sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2018)



Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Como é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos em 2018, também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

01. Roma, de Alfonso Curón (foto acima);

02. The Square- A Arte da Discórdia, de Ruben Östlund;

03. Sem Amor, de Andrey Zvyagintsev;

04. As Herdeiras, de Marcelo Martinessi;

05. Cachorros, de Marcela Said;

06. Baseado em Fatos Reais, de Roman Polanski;

07. Custódia, de Xavier Legrand;

08. The Post- A Guerra Secreta, de Steven Spielberg;

09. O Banquete, de Daniela Thomas;

10. Visages, Villares, de Agnés Varda e JR.


Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- O Insulto, de Ziad Doueiri
- Três Anúncios para um Crime, de Martin McDonagh;
- Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras, de Tom Volf;
- Carnívoras, de Jérémie e Yannick Renier;
- À Sombra de Duas Mulheres, de Philippe Garrel.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Roma



Reminiscências Arrebatadoras

O cineasta mexicano Alfonso Cuarón é reconhecido pelas obras E Sua Mãe Também (2001), Filhos da Esperança (2006), e os hollywoodianos Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) e Gravidade (2013). Agora em seu último longa-metragem, Roma, em que dirigiu, escreveu, produziu, montou e foi o responsável pela fotografia, um dos filmes mais comentados e aguardados do ano, que por méritos merece todo o clamor de púbico e da crítica. Por questões de logística de lançamento nos cinemas, foi barrado no Festival de Cannes deste ano, após decisão da organização de excluir produções da Netflix da competição. Mas no Festival de Veneza logrou êxito ao abocanhar o Leão de Ouro de Melhor Filme. Conseguiu ser incluído na programação do Festival de Toronto, e desponta como um dos fortes favoritos a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019, como representante do México, além de ser indicado em três categorias para o Globo de Ouro do próximo ano.

O título do drama memorialista não tem relação com a capital da Itália, porém a um bairro de classe média da cidade do México, próxima do aeroporto, que serve de cenário entre 1970 a 1971, para ser relembrada e contada as reminiscências da infância e o cotidiano dos familiares do realizador, através de uma família observada com acuidade de maneira silenciosa pela carismática Cleo (Yalitza Aparício- de ótima interpretação), que trabalha como babá e doméstica de confiança extrema, vive e divide um quarto pequeno com a irmã, também empregada. A protagonista foi inspirada na vida de Liboria Rodríguez (Libo), uma espécie de ouvidora do casal pelas passagens atritadas nas relações pessoais que envolvem a infância do diretor, nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. Também há algumas semelhanças com o documentário intimista brasileiro Santiago (2007), de João Moreira Salles, visto pela ótica do mordomo da família.

A produção se passa durante um ano, onde diversos acontecimentos inesperados afetam a vida de todos os moradores daquela casa, que dará origem a várias mudanças comportamentais, coletivas e pessoais. O machismo é cutucado com ironia, tanto na figura do marido pouco presente, como pelo namorado que rejeita a paternidade e ainda faz ameaças à doméstica. A gravidez e as consequências nefastas que irão advir, tais como o terremoto ocorrido durante a ida de Cleo ao hospital, soa como uma metáfora para o desenlace do parto. O protesto dos estudantes nas ruas com o namorado da personagem central em luta que acaba em mortes beirando o fuzilamento, também é outro presságio de mau agouro. O carro Ford Galaxy enorme que mal entra na garagem e a vida da patroa que terá de se reinventar após a separação, diante do choro compulsivo dos quatro filhos menores inconsolados são os sinais das mudanças iminentes e devastadoras. Não há pregação de falso moralismo entre patrões abastados e os subalternos sofridos, muito menos o panfletarismo recorrente nestas relações próximas em realizações menores.

A cena do mar revolto que quase traga a menina, no contraste novamente entre a vida e a morte em disputa para o renascer da esperança, brilhantemente filmada com a câmera entrando dentro d’água, sem mostrar a criança, cria-se um clímax de suspense com a expectativa agoniante. São tomadas longas de tempo e espaço no enquadramento em oposição aos movimentos panorâmicos, para cima, para baixo e para os lados, nos quais a câmera gira sem se deslocar. Por isto, Roma é um filme soberbo com tintas marcantes de influência da escola italiana do neorrealismo, a começar pela deslumbrante fotografia em preto e branco como elemento de desglamourizar as delicadas e efervescentes mazelas do dia a dia. Atinge no âmago pelo exemplar tom melancólico das situações que perdem a lucidez e ingressam nas conturbadas crises familiares, além da crítica social colocada em xeque pelo cineasta. Um retrato fiel de uma sociedade em transformação com ingredientes amargos dos novos tempos através da impactante narrativa com alta dose de densidade. Neste aspecto está bem evidente a presença dos grandes mestres Roberto Rossellini em Roma, Cidade Aberta (1945), bem como Luchino Visconti com Rocco e os Seus Irmãos (1960) e Vittorio De Sica em Ladrões de Bicicleta (1948).

Há outro aspecto relevante da produção que foi ressaltado pelo designer de produção Eugenio Caballero, ao revelar que 70% da mobília da casa no filme é oriunda da própria família do realizador, além de serem recriadas ruas e até uma avenida de acordo com as suas memórias, como a da cena em que as crianças caminham até o cinema, bem como as cabeças de cachorros empalhadas. Cria-se uma semelhança de realismo puro e próximo de um passado rememorado. Os sons de animais como os cães sempre presentes, os pássaros, o cotidiano com pouco barulho, exceto os aviões, daquele bairro suburbano, são fatores que contribuem para uma extraordinária referência do silêncio emblemático e da solidão aterradora dos personagens, que traz algumas similitudes com o drama O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.

Pelas abordagens profundas, sutis e sensíveis que são estampadas na telinha (na telona ficaria ainda melhor), Roma é um estupendo drama de intimismo pelas memórias do passado sobre um cotidiano reminiscente que tem na complexidade familiar as consequências marcantes que subsistem como forma para a elaboração do diagnóstico desta mini obra-prima de Cuarón. Dá para dizer, sem medo de errar, que é a realização mais madura, pessoal, intimista e completa, que beira ao épico, para atingir o ápice de uma carreira em evolução através desta fascinante autobiografia. Embora não seja um filme fácil e de rápida digestão, há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público. Porém, seu nível de autonomia estimulada com os adeptos da cinefilia é elogiável pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável na essência que se propõe como estabelecida no diálogo entre o espectador e o diretor. Um achado ímpar e inquestionável nesta realização em tempos de escassez de obras comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio de expressão e comunicação. Imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores de 2018.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras



Uma Diva Reverenciada

Um filme sobre a vida da grande diva da ópera do século 20, a bela e talentosa Maria Callas, uma das mais consagradas cantoras e intérpretes da história da música, teatro e cinema. Maria Callas- Em Suas próprias Palavras é dirigido pelo competente Tom Volf, que tem em sua filmografia Le Nègre de Molière (2005), filmado apara a televisão, e Les Aristos (2006). Realizado como documentário intimista obteve um resultado muito além da expectativa, numa narrativa sensível, poética e reveladora que passeia pela conturbada trajetória da personagem-título, através de versões e fatos verídicos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades, ou explicar didaticamente situações evidentes, mas que imprime boa velocidade num clímax certeiro. Lança um olhar sombrio de lembranças do passado, sem deixar de mostrar seus derradeiros dias, já abalada por crises existenciais como uma triste enfermidade da alma, tentando voltar aos palcos que a legitimou como uma soprano tecnicamente perfeita. O retorno sempre foi seu objetivo maior, para relembrar os episódios marcantes de sua virtuosa carreira.

A protagonista nasceu em Nova Iorque em 1923, vindo a falecer em 1977, aos 53 anos. Oriunda de uma família de imigrantes gregos, foi incentivada pela mãe a desenvolver os dotes artísticos desde cedo, teve aulas de canto lírico com a mentora Elvira Hidalgo no Conservatório de Atenas, mostrava-se disciplinada e boa aluna. Logo foi reconhecida internacionalmente como a melhor cantora de ópera de todos os tempos para a maioria dos críticos. O documentarista lança mão de entrevistas na imprensa, com imagens raras buscadas nos arquivos, além de vídeos pessoais amadores realizados pela própria personagem central, com revelações através de diários e cartas íntimas da biografada, em especial com a amiga Grace Kelly. Traça com isenção todo o percurso pessoal e profissional desta celebridade. A vida e a carreira da artista são reconstituídas pelo fio condutor de uma entrevista numa televisão preto e branco, de formato quadrado, dos anos de 1950. Mas é pela atriz francesa Fanny Ardant, que a viveu no drama Callas Forever, que irá emprestar sua voz às cartas confessionais de Callas, narradas em off, num achado significante para a emblemática realização.

