sábado, 29 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (A Casa)



















A Casa

A Eslováquia dá sua contribuição valiosa nesta 35ª Mostra de Cinema de São Paulo com A Casa, primeiro longa-metragem para o cinema da diretora eslovaca Zuzana Liová, que antes realizou dois curtas e um filme para a TV. Inova e mostra todo seu vigor, demonstrando ter talento para continuar a realizar outras obras iguais e até melhores do que esta bela surpresa alegórica. Há que se ressaltar a bela fotografia buscada num cenário adequado para uma proposta tão vigorosa.

Tem na trama a construção pelo pai de duas casas para as suas filhas, uma maior e outra ainda menor de idade. Imrich é um homem tosco, extremamente disciplinador, de uma rudeza incivilizada, religioso de carteirinha, guarda para si seus sérios problemas de saúde, porém busca a perfeição no reino familiar. Apesar de tudo tem um bom coração e sua esposa é submissa, sempre na busca da pacificação para evitar maiores conflitos.

A filha mais velha Jana ao ficar grávida é expulsa do lar e sua casa em construção fica paralisada. Logo aparece com três filhos e a situação se complica por problemas financeiros com o marido, falta de pagamento do aluguel e os constantes conflitos familiares aparentemente insolúveis. A coisa não anda e vai de mal a pior. Com a filha menor Laura que toca piano na igreja, ajuda na construção de sua casinha, um sonho de infância que aos poucos vai se dissipando, pois agora pretende é ir mesmo para a Inglaterra fazer intercâmbio cultural. Está prestes a se formar na faculdade, envolve-se por acaso com seu professor, um amor proibido pelas circunstâncias civis do mestre. Diga-se de passagem, um enrolador e tanto.

O filme parece ser uma tempestade que desabou no seio de uma família pacata e acomodada numa cidadezinha interiorana, mas não é só isso, pois no bojo da proposta está a alegoria da abertura democrática da divisão com a República Tcheca. Há a visita a Praga de Laura com seu amor proibido, ao passar uma noite espetacular e perfeita, sobrando muita alegria na realização de um contagiante pré-sonho. Ou seja, viajar para qualquer lugar e libertar-se das amarras do pai protetor e sem perspectiva. É a premissa de uma antevisão de seu futuro desejado.

A figura patética do pai é a metáfora da redenção e da abertura de um país fechado hermeticamente, advindo da divisão em dois e a emancipação de ambos, tal qual Laura procura com ardor sua liberdade para viver plenamente sua juventude e suas aspirações profissionais. Se Jana é a filha rebelde que realizou parte de seus propósitos idealizados, mas no final demonstra aptidão para a reconstrução paterna que simboliza um país se reencontrando com seus filhos, simbolizados pela família e na continuação da obra da casa.

Uma magnífica película alegórica, onde uma casa serve como símbolo metafórico para um notável exercício instigante de conclusão e redenção de seus filhos, amparados por uma sequência de personagens que evoluem de uma base familiar para o topo, sendo construídos artesanalmente com a dignidade de um grande filme europeu.

Mostra de Cinema São Paulo (Dance Town)















Dance Town

Vem da Coreia do Sul este significativo drama social mesclado com política em Dance Town, com direção segura e precisa de Jeon Kyu-hwan. Já dirigiu Mozart Town ((2008) e Animal Town (2010), sendo que agora completou sua trilogia bem emblemática entre as relações dos povos, da política e da cultura entre as duas Coreias divididas, como ocorrera com as Alemanhas no passado.

Agora com o fechamento do ciclo, tendo no trunfo o mote em Jung-Nim, que se vê obrigada a fugir de seu país Coreia do Norte e exilar-se na Coreia do Sul, pelo fato pitoresco e banal de ter assistido uma fita pornográfica na sua casa com o marido. Tentam fugir, mas somente ela obteve sucesso e o esposo foi preso e sua situação se complica completamente, pois na Coreia do Norte é crime tentar fugir ou ajudar terceiros para outro país, especialmente para o Sul.

