas com a alma e o coração em frangalhos pelos destroços deixados pelo tempo. Após mais de duas décadas, chega até o desfecho com todos os fantasmas renascendo e povoando a memória do fatídico dia da tragédia, no qual sobram raras alegrias num cenário sombrio de um filme melancólico que vai ao encontro do espectador pela confissão dilacerante.

Um cinema distante da grandiloquência, que procura nos pequenos gestos e imagens transmitir sinais de conflitos não solucionados, dando evidências do caminho pelo amor para conciliações nas intransigências refletidas das emoções obsessivas que levam para a perda do equilíbrio, no qual os irmãos Dardenne são mestres na temática infantil: O Filho (2002) e A Criança (2005). É possível consertar uma relação com consequências trágicas e também com a libertação dos personagens, quando há o envolvimento do filho do casal? Uma indagação que arrebata e instiga, lançada por Malmros, na mesma esteira de dois conterrâneos: Susanne Bier, em Segunda Chance (2014), e Lars von Trier no arrepiante Anticristo (2009). Bier aborda duas famílias que se cruzam por linhas tortas, ao questionar os limites da ética confrontados com as normas da lei vigente, diante da ação de um policial que leva para sua casa um recém-nascido pelos maus tratos dos pais drogados. Trier reflete sobre as loucuras da mente, através da evolução gradual dos transtornos de ansiedade para uma fulminante e progressiva síndrome do pânico que estão presentes na mãe, sua obsessão pelo filho morto tragicamente conflitua como um paradoxo pela paixão nutrida pelo marido, levando-a ao êxtase dos demônios que dominam seu estado decadente de lucidez.

Assiste-se Tristeza e Alegria com perplexidade, dor e angústia ao mesmo tempo, pois os contrapontos do roteiro são perturbadores e dão reviravoltas plausíveis, ao refletir os problemas dos pais em consonância com a existência da criança no meio do estopim. Há mágoas devastadoras e virulentas, que se encaixam na perda da razão pela loucura dos adultos num painel com tintas fortes e objetivas da insensatez que atordoa o absurdo das mentes perturbadas, sem deixar de cutucar com sutileza a vingança. Há disfarces de uma fragilidade reprimida para controlar a violência das criaturas, sem incorrer no discurso barato e vazio, inserindo-se num mundo acostumado aos atos bestiais e chocantes de pessoas distanciadas da realidade que ficam pelo caminho, como uma consequência bombástica. Registra-se um flagrante retrocesso de valores burlados dentro de uma engrenagem para satisfazer caprichos de personagens com personalidades distorcidas, carregando sentimentos culposos e sem concessões. As revelações se completam pelas imagens derradeiras, numa sombria amostragem do epílogo revelador do sacrifício como redenção. Um filmaço com sobriedade, rigor e elegância.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Homem Irracional


Crime e Castigo

Woody Allen mesmo se reinventando, ou seguindo sua trajetória de comédias de costumes e dramáticas, ou ainda nos dramas com pitadas de suspense com humor cáustico, mantém fiel o sarcasmo e a ironia fina, sempre presentes como marcas registradas de sua filmografia imensa. Neste 47º. longa-metragem não atua, mas dirige e escreve o roteiro de Homem Irracional, retomando com vigor sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do cotidiano. Evidente que poucos filmes se comparam com Zelig (2003), uma das obras-primas do cineasta; ou o inesquecível longa, talvez o maior filme do velho mestre, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película, para fugir do martírio de sua vida sem graça. Depois veio a fase europeia, ao filmar em lugares distantes da cultuada Nova Iorque, iniciou por Londres com Ponto Final- Match Point (2005), um dos melhores dos últimos anos; o bom Scoop- O Grande Furo (2006); e o razoável O Sonho de Cassandra (2007), entre tantas realizações.