O documentário aborda com simplicidade e boa dose de profundidade os grandes momentos do sucesso estrondoso, apresentando interpretações na íntegra como as árias de Donizetti e Rossini, La Traviata, de Giuseppe Verdi, La Sonámbula, de Vincenzo Bellini, e arrasa com Carmen de Georges Bizet. Um dos grandes traumas da diva, foi quando teve uma crise de bronquite e interromper a apresentação de uma ópera em Roma, considerado como um grande escândalo para o público e a imprensa. Foi hostilizada sem dó e nem piedade. Outra situação que o filme tenta esclarecer é a demissão no Teatro Metropolitan, nos EUA. Volf dá voz e apresenta a versão diferente da cantora sobre estes episódios nos bastidores com revelações pouco divulgadas na época. A recuperação aconteceu parcialmente, como ela mesmo diz, a família que imaginava nunca aconteceu, porque o destino guinou para a carreira iniciada precocemente aos 13 anos.

O realizador foca e aborda com farto material o relacionamento de Callas com Aristóteles Onassis. Uma paixão louca que a fez se divorciar do marido, num casamento fracassado, sem apoio e com um viés voltado para as finanças. Renunciou a cidadania norte-americana para se casar com o todo poderoso magnata grego, mas foi trocada pela viúva Jacqueline Kennedy. Outra decepção traumática, ao saber pelos jornais do casamento de sua grande paixão com a não menos linda “Jackie”. Com uma saúde já debilitada acabou por mergulhar numa depressão profunda, que foi curada com o tempo, se reconciliou com Onassis para ficarem bons amigos. O filme aborda a dualidade entre Maria, uma mulher frágil e ao mesmo tempo ousada para época, quando se divorcia, enfrenta as críticas de uma sociedade conservadora numa relação mantida ainda casada com um homem famoso, mas tenta sustentar a imagem de Callas num paradoxo que a leva para crises existenciais e que afetará a carreira profissional. São escolhas difíceis que a marcou pela trajetória de vida, como uma saga. Ao se distanciar e ser incapaz de unir estes dois aspectos cruciais, surgirão os problemas com cobranças severas, bem retratadas como elemento central deste extraordinário documentário.

Maria Callas- Em Suas próprias Palavras é um retrato pungente documentado da vida amarga de uma estrela e sua fervorosa vocação como cantora lírica, com todo seu magnetismo e brilho pessoal inigualável no universo cultuado da ópera, dito por muitos como entediante, porém quando não apresentada de forma correta, afirmava sem titubear a artista. Ainda teve participação expressiva na incursão pelo cinema, ao ser protagonista em Medeia (1969), filme de Pier Paolo Pasolini, um de seus grandes amigos pessoais. Mas gostava mesmo era de interpretar no palco e soltar a voz lírica nas apresentações que a consagraram. Uma pessoa sofrida, mas que acreditava em Deus, nunca desistia, e com muita força de vontade voltava para brilhar. Determinada a lutar contra o conservadorismo de uma época para uma mulher moderna que queria ser livre, imprimindo  muita coragem para enfrentar as rígidas regras morais daqueles anos.

Volf não tem o intuito de colocar julgamentos morais às atitudes no documentário. Transparece um relato conflitado entre os ideais feministas na defesa da mulher de espírito libertário, sem amarras, e com poucas raízes de vínculos afetivos maternais, embora fosse seu desejo íntimo. Havia um contraste na falta de um diálogo harmonioso entre a mulher Maria e a soprano Callas dedicada à ópera como elementos de amor e paixão pela vida e pela profissão, e, pelo que fez e deixou de fazer, que se fundiriam como uma simbiose, dizia: "Quem escutar todas as minhas interpretações vai me compreender por inteiro". Um filme sobre a trajetória marcada por ensinamentos reflexivos e existenciais nada convencionais num passeio pela história de La Divina e seu fascínio. Uma ode para os apreciadores da pura arte na companhia saborosa de uma genial artista com suas dolorosas lacunas pela vida nas armadilhas do destino neste tributo arrebatador.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O Banquete



Fogueira das Vaidades

Depois do polêmico filme histórico de época Vazante (2017), sobre a escravidão em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1821, pelo olhar de uma garota branca também vítima de uma sociedade austera, e ainda completamente ausente no sentido dos direitos iguais entre homens, mulheres e raças, Daniela Thomas fez ali sua primeira incursão sozinha como diretora. Agora está de volta com seu segundo longa, o fascinante O Banquete, inspirado em personagens reais. O drama foi retirado pela própria realizadora da mostra competitiva do Festival de Gramado deste ano, logo após tomar conhecimento da morte do jornalista Otávio Frias Filho (1957 - 2018), diretor do jornal Folha de S.Paulo, que inspirou o personagem Mauro, um intelectual tímido, sedutor com as mulheres e poderoso num país em efervescência política durante o controvertido governo Collor de Melo.

A cineasta começou a carreira no início dos anos 1980, no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York, mas sua estreia foi codirigindo Terra Estrangeira (1995) com Walter Salles. A mesma dupla realizou O Primeiro Dia (1999) e Linha de Passe (2008). Em 2009, codirigiu o longa-metragem Insolação, desta vez com Felipe Hirsch. Filha do famoso cartunista Ziraldo, Daniela começou a escrever o roteiro há mais de 20 anos, com a ideia original para ser uma peça de teatro. Além das lembranças de desenhistas, escritores, jornalistas, atores, músicos e demais artistas que frequentavam a residência da família, ela não se baseou especificamente em um evento que a tenha marcado durante as reuniões com seu pai, um dos fundadores do festejado semanário O Pasquim. Mas se inspirou em obras como O Banquete, de Platão, que se constituiu basicamente numa série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, e Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, sempre atual através dos tempos, em sua universalidade e na capacidade de antecipar conceitos apenas muito mais tarde consagrados, nesse caso, as teorias de Freud.

A trama de Daniela tem um formato consistente e teatral, em um único cenário numa noite apenas, no fim da década de 80, quando o Brasil engatinhava em uma democracia com suas fraquezas e o temor da iminência da retomada do governo pelos militares. Era uma época de extrema instabilidade política e econômica que causava uma incerteza geral no frágil equilíbrio da nação, onde a civilização flertava com a barbárie ditatorial. Nora (Drica Moraes) organiza um grande jantar para festejar os dez anos de casamento de Mauro (Rodrigo Bolzan), um editor de uma célebre revista- em que ela trabalha- com a icônica atriz Bia Moraes (Mariana Lima). O marido da anfitriã é o advogado Plínio (Caco Ciocler), que chega bêbado e fica sabendo da festa minutos antes. Dois colegas de trabalho são convidados: a jornalista Maria (Fabiana Gugli) e o colunista social Lucky (Gustavo Machado), além dos convivas surpresas Cat Woman (Bruna Linzmeyer) e Claudinha (Georgette Fadel). A tragicômica refeição é servida pelo jovem Ted (Chay Suede), alvo de investidas amorosas pelo sarcástico colunista e suas tiradas desconcertantes.

No grande jantar de iguarias requintadas regado com variadas bebidas importadas e muita fumaça dos cigarros em profusão, todos se derramam em teses sobre o amor e as relações sexuais. Falam sobre vaginas e pênis eretos e funções, flutuando entre Platão até Sócrates, num retrato sobre a intelectualidade brasileira em discussões prolixas, sendo desprovida de um senso crítico mais apurado para uma capacidade de questionar e analisar de forma racional e com alguma inteligência. Há uma total ausência na busca da verdade para questionar e refletir com profundidade sobre os assuntos colocados de maneira extravagante entre eles, com uma tensão e um pulsar esquizofrênico de ideias a cada minuto que se passa, partindo para explosões que ultrapassam o limite da sensatez, redundando em baixarias orquestradas. A diretora encaixa os personagens num clímax como se estivessem em uma terapia de grupo para exorcizar os fantasmas do passado e as soluções inacabadas de relacionamentos que ainda subsistem com mágoas e rancores. Há uma atmosfera de puro cinismo comprometedor que coloca em xeque aquela casta intelectual de esquerda, diante da arrogância, blefes e investidas libidinosas da turba apresentada como pessoas descoladas e libertárias. Neste contexto todo há a iminente prisão do editor da revista, que assinou uma carta aberta contra o presidente do país, e o seu enquadramento na lei de imprensa vigente à época.