O diretor tem um olhar crítico também da Coreia do Sul, pois a refugiada é apenas um pano de fundo para abordar com eficiência os problemas que ocorrem no capitalismo, sendo frequentes os abortos clandestinos, alcoolismo entre jovens e idosos, a inconformidade com os baixos salários e os desníveis sociais. Kyu-hwan questiona com pertinência do por quê apenas uns vivem em melhores condições em detrimento de outros que dão duro e ralam para sobreviverem. Há a comprovada marginalização de muitas pessoas, levando ao crime de pequenos furtos, como na cena da bolsa de Jung-Nim jogada na sarjeta.

O diretor fixa-se especialmente nos bêbados inveterados que perturbam o trânsito, ou saem dos restaurantes e vão para os karaokês beberem até cair. O trabalho ingrato e cansativo na lavanderia destinado à fugitiva, que é vigiada por câmeras, sob a suspeita de ser uma espiã. Sai exausta da engrenagem de lavar, passar e secar. As atribulações da vida encontradas pela norte-coreana têm suas compensações positivas como a liberdade de expressão, o trabalho digno com contraprestação salarial e até a experiênca afetiva no envolvimento com um policial elegante e boa-pinta. Sem nunca esquecer é claro o marido que ficou para trás, pois lhe soa como um pesadelo diário com remorsos e arrependimentos.

Eis um bom longa-metragem que não invoca o conservadorismo e sequer é moralista, embora a culpa seja uma companhia permanente, mas a vida continua com suas tropelias e divisões entre irmãos da mesma raça, por decorrência dos governantes. O que vem acontecer são as consequências nefastas de um regime ditatorial fechado e hermético que pune seus filhos que ousam buscar a liberdade.

O mérito do cineasta é não fazer a ode do capitalismo instalado na Coreia do Sul com o apoio dos EUA, como bem demonstrado nas cenas do americano que por lá se alojou definitivamente. Fica flagrante que nem tudo é tão maravilhoso como se divulga, embora no Norte governado pelos comunistas inexiste igualdade e reivindicação, sendo a ditadura ferrenha e imperdoável para os supostos “traidores” que pretendem evadir-se. O filme se debruça com eficiência sobre o choque cultural que se estabelece com a chegada da norte-coreana desacostumada com uma vida tão versátil, tendo as mulheres total liberdade para enfrentarem os homens no mesmo grau de igualdade, com direitos e deveres assegurados pela democracia.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (As Canções)



















As Canções

O veterano Eduardo Coutinho está presente novamente com seu singular painel de relatos contados pela boca de personagens do povo. Geralmente são pessoas humildes que tiveram muitas dificuldades no passado para superarem seus obstáculos, sendo que destes há de tudo um pouco, da grande paixão arrebatadora e inesquecível até o ladrão do morro que viveu com traficantes e todo o tipo de marginais.

O mérito maior do Coutinho é saber selecionar da série de depoimentos aqueles mais consistentes e emocionantes sob o ponto de vista humano e com força de um pensamento positivo de esperança. Sem ser piegas ou ufanista, longe disso, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista. É um emérito perguntador, deixando as pessoas à vontade para falarem algo interessante ou até mesmo grandes besteiras.

Este seu último documentário tem muito de sua obra-prima Edifício Master (2002), onde sete dias uma equipe de cinema filmou o cotidiano dos moradores de um prédio condominial, situado em Copacabana, com 276 apartamentos conjugados, onde moravam cerca de 500 pessoas, foram entrevistados 37 moradores, com um resultado fabuloso de histórias íntimas e reveladoras. De sua filmografia de mais de dez filmes temos o memorável Jogo de Cena (2007), um achado que mescla realidade e ficção.