Nesta última realização, apresentada fora da competição no Festival de Cannes deste ano, novamente mergulha com boa profundidade nas neuroses e nos relacionamentos despudorados, nas traições com métodos de sedução convencionais, como uma terapia não ortodoxa decorrente das angústias atormentadoras. Seus personagens muitas vezes são reescritos, às vezes com bons resultados e em outros apenas discretos. Mais uma vez parte dos desajustes e do tédio, como molas propulsoras para ingressar na crise existencial que afeta o professor de filosofia Abe Lucas (Joaquin Phoenix- muito bem no papel). O personagem central chega numa pequena cidade dos Estados Unidos para lecionar, sofre o assédio de uma de suas alunas, Jill (Emma Stone), que se aproxima dele encantada pelo fascínio intelectual, mas se vê fisgada principalmente pela melancolia daquele homem triste, alcoólatra e deprimido.

O cineasta é sutil nas suas colocações e nas armadilhas que lança no enredo. Obviamente, que a aluna terá a concorrência de uma mulher mais experiente. Ou seja, da professora casada Rita (Parker Posey), que fará de tudo para ter um affair com o colega. A história não para por aí, logo Abe ouvirá por acaso uma conversa de uma desconhecida sobre a perda da guarda do filho numa lanchonete, em que a decisão fora injusta pelo juiz Spangler (Tom Kemp). Pronto, era a faísca para acender a chama, como algo consistente para sair da mesmice que faltava na vida do catedrático. Idealiza um plano de assassinato do magistrado, por ser um completo desconhecido, começou a tomar uma instigante forma sólida. Era improvável e quase que impossível ser descoberto. Contava com as parcerias ocultas involuntariamente das mulheres apaixonadas. A reviravolta da trama encontra inspiração no clássico romance Crime e Castigo, de Dostoievski, mas para isto o diretor deixa para trás as divagações filosóficas do professor que cita Kant, ao pregar o recurso da mentira; Sartre apostando que “o inferno são os outros”; Hannah Arendt e a sua “teoria da maldade”. Sai do universo teórico e ingressa no mundo real, ao preconizar na cena anterior: “Boa parte da filosofia não passa de masturbação verbal”.

O drama mostra para o protagonista que seu mundo agora mudou e que a vida parece contrariar, embora seja um alerta para aquela construção falsa de um castelo de areia desmoronando. Antes tinha uma fragilidade que aflorava e bebia uísque como se fosse água, uma espécie de antidepressivo, deixando-o vazio e sem perspectiva de um futuro, sem um sentido claro sobre a existência e sua continuação. Agora a cabeça roda, tudo parece perdido, mas surge a grande chance de reeguer-se da fantasia arquitetada, quando monta outro plano para sair da enrascada. O filme tem alegorias, como a lanterna utilizada no parque de diversões, como peça chave para um pai iluminar o caminho da filha, objeto este que será o mesmo que dará o inusitado desfecho do elevador. A transgressão pune com um castigo letal para o executor da arapuca. A luz virá em forma de fantasma para o mestre e sua inspiração em Dostoievski estará justificada pela irracionalidade tombada na escuridão do poço.

Tanto a mentira, como a traição e a desonestidade não têm perdão, assim como a frivolidade presente no crime, numa construção psicológica que retrata a bancarrota humana depreendida do ser irracional, através de imagens que retratam o orgulho ferido da aluna e a dignidade perdida de Abbe, na trajetória pelo recomeço. A neurose doentia está presente e dá soluções nada pragmáticas. Homem Irracional retrata as consequências de uma realidade num mundo de desatinos de verdades ignoradas, enfoca as demasiadas preocupações irreais, como metáfora da cegueira de vidas alimentadas ilusoriamente por sentimentos esfarelados e corrompidos por futilidades e desmandos. São desdobramentos de uma narrativa como pedras no tabuleiro de um jogo de xadrez, deixando a dor provocada pela angústia ganhar força e tornar-se consistente sobre os desajustes e vínculos destroçados por torpezas. Satiriza e ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes que são revelados por Allen, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do significado existencialista. Mesmo sendo um filme menor deste genial diretor bergmaniano, é uma contribuição significativa para o cinema, sempre voltado para os acontecimentos rotineiros do amor, da paixão desenfreada, os fracassos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Que Horas Ela Volta?