O Banquete é uma simbiose escarrada da contradição dos convidados de conteúdo vazio que buscam um norte numa reunião em torno de uma mesa para discutir assuntos variados de uma burguesia decadente. Eles se insultam e se seduzem, armam pequenos barracos nas ameaças intercaladas por beijos e pequenos afagos com ou sem sentimentos numa orgia de intenções perversas com algumas rasgações de seda em meio a acusações levianas e iconoclastas. A realizadora demonstra eficiência autoral e domínio do ótimo elenco (todos estão muito bem, mas Drica e Mariana estão soberbas) para uma construção magnífica de personagens complexos em suas vaidades que irão se queimando gradualmente na grande fogueira de uma cilada macabra da anfitriã, onde todos já transaram entre si. Daniela ajusta com perfeição as falas com enquadramentos dos rostos tensos para extrair as angústias, anseios, frustrações e o medo da polícia bater na porta. O tom da história vai progredindo até atingir o ápice da histeria e se transformar numa catarse coletiva, em que ninguém escapa de alguma traição ou esteja imune pela inocência. São atitudes de falsas verdades com efeitos danosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção da lógica e do equilíbrio. Predomina o destempero pela facilidade da verve acusatória de não medir as consequências quase que trágicas neste vigoroso drama desafiador pelos diálogos e imagens corrosivos em sequências devastadoras.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

As Herdeiras



Universo Feminino

Vem do Paraguai o surpreendente drama familiar com conotação social que encantou o recente Festival de Gramado ocorrido em agosto deste ano. As Herdeiras arrebatou seis prêmios na categoria da mostra latina: melhor filme, diretor, roteiro, atriz (Ana Brun, Margarita Irún e Ana Ivanova), júri da crítica e júri popular. Com a direção autoral e promissora do estreante em longa-metragem Marcelo Martinessi, um cineasta desbravador em um mercado de poucas luzes e sem qualquer tradição em seu país. Para fazer cinema numa indústria completamente inexplorada, onde recém foi aprovada uma lei de incentivo fiscal ainda não regulamentada, teve que buscar recursos para esta realização em coprodução com a Alemanha, Uruguai, Noruega, Brasil e França. Antes de chegar aqui, faturou o Urso de Prata de melhor atriz para Ana Brum no Festival de Berlim de 2018.

O festejado filme do país vizinho, que antes já havia obtido retumbante sucesso com 7 Caixas (2012), da dupla Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, vem provar que não é só na Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, principais polos da América do Sul, que se produzem boas e inteligentes obras cinematográficas com conteúdo, essência, estética inovadora, pois também é capaz de conquistar espectadores. A pequena produção cinematográfica paraguaia está chegando lá e abre portas para o mundo com criatividade, bom gosto e minguados recursos financeiros, tendo muito ardor conjugado com o amor à sétima arte, bem demonstrado por este realizador motivado com um ânimo comovedor. Agora retoma o caminho com este drama, em que está bem caracterizado pelas sombras e as dores da alma nos ambientes da magnífica iluminação de pouca claridade, e crepuscular como indicativo de tempo. Com grandes janelas e portas, o casarão também é um personagem triste e envelhecido, ornamentado com móveis e utensílios de uma aristocracia decadente, soando como metáfora de uma América Latina e sua crise econômica.

O diretor com sua sensibilidade e aprofundamento dos problemas familiares e sociais, nos remete para uma semelhança estética das obras de Ingmar Bergman e Luchino Visconti, diante das imagens reveladoras num imaginário universo de mulheres dominando e concentrando forças que contrastam com as próprias fragilidades femininas em todas as cenas, em detrimento dos homens, que são meras figuras decorativas, ficam num plano secundário com ausência de diálogos e distantes dos conflitos que os cercam. Elas fazem suas festas e sofrem juntas no karaokê entre amigas, jogos de cartas entre idosas de classe média e alta com suas frustrações sentimentais sem pieguismos rasteiros. As prisões femininas e a injustiças de algumas detentas retratam lugares inóspitos e de má qualidade para a ressocialização, bem como os táxis sem a presença masculina e os hospitais com alas exclusivas. Há o viés feminino que cala com delicadeza e sutileza, sem o feminismo estéril e com aqueles discursos chatos e inconsistentes.

As Herdeiras tem como mote na abordagem a misteriosa Chela (Ana Brun), uma mulher com medo de dirigir, mas que com o tempo terá de superar suas dificuldades psicológicas na direção, aprenderá a perder a fobia da direção para sobreviver. Ela vive um romance com a extrovertida Chiquita (Margarita Irún), que acaba condenada e presa por acusação de fraudes em dívidas fiscais. A relação tem os problemas inerentes do cotidiano e ambas são oriundas de famílias ricas, mas que sofreram com as agruras de uma crise financeira sem precedentes. Acabam vendendo tudo dentro de casa, como o piano, quadros de valor artístico inestimável, mesas com cadeiras e demais objetos de algum valor, para sobreviverem os dias amargos de uma economia devastada por uma inflação galopante. Neste interregno de solidão a carência afetiva fala mais alto, Chela conhece a filha de uma vizinha, Andy (Ana Ivanova), quando transportava as senhoras como motorista particular, no dia a dia de espera e interrupções de visitas à companheira no presídio. A química dos olhares, o convite para tomar vinho, e a sedução da nova amiga levam as duas para um dilema diante da situação precária da personagem central, que tem a explosão de sua libido que a faz se redescobrir para sair da clausura e ir ao encontro do grande amor, mas para isto terá que deixar a aparente zona de conforto.

Uma relação que irá ter contornos para lançar luzes somente no desfecho, quando do retorno da antiga companheira ao casarão. É uma dolorosa decisão de uma união em vias de extinção e que poderá tumultuar a convivência no microcosmo familiar. Aumenta a dúvida com a aproximação das duas mulheres envolvidas emocionalmente, num clímax de amor maduro que pode acirrar os ânimos. A felicidade aparente de seus sorrisos e olhares reveladores esbarram num ambiente de desilusões e de fracassos, que nortearam a relação até agora duradoura, mas não completa, ao não se assumirem publicamente, depauperada por um conceito residual estereotipado como uma imoralidade. A nova relação soaria como uma redenção na escolha alternativa ousada e a busca da felicidade plena, através do silêncio como a marca deste enredo intimista que retrata a difícil realidade de dois seres humanos numa relação ainda pouco aceita na sociedade conservadora paraguaia. A própria equipe do filme sofreu constrangimento no Senado, ao receber homenagens pela premiação em Berlim, muitos senadores não compareceram em sinal de repúdio pelo tema retratado.

As Herdeiras tem como parâmetro o sensível Flores Raras (2013), de Bruno Barreto, em uma abordagem da relação homossexual conturbada no Rio de Janeiro, em 1956. Outro drama similar é Carol (2015), do independente cineasta norte-americano Todd Haynes, contido nas cenas de sexo, flutuou pelos caminhos sugestivos e as carícias sutis das preliminares. Martinessi não tem o fervor do polêmico Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, que impactou com uma cena tórrida de sexo explícito. O diretor paraguaio constrói uma atmosfera repleta de sutilezas, valorizando as imagens dos olhares e transições que são elaboradas com requintes delicados do tempo que avança com alguma melancolia este mosaico decadente das classes abastadas. Há uma ótima construção psicológica das personagens diante de suas fragilidades e envolvimentos como as descobertas em doses moderadas de erotização, intercaladas por momentos poéticos silenciosos e necessários para o desenvolvimento da história. Uma reflexão dos costumes e do moralismo familiar retratados com profundidade nos pequenos detalhes pela sugestão da lente de um diretor com um olhar de ternura e compreensão.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A Outra Mulher



Fantasias Amorosas

A indústria cinematográfica da França não é uma especialista do gênero comédias, tendo nos dramas seu forte, principalmente quando há conotações sociais ou abordagens sobre as relações humanas, os contrastes do amor e o existencialismo como temáticas aprofundadas. O longa-metragem A Outra Mulher é uma exceção à regra da comédia de costumes, com apimentados ingredientes de romantismo em dosagem bem comportada sobre as convivências amorosas e a fértil criação de um instável homem de meia-idade apaixonado pela esposa que se deslumbra com a namorada de seu melhor amigo. Cria-se uma atmosfera invejável e propícia para traições e fantasias em tom de drama conjugal com sabor agridoce em cenários paradisíacos, no qual os devaneios intensos vêm à tona e fisgam o espectador durante o desenrolar da história, dirigida por Daniel Auteuil, com adaptação da obra original de uma peça teatral escrita por Florian Zeller, responsável pelo enxuto roteiro.

A trama gira em torno de Daniel (Daniel Auteuil), um editor de livros reconhecido pelo seu poder inventivo acentuado que quase entra em transe ao receber em sua casa para um jantar o grande comparsa recém-separado, Patrick (Gérard Depardieu), acompanhado de sua nova conquista, a estonteante e bela Emma (Adriana Ugarte), uma aspirante à carreira de atriz de teatro, vestida de vermelho com o magnetismo de olhares de malícia. Antes, teve que fazer vários rodeios para convencer a esposa, Isabelle (Sandrine Kiberlain), muito amiga da ex-mulher de Patrick, para a turbulenta recepção. Embora tivesse um matrimônio quase perfeito, tendo em vista a perda do interesse de outrora pela companheira e o tédio reinante do trabalho, o protagonista não consegue escapar da tentação carnal dando asas à concepção exacerbada, ao deixar a ética e a cautela de lado, envolve-se numa viagem delirante para a realização dos prazeres libidinosos com elucubrações sexuais enlouquecidas, deixando todos perplexos e agoniados diante de situações inverossímeis de alucinações que perturbam sua mente e são colocadas em xeque.