As Canções aborda com fidelidade as angústias e tristezas mescladas com os amores fundidos em felicidades e recordações amargas ou deliciosas de seus entrevistados. Se em Edifício Master não sai da memória o morador que ria e chorava ao cantar a música My Way, de Frank Sinatra, numa cena encantadora e humanística. Não dá para esquecer agora Queimado, um morador negro do morro, cabelo escovinha, que confessa roubos e depois se converte num apaixonado de Jesus, criando vários filhos com a mulher de sua vida; ou o comandante aposentado com seu pensamento conservador, mas muito engraçado como diz as frases; ou na personagem que guarda as cartas de seu grande amor; mas tem aquela senhora de cabelos brancos que daria sua última gota de sangue para salvar o marido que sempre amou e a fez feliz; e o rapaz de religião batista que se emociona ao falar da música da mãe que cantava na cozinha; tem a simpática negra de 82 anos, mas parece ter 60; e a deficiente que cantava a música “dó, ré, mi”, da manhã à noite com o marido, agora canta com o filho, numa verdadeira overdose diária.

Coutinho é hábil e extrai o substrato de cada entrevistado, fazendo-os cantarolar suas canções preferidas e inesquecíveis, predominando as canções de Roberto Carlos, outras foram compostas pelos protagonsitas. São homens machistas na maioria e mulheres submissas que se soltam numa cadeira preta em um palco de um teatro, tendo no fundo a cortina que se abre e fecha para os protagonistas.

Sobra muita emoção contida como se fosse uma sessão de terapia, onde o psicanalista é o diretor com seu jeito de paizão. Coutinho sabe ouvir os amores e as tristezas relatadas com detalhes. Tanto nas mortes lembradas como nas grandes paixões cultivadas e expressadas com dor, cada um deles tem sua canção preferida que é interpretada do fundo do coração, pois suas vidas foram marcadas por elas.

Um excelente documentário saboroso para ser lembrado e sorvido, com uma grande dose reflexiva para ser memorizada. Sobram problemas neste universo de vidas conflitadas e amargas, porém sem perder a luz da esperança que soa junto com as gostosas canções entoadas.

Mostra de Cinema São Paulo (Irmãs jamais)
















Irmãs Jamais

Marco Bellocchio arrasou em Vincere (2009), um filme que tinha todos os ingredientes das relações familiares, na controvertida vida de Benito Mussolini, dividido entre o poder, mulher e um filho que nasceu, foi reconhecido, e em seguida renegado. É uma página negra da história da Itália, ignorada na biografia oficial do Duce. Outro grande filme de Bellocchio foi Bom Dia Noite (2003), que narra a história do Primeiro Ministro da Itália Aldo Moro, em 1978, sequestrado e morto pelo grupo extremista Brigada Vermelha. Mas antes ainda filmou o notável Em Nome do Pai (1971), contando a história de um atentado a bomba do IRA que mata cinco pessoas num pub, em 1974, com os julgamentos equivocado dos acusados: um jovem rebelde, seu pai e três amigos.

Agora quando se esperava um filme ainda maior, surge esta produção bem menor e longe das qualidades do diretor que todos conhecem e se sabe de suas aptidões diferenciadas. Irmãs Jamais é uma obra vazia de conteúdo, no período de 1999 a 2008, com uma precária direção, ficou devendo em técnica de segurança, ritmo e profundidade, apesar de tentar equivocamente passar para os espectadores uma proposta de lembranças do passado para alicerçar um presente.

A trama tem duas tias velhinhas que perderam a irmã, mãe dos jovens que retornam à pequena cidade rural chamada Bobbio, que nunca teve uma celebridade ali nascida, segundo informa um protagonista. Um dos sobrinhos busca empréstimo bancário com aval das titias para se livrar dos credores que estão à sua procura; já sua irmã deixa a filha menor, sob os cuidados das anciãs e de seu irmão, para tentar a carreira de atriz de teatro. As tias anciãs aceitam qualquer coisa, menos chegar atrasadas para assistirem a ópera Il Trovatore, num dos raros momentos de lucidez e beleza da película. Antes houve o som de algumas notas musicais regionais da cidade natal da família. Mas os irmãos buscam estabilidade financeira e profissional em suas vidas e abafam as peculiaridades pitorescas de Bobbio, mal explorada e pouco convincente no que conseguiu mostrar.