Vulcão na Mansão

Outro longa-metragem brasileiro que faz furor e repercute de forma admirável é Que Horas Ela Volta?, escrito e dirigido pela paulista Ana Muylaert, que já causara muito boa impressão com Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), sendo forte candidato a representar o Brasil no Oscar de 2016. Aplaudido pelo público e reconhecido pela crítica na abertura do 43º. Festival de Cinema de Gramado deste ano; foi bem recebido no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça, na seleção Carte Blanche, em 2014; exibido com sucesso na World Competition, em Sundunce, no início de 2015, em que Regina Casé e Camila Márdila dividiram o prêmio especial do júri de melhor atriz; também neste ano se apresentou no Festival de Berlim, sendo eleito o melhor filme na Mostra Panorama e conquistado o prêmio Cicae Art Cinema pela International Confederation of Art House, pelo júri independente daquele evento.

Ao retratar os contrastes sociais com contundência, especialmente a hipocrisia, o desconforto e o preconceito latentes que pairam e se materializam numa relação entre ricos e pobres, busca subsídios do passado herdado de uma fase de ouro das elites brasileiras nos seus aspectos exteriores, bem focado nas cenas de subordinação da empregada em relação aos patrões todo poderosos ostentado pelo núcleo familiar de um cotidiano frio de um profundo abismo nas singelas situações do dia a dia, como a frustração da reprovação no vestibular e o prêmio para ir estudar inglês na Austrália; ou o acidente da mãe com a falta de atenção do filho; ou ainda do marido solitário em seu atelier silencioso em busca de uma aventura amorosa. Há sinais evidentes e próximos pela similitude do tema com Casa Grande (2014), dirigido pelo estreante carioca Fellipe Barbosa, um drama brasileiro retratado sem demagogia pelos paradoxos da visão social de uma sociedade representada por uma classe média alta que tenta manter valores superados.

A história é composta por personagens bem estruturados e identificados claramente nas suas fragilidades, falta de afeto, desajustes, mesquinharias e de uma submissão oriunda da época de um colonialismo de outrora. A protagonista é Val (R. Casé- de interpretação soberba) que se mudou há treze anos do interior de Pernambuco para trabalhar numa mansão do aristocrata bairro do Morumbi, em São Paulo, e morar num quartinho acanhado nos fundos, pouco arejado, com uma televisão e um barulhento ventilador, na residência dos empregadores. Seu objetivo é dar melhores condições de vida para a espevitada filha Jéssica (Camila Márdila- perfeita no papel), deixada para trás ainda menina sob os cuidados do pai, ficando cicatrizes abertas de uma relação interrompida abruptamente, para ser babá do fragilizado Fabinho (Michel Joelsas), um garoto que gosta de dormir com o cafuné da doméstica, uma espécie de segunda mãe. Nordestino sofre na cidade grande é o recado direto, sem entrelinhas.

A trama faz um retrato fiel da alta burguesia paulista abastada que leva uma vida confortável em relação à maioria dos compatriotas. Os patrões vivem da herança familiar de Zé Carlos (Lourenço Mutarelli), embora Bárbara (Karine Telles) faça um trabalho mais de aparências no mundo da tendência da moda, não abre mão em apresentar a serviçal devidamente uniformizada para o público, entendendo ser um comportamento requintado de puro estilo, apesar do ridículo e da breguice exposta, contrariando seus princípios de mulher fina. A grande mudança na rotina acontece com o pedido de Jéssica, por telefone, para ir morar com a mãe e prestar vestibular na disputada Faculdade de Arquitetura da USP, a mesma prova que irá fazer Fabinho. É recebida, aparentemente, com boas vindas pelos donos da casa, só que quando deixa de seguir o protocolo dos escravos do passado, ao circular de maneira espaçosa como se fosse da família, tudo se complica. É vista como um furacão em erupção no espaço sagrado da suprema hipocrisia dos “bons chefes”. A quebra de paradigmas da jovem, proposta por Muylaert, é um marco da estruturas que se abalam, decorrente da irresignação dos tabus humilhantes ainda mantidos, principalmente a analogia explícita sobre o rato humano que toma banho com a casta de sangue azul na piscina.