Os amores com ciúmes como consequência e, em alguns casos, a traição como um elemento de discórdia prepondera nos temas sempre presentes no cinema francês. O mestre François Truffaut obteve resultados magníficos com Jules e Jim (1961) e A Mulher do Lado (1981), assim como o festejado Claude Chabrol retratou com eficácia em Ciúme- O Inferno do Amor Possessivo (1994). Da Finlândia veio outro ótimo filme O Ciúme Mora ao Lado (2009), dirigido por Mika Kaurismäki. As realizações de Philippe Garrel O Ciúme (2013) e O Amante de Um Dia (2017) também manteve a tradição de boas obras sobre a temática recorrente e indispensável para um bom contingente de espectadores fiéis. Auteuil, que estreou na direção com A Filha do Pai (2011), neste segundo longa por trás das câmeras, dá seguimento nestas abordagens, embora bem menores, são inequívocas circunstâncias da alma e do coração, no qual não falta o amor com ardor e dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura beleza como uma poesia dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo iminente da perda (mais que a própria morte) da pessoa amada.

Importante destacar a primorosa fotografia, o coeso e consistente elenco de atores e atrizes que impressionam pelos desempenhos sem reparos do quarteto, que dão o equilíbrio exato nesta trama bem urdida, aparentemente simples, mas com méritos na conotação sobre as fragilidades dos homens e suas fantasias, seus arrependimentos pelo prazer volúvel, os encantos juvenis na idade já madura, retratados com sutileza e bom alcance de sensibilidade. O cineasta disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano amoroso em toda sua extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes. A solidão, o abandono, a iminência da terceira idade e a traição estão presentes nos personagens envolvidos que representam os papéis da vida no dia a dia da ficção mesclada com realidade, da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida masculina do macho alfa com seus vacilos inerentes pela precariedade da incerteza do amanhã, como simbologia da existência e sua finitude, além dos descompassos que levam à procura da essência do amor e do prazer pelo instinto.

A Outra Mulher é um filme que deixa rastros pelo caminho que levam para a aleivosia, o rompimento e a reconciliação de um outro personagem mergulhado na solidão, além das idas e vindas nas relações conturbadas. Há simplicidade com alguma profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma à trama. Não há propriamente culpados apontados pelo diretor, exceto as fragilidades masculinas, diante das escolhas e as consequências que os personagens terão que enfrentar. A fuga e a espera pelos conciliamentos aguardados e desejados advindos de uma grande paixão. A infidelidade fugaz no prazer sexual como válvula de escape sem vinculação afetiva é contextualizada para uma reflexão sem preconceitos ou moralismos baratos, vistos como personagens vitimados pelo amor sem fronteiras. O cineasta cria imagens fabulosas nos passeios pelas ruas de Paris e nas gôndolas de Veneza, até o desfecho pouco inspirado, numa narrativa sobre as fantasias e fetiches, traições e reconstrução familiar, desta surpreendente comédia leve pela narrativa com ausência de arrebatamentos prolixos, mas com sentimentos enaltecedores da força e do papel importante da mulher em tempos de igualdade e conquistas universais, sem margem para retrocessos.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Cachorros



Rastros do Passado

Vem do Chile em coprodução com a França o drama Cachorros, da eficiente roteirista e diretora Marcela Said, a mesma de O Verão dos Peixes-Voadores (2013), com fortes conotações políticas e revelações traumáticas de um período nebuloso para os chilenos: a ditadura implantada pelo general Pinochet, através do golpe militar em 1973, com derramamento de sangue e desaparecimentos se multiplicando que jamais será esquecida. É como um grito sufocante preso na garganta e os fantasmas se movendo de um lado para outro, na busca de soluções e culpados que teimam em não aparecer, ficando na sombra da impunidade daqueles sombrios e terríveis momentos de uma nação esfacelada pela ausência de democracia, surrupiada com propósitos de aniquilar o comunismo que espreitava mentes atormentadas pela insanidade do poder.

Laureado com o Prêmio Platino de melhor ator do cinema íbero-americano para Alfredo Castro- conhecido pelas suas ótimas interpretações em No (2012), O Clube (2015), Neruda (2016), A Cordilheira (2017), e um ponta no seriado da Rede Globo Os Dias Eram Assim (2017)-, além de ser indicado ao grande prêmio da semana da crítica no Festival de Cannes de 2017, o longa de Said vem se juntar a outras realizações com a mesma temática de revirar o passado num contexto antidemocrático para trazer luzes ao presente, através da investigação cinematográfica de festejados cineastas, que não querem que caia no esquecimento as atrocidades cometidas num regime de exceção, entre os quais estão Pablo Larraín com o ótimo No e o aclamado Tony Manero (2008); Costa-Gavras com o clássico Desaparecido (1982); Bille August com o instigante A Casa dos Espíritos (1993); Andrés Wood com o perturbador Machuca (2004); Patricio Guzmán com seus extraordinários documentários Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Pérola (2015).

A trama de Cachorros gira em torno de uma mulher que aparentemente é submissa, mas que na realidade está à procura da verdade e tenta colocar em xeque uma busca aterrorizadora de uma lacuna na história encoberta pelo tempo. Mariana (Antonia Zegers) é integrante de uma aristocrática família chilena que vive em meio de picuinhas inerentes de uma falsa convivência na fogueira das vaidades. Apesar de todos os privilégios que a rodeiam, está muito infeliz em sua própria luxuosa residência. Sente-se desprezada pelo pai, um rico empresário (Alejandro Sieveking) que tenta fazê-la assinar documentos sem ler da empresa que eles mantêm, alegando que ela está enferma e não pode se estressar, enquanto que a própria mãe sumiu sem maiores explicações. O marido (Rafael Spregelburd) obriga a esposa a realizar um tratamento com hormônios para engravidar. Porém, a protagonista irá encontrar nos braços do seu misterioso professor de equitação Juan (Alfredo Castro) um refúgio amoroso, mas logo descobre que ele é um coronel acusado de diversos crimes durante a ditadura, quando comandava um órgão de defesa do país. Ele traz na sua biografia a participação em um governo que reprimia com extrema violência os grupos opositores e os manifestantes contrários ao regime.

A partir dos meandros deste romance com boas sacadas sobre a traição conjugal, Mariana vai se inteirando dos fatos numa atmosfera que contempla um segredo de pessoas próximas de sua família que virão à tona, deixando que a realidade apareça aos poucos para jogar luzes sobre um tenebroso período que estava na escuridão. Um dos méritos da diretora é saber explorar os anseios da protagonista sem excessos, como na cena construída com perspicácia sobre os apoiadores do regime em diálogos curtos nas reuniões familiares marcada pela presença maciça de homens num microcosmo machista que levam para questionamentos sobre suas participações, com respostas lacônicas de que era preciso e não poderiam se negar às ordens superiores, contabilizando tudo na conta do sistema, ao manifestarem-se que isto é coisa do passado. Com uma fotografia fascinante, um elenco coeso e sem estrelismos, eis uma boa abordagem com dignidade do ocaso de uma era estigmatizada pela barbárie de fuzilamentos, após sessões de torturas e o triste índice de milhares de desaparecidos, como sugere o enredo, com a ausência de imagens de registros. Há sutilezas com perspicácia neste filme interessante sem ser fabuloso, mas de pouca abrangência na linha de denúncias eloquentes de um período hostil e melancólico. Um mergulho sobre questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos e situações da política e as consequências sociais que abre as mazelas da tirania.

O epílogo deste drama com tom de suspense mostra o surgimento de uma justiça morosa até condenar, após o latente ódio visceral oriundo da repressão, mas pouco reforçado no roteiro. Uma história contada sobre o Chile e sua sociedade elitizada repleta de uma ignorância com tintas fortes da alienação burguesa em conluio com os crimes cruéis. Neste contexto está a própria personagem central, uma admiradora fervorosa de cães que não parece muito afeita em sair daquele mundinho de cinismo para se rebelar e romper com a zona de conforto e os privilégios da riqueza que desfruta. Está longe de desembarcar da submissão machista que se atrela. Vai levando a situação de acordo com os ventos que sopram, bem caracterizado pelo quadro da cachorrada e suas simbologias evidentes sobre as futilidades dos personagens em questão. Ao morrer um cão, troca-se por outro, numa alusão metafórica na troca de parceiros e a continuidade da vida, apontado pelo olhar da realizadora nesta bela obra sobre os infortúnios do cotidiano político e a manutenção do status quo aristocrático, sem abrir mão de nada. Apesar da carta no desfecho que só confirma o que já se sabia, as feridas abertas continuarão latejando com muita dor pelos indicativos da truculência que dominavam o poder.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Custódia



Pais e Filhos

Vencedor do Prêmio Leão de Prata de direção e o de melhor primeiro filme no Festival de Veneza do ano passado, Custódia é o marco da ótima e promissora estreia como diretor do ator francês Xavier Legrand, que também é o responsável pelo enxuto roteiro que vai gradualmente montando as peças que completam esse mosaico para decifrar o quebra-cabeça, e faz o espectador não tirar conclusões precipitadas no início, bem como ir entendendo as consequências nefastas sobre o ambiente daquela família conflitada, numa hábil construção estética, além de questionar o próprio voyeurismo do público e o que ele pensa sobre o problema lançado na tela, como no epílogo inusitado, sendo bem coadjuvado pela câmera imóvel da fotógrafa Nathalie Durand. Foi um dos longas mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e recebido com entusiasmo pela crítica internacional. Ainda esteve presente na 41ª. Mostra de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.