Nem mesmo o acontecimento teoricamente inusitado do afogamento, nas filmagens realizadas pelo irmão; o surgimento de uma garota do passado com promessas de amor ou a tentativa de venda da propriedade das titias conseguem salvar a película da beira da chatice. Tudo muito vago numa indolência enorme, tornando-se gratuitas as cenas inseridas sem uma continuidade e uma melhor elaboração. Bellocchio deixa o filme andar como um barco sem timoneiro. Filmou mais à noite com uma fotografia discutível e de má qualidade, esteticamente depreciativa e tudo muito escuro e sem graça. Deveria ver como se faz ma filmagem à noite com o diretor Nuri Bilge Ceylan, do extraordinário Era Uma Vez na Anatólia (2010), um dos destaques desta Mostra de Cinema de São Paulo.

Este é um filme biográfico e feito para toda família Bellocchio se divertir e brincar de fazer cinema. Não é à toa que nos créditos só dá os parentes de todos os graus. Faltou lucidez e criatividade nas situações de relacionamento familiar soltas no roteiro, sem construção adequada dos personagens, com diálogos frouxos e inconsistentes, foram a tona deste equivocado longa que não consegue manter-se num ritmo de emoção harmonizado com os problemas inerentes de uma família. Ficou no meio do caminho entre documentário e drama intimista de nostalgia. O resultado foi nenhuma coisa e nem outra.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (Veneza)



Veneza

Um filme vindo da Polônia sempre é bom conferir de perto, pois os resultados quase sempre são satisfatórios e dificilmente frustram. Foi o que aconteceu com Veneza, um drama de guerra mesclado com fábula moderna adulta, num resultado simplesmente fabuloso. A direção foi do surpreendente Jan Jakumb Kolski. É dele também os outros dois longas-metragens Grajacy z Talerza (1995) e Pornografia (2003). O cineasta brilha neste magnífico Veneza, entrando para o clube dos cineastas críticos ferrenhos do morticínio da 2ª. Guerra Mundial, onde estiveram envolvidos regionalmente os países da Polônia, Itália, Alemanha e a Rússia. Evidentemente que o viés é polonês, mas as consequências para seu país que foi invadido foram as piores possíveis.

Recentemente veio o extraordinário Katyn (2007), filme polonês de Andrzej Wajda, numa antológica reflexão também sobre a 2ª. Guerra Mundial, em que são mostradas as atrocidades contra seu povo na invasão da Rússia em 1939, quando estava aliada ao governo nazista da Alemanha. Há o lamentável massacre dos polacos nas florestas daquela cidade. Morreram 15.000 prisioneiros de guerra poloneses, embora haja informações extraoficiais de 25.000. Essas atrocidades bárbaras foram comandadas pela polícia secreta soviética.

Veneza surpreende e encanta o espectador pelo seu roteiro em forma de guerra como fábula moderna como visto no longa Terra Sonâmbula (2009), dirigido pela brasileira, radicada em Moçambique, Teresa Prata. São abordados os caminhos de um simbólico ônibus ardendo em chamas numa estrada perdida, tendo na escavação pelas próprias mãos de um menino o milagre de brotar água por enxurradas, levando para o mar e purificando aquele país miserável de perdidos num mundo sem segurança. Finalizando com o ônibus boiando num rio imaginário até o navio que se encontra aquela mãe aprisionada nos diários da revolução civil. Kolski tem no garoto Marek de 11 anos seu sonhador, que só pensa em ir para Veneza e passar o carnaval dentro das gôndolas ouvindo piano e violino. Mas novamente a guerra entra na vida de uma criança e estraga as fantasias infantis com seu poder bélico ultrajante e arrebatador da desconstrução familiar, repleta de mortes absurdas e abjetas, sem o menor sentido da existência humana. O garoto acaba parando na casa antiga e obsoleta de uma tia no interior da Polônia, ao invés de ir para a mítica cidade italiana tão sonhada. Reencontra lá suas primas e o irmão que vai posteriormente, bem como outras tias e a avó sempre calada, num espécie de refúgio das artilharias dos inimigos invasores, mas que logo aparecerão para humilhar e mostrar seu poder de força dominante ocupacional.