O realismo está presente nos gestos e atitudes pelas imagens e diálogos reveladores. O drama narrado em ritmo cômico suaviza o impacto do distanciamento existente dos personagens envolvidos pelas diferenças, mas reflete a preocupação desta obra autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre a mansão e vai até o verdadeiro centro da família do rapazinho que busca afeto no quartinho minúsculo de Val. Lá, vai encontrar carinho, estímulo e amor maternal, contrapondo com sua condição elitizada e solitária, encontrado no badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, um filme silencioso que capta os barulhos externos, além dos símbolos de uma brutal realidade, ou do seu genérico argentino Bem Perto de Buenos Aires (2014), de Benjamín Naishtat, que aborda as classes diferentes em lados opostos da cerca da pobreza. Ou seja: de um lado a doméstica e seu sobrinho, do outro, a patroa arquiteta e a namorada do rapaz que trabalha na residência dos amigos da ricaça.

Que Horas Ela Volta? não é apenas uma comedia dramática preocupada com as anomalias existentes nas as pirâmides salariais de um contexto severo e implacável para todos, mas incisivo na hipocrisia das relações empregatícias quando há diferenças abissais para aparar as arestas, mas a ruptura do elo do passado em busca do trabalho para melhorar a situação deprimente para sobreviver, através de uma narrativa de inspirada criatividade, pelo olhar do menos favorecido, sem cair na obviedade. Cada posição dos personagens torna-se autônoma no desenrolar do enredo, ao direcionar a abordagem das relações afetivas de empregada e filha com os integrantes da família patronal, mas sem perder a dignidade e a dor repassada para a plateia. São elementos bem caracterizadores e envolventes que marcam com rara qualidade este notável retrato intimista neste filme de cores bem brasileiras, que irá reservar no desfecho outra revelação entre mãe e filha para uma redentora esperança.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Último Cine Drive-In


Júbilo ao Cinema

O diretor brasiliense Iberê Carvalho estreia em longa-metragem com este premiado O Último Cine Drive-In, uma comovente homenagem aos cinéfilos, através de um enredo simples e eficiente, com ternura e desenvoltura, tanto para os olhos como para a alma dos espectadores. A beleza está justamente na simplicidade e no objetivo a ser alcançado, ou seja: o amor ao cinema. Chega ao circuito comercial precedido de quatro Kikitos no último Festival de Gramado: melhor filme pelo júri da crítica, melhor ator (Breno Nina), atriz coadjuvante (Fernanda Rocha- também premiada no Festival do Rio) e direção de arte; foi laureado como melhor filme no Festival de Punta del Este, no Uruguai e no Festival das Américas, no Texas, EUA; além de ser escolhido para a Seleção Oficial do Festival de Chicago, nos EUA.

A trama traz como protagonista Marlonbrando (grafado assim mesmo, interpretado pelo estreante B. Nina), um jovem que vive em Anápolis, mas que vai para Brasília, sua cidade natal, para acompanhar Fátima (Rita Assemany), a mãe em estado terminal de câncer, que está internada em um hospital com suas burocracias exageradas para visitação dos parentes, além do descalabro de suas acomodações de leitos precários. Sem ter onde ficar na cidade, ele acaba procurando pelo pai, Almeida (Othon Bastos), proprietário há 37 anos do pouco assíduo e último Cine Drive-in no país, que insiste em manter vivo o cinema, mesmo não atraindo mais espectadores como na década de 70. Para isso, conta com a ajuda de apenas dois funcionários: Paula (F. Rocha- estava realmente grávida nas filmagens do marido e diretor), que é responsável pela projeção e dos serviços de cozinha, e José (Chico Sant'anna), um velho amigo da família, que ajuda a vender ingressos no caixa, cuida da limpeza e da segurança do local. Com a ameaça de demolição do prédio e o agravamento da doença de Fátima, pai e filho discutem um passado de ausência paterna, se alfinetam e colocam em xeque uma relação dolorida, mas terão que juntar forças para se unir e tentar reviver os anos de glórias do estacionamento lotado de carros por frequentadores vorazes de sonhos imaginários.