O mote do enredo do drama de Legrand está centrado numa família em processo de divórcio litigioso já encaminhado pelos protagonistas da dissolução dos vínculos remanescentes de um casamento com elementos doentios pela obsessividade. O casal Miriam (Léa Drucker) e Antoine Besson (Denis Ménochet) está numa luta acirrada para garantir a proteção do filho de 11 anos, Julien (Thomas Gioria) e da filha prestes a completar 18 anos, Joséphine (Mathilde Auneveux). A disputa no judiciário é centralizada sobre o garoto, tendo em vista que a moça tem direito sobre suas escolhas e pode seguir sua vida com independência. A mãe acusa o pai de ser violento e pede a custódia exclusiva de Julien, que é tomado quase como um refém entre seus pais, embora questione por vezes a ordem vigente, mas fará tudo para evitar o pior na briga beligerante entre os inconsequentes adultos.

O diretor, já no prólogo, coloca a juíza na audiência, ouvindo as partes, as advogadas e as testemunhas sobre as intrincadas relações no microcosmo familiar que se arrasta por quase um ano de batalhas jurídicas. É lida uma carta de acusações, perseguições e atos agressivos da figura paterna. São trazidos argumentos sensatos e razoáveis de ambos, entre as quais da mãe sumir com o filho, desrespeitando os dias de visita e impedindo chamadas telefônicas. A alienação parental é levantada como uma tese aterrorizadora por uma das defensoras, que afirma ser seu cliente vítima do contexto e que o menor é usado como isca para aproximações. O ressentimento está claro e notório na violência doméstica ali escancarada como vísceras expostas da brutalidade. A magistrada acaba optando pelo deferimento aos pais pela guarda compartilhada da criança, apesar do desgaste da separação ser nítido e flagrante, diante de diálogos ríspidos e rancorosos, repletos de mágoas e frustrações incuráveis que são estampados nesta realização dolorida e cruel naquele ambiente hostil de desavenças e dificuldades, para se chegar a um consenso de utópica harmonia.

Custódia se aproxima em semelhanças com outro notável filme do gênero, o russo Sem Amor (2017), de Andrey Zvyagintsev, exceto as metáforas e o viés político naquele drama que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Naquele, o garoto de 12 anos acaba desaparecendo misteriosamente para sempre; neste, o menino de 11 anos está muito presente e tenta desesperadamente apaziguar os ânimos para evitar uma tragédia, diante da estupidez escarrada maternal e paternal para o fato consumado da separação num clímax quase sem saída. No filme da Rússia, aflorava a falta de amor, o carinho, o egoísmo e a desatenção num tom seco do relacionamento mal resolvido. Custódia também possui uma narrativa direta e sem subterfúgios pirotécnicos, com diálogos contundentes, sem trilha sonora, apenas com o embalo das músicas altas de um aniversário familiar recheado de nuances com os conflitos nos bastidores sendo abafados os diálogos na iminência da guerra querendo eclodir. Mostra uma triste realidade construída a partir de uma imensa lacuna entre os pais e os filhos num cenário gélido de uma separação conduzida com atritos, rusgas e destemperos geométricos, através de uma estrutura fragmentada, onde é sugerida à plateia decifrar as situações emblemáticas insinuadas com a humanização dos personagens e suas disputas incivilizadas.

O filme retrata não só o colérico pai, que também tem problemas de relacionamento com seus pais, mas uma situação de estresse pelo rompimento de vínculos de relações conturbadas que são sedimentadas pela destruição, que desencadeia num final que transita do intimismo para o suspense num desenlace catártico de um marido que espanca a mulher e é durão com a prole. O cineasta mostra-se imparcial e apresenta todos como vítimas num contexto com a exposição das angústias e das malquerenças de um casamento que chegou ao fim sem soluções para uma convivência civilizada. Ao invés de dizer quem está com a razão, deixa o espectador descobrir a dinâmica dos personagens. Por isto, qualquer motivo é o suficiente para acender a chama da discórdia e a explosão acontecer de forma naturalista para um realismo extremado de uma rotina devastadora para os integrantes daquela célula em desagregação, com distanciamento de laços pela ausência de uma união de pouca amizade, carinho e afetuosidade. O rompimento de vínculos da integração, pelo estado de fratura nas típicas desmembrações de uma família em ruínas. Eis um magnífico drama ambientado com consistência, que questiona a responsabilidade dos adultos e seus fracassos sentimentais nas ações violentas que terminarão na asfixiante banheira como o último refúgio do marisco na briga ente o rochedo e o mar.

terça-feira, 26 de junho de 2018

O Amante Duplo



A Bela e os Gêmeos

O prolífero cineasta francês François Ozon, nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza nos últimos anos, está de volta com O Amante Duplo, uma adaptação do livro Lives of the Twins, de Joyce Carol Oates. Um dos filmes mais badalados no último Festival Varilux, com sucesso de público e visto com algum entusiasmo pela crítica internacional. Eis um suspense psicológico com boas pretensões estilísticas com o ingrediente eficiente de uma narrativa voltada para causar um certo desconforto na plateia. É provocativo na câmera que viaja pelo interior da vagina da personagem central no prólogo, com a elipse certeira que remete para os olhos, o corte radical dos longos cabelos, para só depois ir revelando sua vida na terapia, utilizando espelhos com imagens para focar a ideia principal do duplo na trajetória da vida da paciente.

Depois dos longas O Refúgio (2009), Potiche-Esposa Troféu (2010), Dentro de Casa (2012), Jovem e Bela (2013) e o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer. Agora o diretor constrói um painel psicológico para contar a amarga história de Chloé (Marina Vacht- a estonteante atriz que também foi a protagonista em Jovem e Bela), uma mulher reprimida sexualmente, que oscila entre a esterilidade até a histeria, e constantemente sente dores na altura do ventre. Irá buscar ajuda para resolver seu problema em sessões com o psicoterapeuta Paul (Jérémie Renier), um psicólogo especialista nas questões que lhe afligem. Ao contar seus dilemas, transfere suas angústias na ânsia de soluções, mas a perturbada moça acaba por se envolver emocionalmente com o profissional, logo se apaixonam e vão morar juntos.

Diante da inusitada situação, é encerrada a terapia e Paul indica uma colega para dar continuidade ao tratamento, mas a companheira decide ir a outro de sua livre escolha, quando descobre alguns segredos do namorado, sendo que um deles é a existência de um irmão gêmeo, também terapeuta, de nome Louis, com quem passa a ter um caso. O realizador conduz o enredo com distanciamento ao mergulhar nas intrincadas relações familiares, apresenta os irmãos com personalidades visceralmente distintas. O companheiro é um homem pacato, ético, carinhoso, compreensivo, adora leituras e se mantém como um personagem clássico e pouco inventivo na intimidade. Já o outro irmão é complexo, antiético, liberal nas relações sexuais, diametralmente oposto no trato e na profissão, de poucos escrúpulos, tem na rotina de momentos prazerosos pontilhados pela libido sem fronteiras. São situações criadas com razoável esmero pelo diretor na sua versatilidade temática e o ingresso em questões conflitantes numa trama urdida sobre as reminiscências que pairam da loucura originária dos conflitos interpessoais.

Ozon se utiliza de recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito da protagonista e seu medo na viagem em busca da verdade e das revelações que lhe aguardam, bem como as causas e efeitos que proliferam para os limites da ficção imaginária com a realidade que a acompanha na irracionalidade. Um filme construído pelo olhar do diretor que surpreende em seu desenlace diante dos traumas decorrentes na perversão da sexualidade e suas alternâncias com a dignidade questionada como um fardo insustentável e pesado que tomam grandes dimensões dos relacionamentos anteriores, com o gosto implícito das distorções pela representação pouco realista dos fatos. O vazio e a alusão de uma desorientação sexual estão soltas e sem uma atmosfera consistente, pela falta de uma melhor construção psicológica de Chloé. Embora haja algumas comparações, apenas lembra o cultuado e melhor inspirado suspense do gênero Gêmeos- Mórbida Semelhança (1988), de David Crobemberg, este sim, bem mais profundo.

O Amante Duplo é um thiller psicológico que tem no formato a simbiose de situações para confundir o espectador. Este é o intuito do roteiro complexo para ludibriar sobre a inexistência de locais frequentados pela personagem e a negativa do namorado sobre a existência de um irmão gêmeo. São colocadas variantes sobre quem está mentindo para que as alucinações sejam expostas como a descoberta do enigma na construção do enredo, como nas cenas que envolvem um gato de estimação que desaparece na casa de uma vizinha, o presente com o coração de um felino e uma suposta moça em estado vegetativo numa cama. Até onde é real ou entra a fantasia numa atmosfera de pesadelos, bem como quem é o manipulador do relacionamento da união, são questionamentos lançados. As sugestões visuais são bem elaboradas, mas as conclusões sobre placenta e os cromossomos que fertilizam os gêmeos são cansativas e desnecessárias, quando a trama é direcionada para as explicações didáticas e rasas, como se fosse uma aula de genética numa premissa falsa e redundante.