Kolski faz lembrar voluntária ou involuntariamente o filme Terra Trêmula, quando dá vazão ao seu instinto criança e deixa o roteiro abrir uma fenda no porão da casa e inundá-la. Ali se estabelece a tão sonhada versão de Veneza para Marek. As tias realizam o sonho do sobrinho e tocam piano, usam máscaras no carnaval veneziano, há o violino do coleguinha vizinho, tragicamente desaparecido depois. As mortes se sucedem pela guerra sem escrúpulos, mas Marek quer mesmo é que a mãe lhe ame tanto quanto o irmão e seja mais presente, pois o pai foi lutar e dificilmente voltará.

Um libelo contra a guerra neste singular filme da Polônia em que o cineasta coloca sutilmente, ao som de um piano melancólico, a derradeira cena dos horrores repugnantes de uma carnificina. Eis um longa-metragem imperdível que irá para a cinematografia desta revelação como diretor antibelicista, que com toda sua classe e visão crítica de seu povo, realiza esta mini obra-prima cinematográfica. Insere-se como um dos melhores filmes da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

Mostra de Cinema São Paulo (Gromozeka)















Gromozeka

A Rússia está representada na 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo por uma de suas apostas com o insuficiente Gromozeka, com direção de Vladimir Kott, que tem na filmografia uma produção para a televisão The Silver Samurai (2006) e o longa Mukha (2008), além do curta The Door (2004). Kott erra feio nesta produção tida como promissora, ao abordar nesta trama interessante até certo ponto como em retratar os dramas sociais de três amigos integrantes de uma banda de rock, tocando músicas positivas e alvissareiras, dando esperança de vida para o amanhã, sob as belas imagens das frequentes nevascas.

Um tema instigante e sempre interessante como dos personagens entrelaçarem-se em alguns momentos do drama, por circunstâncias meramente pelo acaso profissional num artifício bem explorado e batido nos roteiros atuais dos bons filmes. Mas falta o ritmo e o clímax em quase todas as cenas, onde o artificialismo vai se encaixando até o final, numa quebra de ritmo sequencial terrível para quem esperava algo bem melhor. A trama é constituída de três senhores cinquentões, com diversos problemas profissionais e particulares, onde o estresse está sempre presente. Um policial vive seu dilema com seu filho adulto que não quer nada com trabalho fixo e muito menos trabalhar junto com o pai. Prefere fazer freelances em serviços escusos. Tem ainda o conflito com sua mulher que está apaixonada por outro homem e todo muito sabe.

O segundo personagem é um taxista que não suporta ver a filha única atuar como atriz pornô e vai até as últimas conseqüências, adotando uma solução escabrosa; já o último do trio é um médico com uma doença grave e insolúvel, mas além de tudo está dividido entre o amor da esposa oftalmologista com o da amante radiologista. Apesar de que o apoio do colo e do braço amigo virá de um travesti, que o acalenta no pior momento de sua vida, num raro momento de lucidez do filme.

Porém o diretor jogou fora um tema que já foi abordado pelo cinema com ótimos resultados, como Meus Caros Amigos (1975) e O Quinteto Irreverente (1983), ambos de Mario Monicelli, enfocando o passado e presente na vida dos amigos: um conde falido, um arquiteto, um dono de um restaurante, um cirurgião e o amigo morto, fora um editor de jornal. Outro notável filme sobre amizade foi Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), de Ettore Scola, numa homenagem a Fellini, o filme mostra 30 anos na história da Itália (1945-1975) e o reencontro de três grandes amigos, que não se viam desde o fim da Guerra.

O roteiro leva para um desenlace fatídico e desanda de vez do meio para o final da película, com uma proposta eminentemente conservadora. O diretor detona sua obra que tinha tudo para dar certo, diante de uma proposta boa como o tema do reencontro de amigos para tocarem numa banda. Totalmente mal aproveitada ao começar a punir os pseudosulpados, num evidente e claro falso moralismo barato e a preservação da família unida a qualquer preço, nem que para isso tenha que se infringir a legitimidade da escolha. Um final melancólico e frustrante para um filme que torna-se descartável.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (Era Uma Vez na Anatólia)
















Era Uma Vez na Anatólia

Um filme de 157 minutos pode assustar no primeiro momento, mas Era Uma Vez na Anatólia flui e anda como num média-metragem de uma hora no máximo. Vem da Turquia o premiado longa vencedor do Grande Prêmio do Júri de Cannes deste ano, com a direção brilhante do consagrado Nuri Bilge Ceylan. É dele também os premiados em Cannes Uzak (2002), Climas (2006) e o inesquecível Três Macacos (2008).