Apaixonado pelo que faz, Almeida é uma espécie de um desbravador sobrevivente que luta para manter sua casa de espetáculo num mundo em que o cinema de shopping, o 3D, o IMAX e o digital predominam nos dias atuais pelo conforto, segurança e a evolução. Reluta em entregar seu espaço, mas sabe que a utopia pode acabar e começa a esmorecer. A presença do filho mudará a rotina da mesmice e do pessimismo ali instalados. Toma pé da situação, mantém um bom relacionamento com os funcionários, embora conflitado com a jovem Paula, por ficar com seu quarto, logo aparará as arestas por um grande causa. Um filme que possui momentos marcantes na essência, que variam do drama para a comédia, do road movie para a fábula adulta primorosa, como da fantasia no epílogo de imagens coloridas e de esperanças.

O Último Cine Drive-In não tem o glamour do festejado melodrama Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, homenageado com um cartaz, em que ambos prestam declarações de grande júbilo ao cinema. Há ainda no local um pôster do clássico O Poderoso Chefão (1972), latões de películas e projetores antigos como herança de uma época. Mescla humor com drama, com o auxílio de uma boa trilha sonora, num tom bem equilibrado de uma narrativa correta dentro de um enxuto roteiro, mostrando a decadência das velhas projeções românticas, em que se assistiam filmes de dentro dos automóveis. Sem ser piegas e afastando-se do maniqueísmo, não se deixa envolver pelo emocional na sua estrutura dramática, com elipses adequadas, um bonito cenário da Capital brasileira como símbolo de um passado de reminiscências.

A comédia dramática apresenta-se com um bom domínio de um tempo que já passou, ainda que de certa forma contido, ao mostrar a transformação do cinema de maneira metafórica, como da mãe na UTI do hospital, tal qual a sobrevivência do drive-in, o presente e o futuro da evolução dos novos tempos modernos e com a decretação do fim da película como forma de sobrevivência. Mesmo sem arroubos em termos de roteiro ou invenções de linguagens, há o magnetismo do colorido e dos diálogos com vozes abafadas, por uma aparente ingênua história de personagens em tempos diferentes. O filme tem significativos méritos expositivos, pois consegue prender a atenção do público, não deixando escapar o foco da trama. Uma boa e singela homenagem ao cinema de rua e de estacionamento, embora não chegue a ser uma obra definitiva, marca pela ousadia numa época onde se valoriza mais o modelo tecnológico, suas invenções e avanços virtuais. Não deixa de ser um tributo que fazia falta para aqueles que amam a sétima arte.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Real Beleza













Triângulo Amoroso

O diretor gaúcho Jorge Furtado criou dúvidas e debateu o futuro do jornalismo, ao lançar novas luzes sobre a polêmica do fim do jornal impresso, a evolução da internet, a ética e os interesses econômicos das grandes companhias jornalísticas, no seu longa anterior, o documentário mesclado com teatro O Mercado de Notícias (2014), o melhor desde o premiado curta Ilha das Flores (1989). O cineasta tem em sua filmografia Saneamento Básico (2007), um filme dentro de outro para demonstrar a forma dos moradores reunidos e que seria protagonizado por um mostro que vive nas obras de construção de uma fossa; O Homem que Copiava (2003), uma narrativa ficcional contrastando a inverdade com o real, numa mescla um tanto vazia de um jovem que trabalha numa fotocopiadora e tem uma vida comum.