Os delírios e conflitos estão distribuídos num clímax de ambiguidades do estado mental da jovem. A galeria de arte é o espaço em que o realizador se utiliza para representar os quadros com cópias e falsificações, numa alegoria da vida levada pela paciente e sua insanidade. Tudo é duplo, nada é único. Apesar de irregular o longa, o mérito maior está em não deixar a plateia indiferente, embora a realidade seja controversa, ao apresentar as neuroses constantes. Em outro suspense similar, Carnívoras (2018), dos cineastas belgas Jérémie e Yannick Renier, há uma retrato bem mais convincente sobre os efeitos traumáticos pretéritos que são conduzidos com melhor desenvoltura num desfecho pouco convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em um tom da falsa justificativa dentro de um mosaico pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre pela irmã bem-sucedida. O Amante Duplo traz uma reflexão menor sobre a condição humana e fantasmas existenciais da rivalidade fraterna que desemboca em soluções mais pragmáticas sobre gêmeos, repletas de duplicidade e exageros na pretensão de uma obra mais profunda.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Festival Varilux Cinema Francês (Marvin)



Homofobia Intolerante

Outro aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês foi Marvin, com direção da francesa Anne Fontaine. A cineasta, que depois de atuar em algumas comédias, dirigiu seu primeiro filme, Les Histoires d´amour finissent mal…en general (1993), ganhador do Prêmio Jean Vigo, sendo dela também o elogiado Lavagem a Seco (1997), premiado na Mostra de Veneza; o drama psicológico Nathalie X (2003); A Garota de Mônaco (2008); o festejado Coco Antes de Chanel (2009), Meu Pior Pesadelo (2011); Amor Sem Pecado (2013) e Gemma Bovery (2014). Retorna agora com o lançamento deste multifacetado drama familiar, abordando bullying, homofobia, xenofobia, racismo, preconceito e problemas de imigração. Talvez aí esteja seu grande pecado, ao retratar vários temas, acaba não se aprofundando especificamente em nenhum.

A trama tem como protagonista Marvin Bijou (Jules Porier como o pré-adolescente e Finnegan Oldfield quando jovem) que está fugindo de tudo, ou seja, da aldeia de Vosges, próximo de Nancy, onde mora; depois da família, da tirania do pai (Grégory Gadebois), da renúncia da indiferente mãe e por último da intolerância, rejeição e humilhações as quais era exposto por tudo que faziam dele uma pessoa diferente aos padrões comportamentais moralistas daquele vilarejo, exceto a bondosa diretora (Catherine Mouchet). A infância e adolescência do personagem central é sofrida e triste, não só por ser filho de uma família operária pobre, mas principalmente por ser gay e sofrer constantes ultrajes no colégio, com o frequente bullying dos colegas de aula, naquele lugar infestado pela homofobia intolerante pelo conservadorismo presente nos gestos e atitudes de incompreensão hostil para quem ousar bater de frente ou contrastar as ideias ali encravadas e pouco solidárias com o politicamente correto estabelecido por um expressivo contingente de uma sociedade deformada pelo preconceito da realidade sombria para o desenvolvimento de mudança de usos e costumes.

O filme é uma adaptação do romance autobiográfico En finir avec Eddy Bellegueule, escrito por Edward Louis, no qual a obra original narra a infância e adolescência do escritor, como filho de uma família muito pobre na Picardia, teve rejeição e humilhação num local tomado pela homofobia. O roteiro escrito pela diretora e Pierre Trividic para o cinema faz um painel das vítimas neste contexto de violência numa região do interior fortemente marcada com tintas remanescentes de um racismo, xenofobia e aversão à diversidade sexual repugnantes e persistentes. As intolerâncias não são somente quanto à distinção de raças, mas também pela discriminação sexual aos homossexuais e o rancor destilado aos imigrantes. Há um tangenciamento da pouca generosidade com toques de raro humor e a ira latente do pai, dos colegas e moradores dali.

Fora daquele lugar preconceituoso, o rapaz descobre em Paris o teatro e pessoas aliadas que, finalmente, vão permitir que sua história seja contada por ele mesmo, onde a realidade vira ficção, recebendo o apoio de Isabelle Huppert, que interpreta ela mesma, e de um amigo rico (Charles Berling), que o ajuda financeiramente, bem como do gentil e intelectual gay, Alex (Vincent Macaigne), que é uma espécie de mentor e orientador para todos os momentos. É um retrato fragmentado que comove e consegue ir além do espelho para uma busca de um futuro promissor. São representados alegoricamente os insultos homofóbicos nos corredores da escola, as surras dos colegas, as cuspidas no rosto e o sexo oral, as agressões do pai, a fragilidade com a indiferença da mãe e os irmãos num contexto de revolta numa situação de miserabilidade e pouca esperança para um sofrimento intenso. São agressões diluídas em uma vida marcada pelo constrangimento real à sexualidade, que trazem um peso forte da escolha da representação extremada da violência que transforma o protagonista num sofredor daquele calvário, mas com estereótipos redundantes das pessoas ao seu redor na narrativa pulverizada sobre a família perversa.

Marvin é uma busca para encontrar os elementos de um mundo complexo e desprovido de carinho, onde prevalece as ideias homofóbicas da tradição e da religião com o constante medo de um olhar afetivo, que irá sugerir o rancor, ao invés de boas maneiras civilizadas de lidar com os problemas inerentes dos que pensam diferente e tem suas opções fora daquele contexto. São expostas as cicatrizes emocionais que deixaram o rapaz que rebatizou seu nome, possivelmente para se livrar dos fantasmas do passado. Fontaine conduz para uma reflexão de que o tempo dará os arranjos de forma natural, numa clara contradição do mecanismo incrustado da homofobia e da redenção patriarcal no desfecho, ao insinuar de que também o pai é um enrustido homossexual. O drama vira uma espécie de torre de babel de pouca eficiência e aprofundamento em questões lançadas como subtemas da imigração, do preconceito racial e da xenofobia. Desnecessárias estas pinceladas afoitas no roteiro estéril por ser multitemático, que acabam tirando o foco da homofobia e do bullying, dando um valor menor da transformação na vida do protagonista para as artes e sua realização no teatro, ao dialogar com os acontecimentos do passado, repassando ao público uma realidade que ficou para trás de costumes e do moralismo abordados com rasa profundidade.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Festival Varilux Cinema Francês (Carnívoras)



As Irmãs

Um dos aguardados lançamentos neste Festival Varilux de Cinema Francês era o drama familiar com requintadas pitadas de suspense psicológico Carnívoras, dirigido com sobriedade e sutileza pelos competentes atores belgas Jérémie e Yannick Renier, no primeiro longa-metragem como diretores, também responsáveis pelo roteiro. O filme tem traços autobiográficos dos irmãos cineastas que remetem para uma história instigante de duas irmãs atrizes. É construído um universo perverso advindo do tempo que passa, mas não deixa cair no melodrama fácil, deixando a sensibilidade das situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente de uma acidez voluntária de duas vidas que se intercalam lentamente, com a exposição visceral da ambição e da inveja como elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado pelos realizadores neófitos, porém deixam suas marca como promissores na carreira.

Como um novelo que se desenrola, a dupla de diretores vai lançando as situações diárias típicas de conflitos familiares inerentes. A trama centraliza em Mona (Leïla Bekhti), a irmã mais velha de 29 anos, que tenta decolar como atriz, após terminar seu curso de artes dramáticas. O tempo vai passando e ela não consegue um papel marcante na carreira, exceto onde ela contracena num teste com um cavalo, interpretado por um figurante, ao terminar a cena a insegurança se expressa no rosto decepcionado. Com poucos recursos, vai morar com Sam (Zita Hanrot), sua irmã mais nova, também atriz, que está em meio às gravações de um filme com pretensões maiores. Ela vive com Manuel (Bastien Bouillon) e o filho menor do casal (Octave Bossuet). Mona tem um olhar sombrio sobre a vida, cobiça como prioridade o lugar da mana, seu marido, a criança, e a posição social que leva, pois lhe falta o sucesso profissional, conjugal e financeiro. Sam é despojada e tem uma visão colorida do cotidiano, embora sua realidade seja controversa, ao apresentar algumas neuroses da infância, que são bem exploradas pela irmã antiética e manipuladora ao extremo.

O thriller tem o viés da reflexão sobre o conflito com tensões arrebatadoras do relacionamento e o vínculo no microcosmo familiar causados pela disputa de espaço, a terrível baixo estima da pseudovítima do sistema, no qual aflora sem piedade e funciona como um fator agressivo e perigoso de quem tem as faculdades mentais duvidosas e distante da lucidez, aparentemente. A temática é bem estruturada sobre a inveja, o ciúme, e a ambição é bem explorada e mostrada com alguma crueldade, como elementos de uma retórica de perda e rejeição pelo sangue frio da protagonista vazia e artificial. Eis uma mulher que tem na gélida relação da adversária por ela escolhida, que chega a enganar até a própria mãe (Hiam Abbass), que a vê como a filha certinha e por isto é a queridinha numa embalagem bonita, mas sem conteúdo e com um espantoso senso de manipulação, que conduz para o desenfreado artifício maquiavélico dos fins que justificam os meios.

A dupla de diretores cria uma realização dolorosa que traz uma insustentável leveza com sutileza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, para mesclar situações presentes com perversidade, para retornar e compreender as razões do passado deste magnífico filme, mas em que está embutida uma melancolia que fisga o espectador com a crítica situação dentro de um contexto chocante e com os malefícios inerentes que irão fluir na tela de maneira inexorável pela reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem que ganha tons de uma paranoia obsessiva. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da insignificância profissional pela jornada de aventuras de conquistas a qualquer preço com uma magia peculiar. Retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Tudo contribui para a crise no processo fragmentado do esvaziamento amoroso e profissional. A essência da vida e a existência estigmatizada estão presentes, ainda que num momento de ilusória harmonia entre irmãs na busca da precária felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força da maldade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está angustiada pelos transtornos diante da iminência do rompimento e a perda.

Carnívoras tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda da família abordada pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, não é à toa que são os coprodutores do longa. Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelos realizadores que direcionam para um desfecho pouco convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom da falsa justificativa dentro de um mosaico neste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre pela irmã bem-sucedida. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais da rivalidade fraterna que mergulha no sofrimento de uma inveja tresloucada, na solidão, e se escancara como resultado no desfecho desta perturbadora realização que desemboca em rupturas de insuperáveis hostilidades na catarse da tragicidade pela doentia mente subconsciente.

terça-feira, 22 de maio de 2018

À Sombra de Duas Mulheres



Relações Amorosas

O veterano cineasta francês Philippe Garrel, discípulo da Nouvelle Vague, no qual ingressou bem depois de fundado, para dar continuidade com o inerente naturalismo da proposta do movimento que revolucionou o cinema. Tem em seu currículo o longa de estreia Marie Pour Mémoire, ganhador do Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de Hyères, em 1969, também abocanhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992 com J'Entends Plus la Guitare, prêmio que voltaria a receber por Amantes Constantes, em 2005. É detentor de uma filmografia elogiável como A Fronteira da Alvorada (2008); Um Verão Escaldante (2011); o autobiográfico O Ciúme (2013), que dirigiu seu filho Louis Garrel; e a última realização, Amante Por Um Dia (2017), outro belo e sensível drama familiar que estreou este ano no Brasil.

Chega somente agora ao circuito comercial brasileiro seu penúltimo filme, À Sombra de Duas Mulheres, realizado em 2015. Novamente se debruça sobre a temática da fidelidade e as consequências dos amores com ciúmes e traições como um ingrediente de molho para apimentar uma relação esfriada pelo tempo de uma convivência de muitos anos que cai na rotina do cotidiano implacável. Neste seu drama atual, segue a mesma senda e não decepciona seu público fiel das inequívocas circunstâncias da alma e do coração. Não falta o amor com ardor e dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura beleza e poesia, como na cena do epílogo. Tudo está encaixado dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa amada.

Pierre (Stanislas Merhar) é um aborrecido cineasta de documentários independente, de poucos recursos, que busca uma linha autoral, é casado com Manon (Clotilde Courau), uma roteirista e produtora. Eles sobrevivem realizando trabalhos temporários para ter suporte nas produções mais arrojadas que pretendem no futuro. Estão em meio às filmagens de um casal de anciões, símbolos da resistência da França durante a ocupação da Alemanha nazista na II Guerra Mundial, porém o desfecho revelará a verdadeira posição dos seus heróis. Há um viés político na trama, mas seu foco principal está na investigação com acuidade das relações do microcosmo familiar e as paixões enlouquecidas da instantaneidade em rota de colisão com os amores duradouros de seus personagens fragilizados pelo tempo. Apesar de amar Manon, Pierre acaba conhecendo Elizabeth (Lena Paugam), uma estagiária de História, que conheceu numa cinemateca. A relação com a amante, as escapadas e o desejo em manter o affair, entra em rota de colisão com a companheira. Pretende manter as duas mulheres, mas algo está complicando a situação. O inesperado acontece como uma surpresa e o sentimento de culpa e perda estarão colocados em xeque pelo realizador, como uma proposta madura para uma abordagem consistente e sem fricotes ou subterfúgios, num roteiro conciso, enxuto e direto ao ponto, escrito por Jean- Claude Carrière, Arlette Langmann, Caroline Deruas-Garrel (esposa do diretor) e o próprio cineasta.

Importante destacar a primorosa fotografia em preto e branco, num tom melancólico e sem glamorização das relações, dá o equilíbrio exato nesta trama bem urdida da história retratada. O cineasta disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor em toda sua extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes pelas traições, numa obra que relembra com charme, além de provocar e instigar, através da consagrada estrutura da Nouvelle Vague. A solidão, o abandono, a iminência da perda e a traição conflitando com a fidelidade estão presentes nos personagens envolvidos que representam os papéis da vida no dia a dia da ficção e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã, como simbologia da existência e a reconquista como um saboroso elemento constitutivo poético e infinito.

O genial Alain Resnais, um dos expoentes do famoso movimento da nova onda, foi insuperável ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que se torna ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio em Amar, Beber e Cantar (2014), um drama de sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como em Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011). Garrel tem uma admiração pelo velho mestre já falecido, por isso se esmera como um bom seguidor na essência do amor, do ciúme, a fidelidade e a traição. No filme O Ciúme, a relação da dúvida sobre a lealdade é visível e encaixa com precisão no enredo de um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com uma atriz e levam uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades financeiras. Já no drama Amante Por Um Dia, a temática das relações atormentadas está presente outra vez, em que a filha de um professor e a namorada dele se aturam, mas uma desconfia da outra, até que ambas acabam se aproximando e ficando amigas, mas irão deixando rastros pelo caminho que levam para o rompimento.

À Sombra de Duas Mulheres é uma abordagem mais elaborada e com mais verossimilhança na proposição da reconciliação de dois seres em litígio, porém eles têm algo em comum. São personagens mergulhados na solidão do cotidiano, além das idas e vindas conturbadas, há uma simplicidade de rara profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao longa. Não há culpados dentro das escolhas livres, ou induzidas, diante das consequências que o casal irá assumir. A iminente perda de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual sem vinculação afetiva, como pessoas maduras pelas atitudes tomadas livremente, além do desconforto do flagrante e da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos tacanhos pelo falso moralismo. O realizador cria belas imagens para uma escolha amoral num preto e branco estristecido propositalmente, como nas sequências que indicam a felicidade sendo tragada pela decepção sombria nas andanças pelas ruas do bairro, e no desfecho de exorcismo de fantasmas. Ao desenvolver a narrativa com a reconstrução, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do grande amor incondicional e suas virtudes, que deixará fluir pela ternura, mas dentro de um vazio da realidade dolorida e prazerosa, paradoxalmente, neste admirável drama intimista.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Os Fantasmas de Ismael



Triângulo Amoroso

O drama psicológico Os Fantasmas de Ismael é uma realização que tem como principal atração o festejado trio de intérpretes da primeira linha do cinema francês: Mathieu Amalric, Marion Cotillard e Charlotte Gainsbourg. Na direção, está Arnaud Desplechin que tem uma trajetória razoável e nunca chegou a despontar como um cineasta inquestionável, sem marcar com uma obra arrebatadora, diante de sua diversidade de temas e subtemas dentro de seus filmes. Raramente se aprofunda, razão pela qual não empolga sua filmografia de resultados apenas discretos. É conhecido do público cinéfilo pelas obras Reis e Rainhas (2004), Um Conto de Natal (2008), Terapia Intensiva (2013) e Três Lembranças de Minha Juventude (2014).

O longa atual do realizador é mais um destes condensados que mistura ficção com realidade, com um filme dentro do outro, ausência de coesão, com uma sugestão de uma metalinguagem rasa, que pouco atrai a atenção do espectador mais exigente e atento à proposta principal. A narrativa é inconsistente, tanto para o que se vê na tela como uma suposta inovação, bem como para o que está sendo filmado dentro do drama proposto propriamente dito das relações conturbadas dos personagens em conflitos amorosos e existenciais. O enredo segue uma ciranda de amores rompidos bruscamente, reaparições do nada e o envolvimento de uma terceira pessoa que fica no olho do furacão, mas que apesar da paciência, cansa, vai embora, e retorna no vaivém segmentado de forma artificial pelo resultado de um roteiro com oscilações de altos e baixos, assinado pelo diretor em parceria com Léa Mysius e Julie Peyr.