Agora com Real Beleza, título inspirado na canção de Sérgio Sampaio, dá um passo importante ao mergulhar no drama romântico, deixando de lado, ao menos por ora, seu vasto universo de comédias descompromissadas realizadas com superficialidades, talvez pelo vício dos seriados e pequenos contos televisivos. Uma trama recheada de bons ingredientes sobre o belo e suas formas intrínsecas e extrínsecas dos amores impossíveis. O protagonista é João (Vladimir Brichta- apesar do esforço, não convence na dramaturgia), um fotógrafo renomado em decadência à caça de talentos que procura uma nova modelo para dar um voo maior na sua carreira ameaçada. Ao partir para o a região Sul do Brasil, fotografa dezenas de adolescentes incansavelmente com seu clicar repetitivo, até finalmente descobrir a beleza encantadora de Maria (Vitória Strada), quer transformá-la numa top model internacional, desejo de qualquer garota interiorana, mas que terá muitos caminhos de dificuldades para trilhar.

Furtado abre o leque da reflexão sobre os sonhos frustrados e promissores das modelos, ao colocar em choque a negativa do pai, um homem já velho e cego, dono de uma gigantesca biblioteca, que conhece pela intuição ao tatear e demonstrar um grande conhecimento e grau elevado de memória numa série de referências culturais num compasso com a natureza. Recita páginas de escritores como Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges- uma homenagem ao intelectual argentino- e Cartier-Bresson. A figura paterna de Pedro (Francisco Cuoco) é interpretada pelo veterano ator, num desempenho excelente, tanto ao ser durão, como irônico e cômico, ao se opor à carreira profissional da filha. É casado com Anita (Adriana Esteves- em boa forma e convincente, ao contrário de Brichta, seu marido na vida civil) que nutre um grande amor, transformado pelo tempo em compaixão, pelo esposo bem mais velho do que ela, mas dependente de cuidados especiais. Ela está cheia de vontade de partir dali para o mundo, em especial Paris.

Um enredo aparentemente simples, mas com boa complexidade que se delineia no desenrolar da história, principalmente com a aproximação da mãe da jovem aos galanteios do forasteiro para um relacionamento íntimo num triângulo que se desenha. Ambos parecem descobrir uma incendiária paixão que acreditavam já ter esquecido e retirado de suas vidas. O passado e o presente de Anita formam um elo intransponível, embora os anseios gritem e a perturbem como mulher que quer ter uma nova realidade. Dá liberdade aos desejos latentes sexuais reprimidos, deixando vir à tona realizações freadas pelas circunstâncias do casamento longevo.

Nesta produção da Casa de Cinema de Porto Alegre filmada em Três Coroas, Garibaldi e algumas cenas na Capital, o longa tem uma fascinante fotografia com as características peculiares de uma cidadezinha serrana do interior, onde se anda de bicicleta, há um típico namoradinho da modelo que faz de tudo para que ela não saia dali. Os objetivos de vida estão limitados aos costumes de um bucólico lugarejo de poucos recursos que remete para Antes que o Mundo Acabe (2009), de Ana Luiza Azevedo. Ainda que menor, é quase tão instigante sobre as dúvidas e os caminhos dos adolescentes que procuram um futuro promissor, como nas realizações Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky.

Na relação complexa aberta em Real Beleza, a filha sente que existem outras fronteiras para serem desbravadas. Seu mundo está restrito às mesmices, com poucas opções para o trabalho. É hora de botar o pé na estrada e seguir em frente e deixar a vidinha pacata para trás. Ainda que haja aquelas belezas naturais cativantes, mas de aspectos sombrios de prazeres e desprazeres como objetivos, tendo como mote o triângulo amoroso dos pais, diante do vazio existencial dos conflitos inerentes vistos com razoável sensibilidade para abordar a temática sem estereótipos, que faz refletir com uma ternura dolorida dos adultos intercados pelo silêncio ecoante.