Desplechin cria um clássico romance dividido num amor a três. O cineasta Ismael (Mathieu Amalric) está traumatizado pelo desaparecimento abrupto da ex-mulher, Carlotta (Marion Cotillard), com quem se casou quando ela tinha 20 anos. Simplesmente a mulher sumiu, teve uma vida promíscua e por último um relacionamento sério finalizado na Índia. Retorna ao lar num belo dia, após 21 anos, 8 meses e 6 dias, tempo este contabilizado com exatidão pelo marido abandonado. Ela encontra o ex-parceiro numa relação aparentemente duradoura e fortalecida com a astrofísica Sylvia (Charlotte Gainsbourg), uma pessoa que pensa no infinito e em ter filhos com ele. Entretanto, a repentina reaparição irá causar fissuras com uma flagrante desestabilização do casal apaixonado que acarretará num conflito psicológico de abalos sísmicos que tomam conta daquele radiante cenário da região costeira litorânea, captado pelas lentes da bela fotografia de Irina Lubtchansky.

O atormentado personagem central está em meio às filmagens de seu novo filme sobre a vida do irmão bem-sucedido, Ivan (Louis Garrel). Logo, entra em um processo de estresse, larga tudo e refugia-se na casa que morava na infância. Mas o produtor irá buscá-lo no seu retiro espiritual, agora dedicado a cuidar de galinhas. Desplechin não aprofunda nem o tema principal e sequer a subtrama, com elipses sendo realizadas a bel-prazer. Carlotta custa a se reaproximar do pai (Hippolyte Girardot), mas quando decide, há um choque no ancião com uma situação que irá desencadear no triste e derradeiro episódio da emoção desmedida fatal. As relações conflitadas são fragmentadas como indicativo de possível causa para a fuga como elemento de mote construído numa mescla de alguma rejeição, antes do desenlace. Os diálogos pouco elucidam e convergem para um acontecimento que estava desenhado como pouco improvável de uma rotina estabelecida pela amargura da pouca idade ao contrair matrimônio, embora sem uma motivação eloquente, deixa alguns resquícios da projeção de liberdade para sair de Paris e ganhar o mundo. Eis um núcleo em processo de dissolução dos vínculos ainda restantes do casamento, mas com uma reflexão reduzida dos fatores que motivaram as situações demonstradas.

O experiente Amalric sucumbe como um caricato diretor em crise; além de Cotillard estar insossa e pouco expressiva, numa atuação equivocada; já Charlotte se salva com uma performance muito boa, ilumina a tela em suas aparições para dar vida e segurar a trama como pode nos vínculos de fratura nas típicas relações familiares em rupturas de amarras de uma realidade ambientada numa mescla ficcional com um drama de frágil consistência com características particulares. Não engrena pela ausência de harmonia nas sequências de tempo de tela com as episódicas alternâncias de peculiaridades distintas e pelo roteiro confuso e sem força. Ou pela perda da dramaticidade envolvendo casais que buscam curar cicatrizes e fantasmas do passado, ou ainda pela comicidade pouco sutil com hilárias representações de um filme dentro de outro filme. Os Fantasmas de Ismael é estruturalmente uma espécie de continuação com situações evidentes de uma repaginação da realização anterior, Três Lembranças de Minha Juventude. Os planos de continuidade com personagens sendo colocados à margem, deixam o drama sem um clímax de uma narrativa satisfatória pela falta de foco, com a desmesurada incongruência que o torna desinteressante no desenrolar da história, para um epílogo novelesco convencional e previsível.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Baseado em Fatos Reais



Crise da Criação

Roman Polanski, aos 84 anos, está em boa forma e é um dos mais competentes cineastas em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe seu destino no território dos EUA e países que façam extradição para lá. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Em 2010, preso na Suíça, não pôde receber o Urso de Prata de direção, em Berlim, por O Escritor Fantasma (2010). Voltou a participar do Festival de Cannes com A Pele de Vênus (2013), penúltima realização, baseada na peça Venus in Fur, do norte-americano David Ives, que por sua vez inspirou-se no romance de Leopold von Sacher-Masoch, publicado em 1870, que viria tornar-se célebre definidor da fábula clássica da dominação sexual nas relações por perversão, advindo dele a terminologia masoquismo.

Já o excelente longa O Escritor Fantasma, adaptado do romance do jornalista e escritor Robert Harris, retrata um ex-ministro inglês chamado ficticiamente de Adam Lang, casado com Ruth, vivia em semi-exílio numa ilha do estado de Maine, nos Estados Unidos, que na realidade nada mais é que as memórias do primeiro-ministro britânico Tony Blair e suas incursões desastradas e subservientes ao governo americano de George W. Bush. É criticado asperamente por uma imprensa livre, por ter autorizado a prisão e tortura de suspeitos de terrorismo, em conluio com o governo americano, exatamente como aconteceu entre Blair e Bush. Trabalha sua autobiografia, pela qual recebeu US$ 10 milhões antes de escrevê-la. Contratado pela editora como ghost writer, McCrea morre misteriosamente. Logo tem seu substituto, passando então a realizar suas pesquisas para terminar o livro de memórias de Lang/Blair. Havia similitudes com Budapeste (2009), de Walter Carvalho, baseado na obra de Chico Buarque de Holanda, onde um homem separado por dois continentes e dividido por duas mulheres, tem na fascinante viagem a descoberta da capital da Hungria, com suas peculiaridades e as situações políticas controversas e ricas de um passado sempre presente de ditadores como estátuas descendo dentro de um barco enferrujado e decadente, pelo Rio Danúbio, numa metáfora do ocaso do comunismo, contadas por um escritor anônimo.

Agora em sua última realização, Baseado em Fatos Reais, Polanski retoma a temática e dá uma espécie de continuidade ao filme O Escritor Fantasma, ao adaptar para a telona o livro de Delphine de Vigan, em parceria com o realizador francês Oliver Assayas. O roteiro é inspirado não por acaso em Acima das Nuvens (2014), de Assayas, que retrata a relação desarrazoada de sentimentos entre duas mulheres, ponto nevrálgico daquela produção francesa. Porém, em sua nova realização, o diretor polonês se afasta da política e vai fundo na perseguição de uma admiradora em uma sessão de autógrafos de uma escritora famosa para abordar a invasão de privacidade como uma neurose obsessiva, valorizar o realismo e lançar a tênue divisória entre a fronteira da realidade com a ficção, através de uma narrativa sobre a vida alheia, as redes sociais e as cartas anônimas endereçadas à protagonista em crise de criação e acusada de apropriar-se de dramas dos outros, tema também visto recentemente na ótima coprodução da Argentina com a Espanha O Cidadão Ilustre (2016), da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat.

O thriller psicológico, gênero em que o diretor é mestre, como no tensionamento sinistro e apavorante de O Bebê de Rosemary (1968), obra-prima do terror; o instigamento de O Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense e que está presente em Baseados em Fatos Reais, como nas aparições por trás das janelas da fã endiabrada. O cenário da obra atual é o lançamento do mais novo best-seller de Delphine (Emmanuelle Seigner- casada há mais de 20 anos com o cineasta polonês), baseado na história de sua própria mãe, que conhecerá por acaso Elle (Eva Green), uma de suas admiradoras, que lhe pede para autografar um exemplar e se diz escritora, com trabalhos de ghost writer em biografias de celebridades. Aos poucos as duas se aproximam, a moça se torna cada vez mais íntima e presente na vida da autora consagrada. Cria-se um vínculo estreito e quase que insuperável, porém por mais que se sinta incomodada com a onipresença da nova amiga, Delphine permite a aproximação devido à sua fragilidade emocional, por sentir-se solitária, vulnerável com a ausência dos filhos que saíram de casa e a distância do marido (Vincent Perez) sempre envolvido com o trabalho na TV, onde é apresentador de um programa literário. Acaba sendo dopada de remédios pela amiga imaginária ou não, eis a grande questão lançada, que cuidará de sua agenda pessoal e a isolará do mundo num lugar distante para escrever o próximo livro, diante da crise do poder criativo ausente pela falta de novas ideias.

Polanski imprime consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações dolorosas e instigantes da intelectual submissa com a dominação tresloucada da personagem usurpadora, que dará durante a trajetória algumas pistas para o espectador optar pela ficção imaginária ou pelo realismo duro e doentio, diante da sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional, que irá desfazendo o quebra-cabeça, numa verdadeira ciranda de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões quase que humilhantes, num desdobramento que segue um ritmo fervoroso até o epílogo, por ser complexo e provocativo, pois consegue fazer de um encontro de amizade e solidariedade numa sessão de autógrafos, para uma transformação do cotidiano da vida numa prisão de almas amarguradas e ressentidas em busca da libertação de seus fantasmas. O resultado de Baseado em Fatos Reais é um suspense psicológico equilibrado e envolvente para uma sensível reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, malícia, perversidade e o delírio catártico, com impacto que só o cinema propicia.