Ceylan arrasa nesta estupenda película, solidificando-se como um cineasta preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está presente e emperrando o desenvolvimento. O caos instala-se nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário ultrapassado e completamente inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas. O que mais surpreende e encanta o espectador é o roteiro enxuto desta mescla de filme policial noir com drama social. Não fica pedra sobre pedra, nesta trama que tem como partida uma aparente e singela investigação policial de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia. Nada funciona, a começar pelos carros corroídos pelo tempo e completamente ultrapassados, tendo inclusive que ser um deles empurrado pelos passageiros em serviço.

A enorme comitiva dos três veículos tem um médico legista (Muhammet Uzuner- em impecável atuação); o promotor que se acha parecido com Clark Gable, símbolo do estrelismo; um delegado estressado e com sérios problemas com a mulher que lhe cobra insistentemente para comprar os remédios do filho (Yilmaz Erdogan); um secretário para elaborar o relatório minucioso; dois escavadores munidos de pás implacáveis; um sargento preocupado com a exatidão das metragens e a jurisdição correta das aldeias; os motoristas; dois suspeitos do crime, sendo o principal acusado (Taner Birsel), numa bela construção de crápula arrependido.

O diretor conduz com uma técnica perfeita o filme, de um rigor formal invejável, com closes nos rostos para mostrar os sentimentos dos personagens envolvidos nesta desastrada empreitada. Corrompidos pelo pessimismo do futuro de seu país. Há os longos planos sequenciais das longínquas estradas monótonas e estreitas que somem e reaparecem instantaneamente. Um acerto estético elogiável e fabuloso para um desenrolar com poucas elipses. Elogiáveis as cenas deslumbrantes rodadas na madrugada, apenas iluminadas pelos faróis dos três carros e relâmpagos de tempestades que se avizinha, criando um sugestivo cenário de dificuldades, naquela fantástica paisagem de colinas, que lembra o filme Gosto de Cereja (1997), do iraniano Abbas Kiarostami. São reveladoras as subidas e descidas dos veículos pelas sinuosas estradas com os suspeitos à tiracolo.

São memoráveis as atrapalhadas investigativas de poucos recursos técnicos, que necessitam de uma ajuda fortuita do cão da vítima, para elucidar o local onde está enterrado o corpo tão procurado. O médico resiste até o final, mas as condições que lhe são apresentadas são deploráveis para desenvolver um trabalho digno. Sucumbe pelo desânimo, soçobrando seu profissionalismo sempre eficiente no epilogo.

Um extraordinário filme que se inscreve como um dos melhores da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, tanto pela denúncia da corrupção como da liberação de verbas desnecessárias para o amigo do promotor. É falência espetacular de toda conjuntura estrutural de um sistema podre e decadente, sem recursos financeiros para um hospital que está caindo aos pedaços. A morte da vitima é uma alegoria para a destruição de todos os setores e organismos das células de um a sociedade hipócrita.

Mostra de Cinema São Paulo (Hanezu)
















Hanezu

O longa-metragem Hanezu trata fundamentalmente dos primórdios da civilização japonesa, onde as escavações existentes estão à procura de uma amostragem fiel da história deste povo. Os três montes em disputa na região de Azuka como é relatado na película demonstram o conflito secular, ou como é informado, desde os tempos dos deuses há a batalha dos homens pelas mulheres, enfatizado várias vezes para ficar celebrizado. Uma arqueologia que busca significados e razões existenciais.

A metáfora do pássaro engaiolado sem procriar, enquanto os livres estão reproduzindo e felizes, diante do quadro de dor da jovem que recém abortou, presa aos seus dogmas de vida. O aborto é o símbolo da rejeição à criança que não é bem-vinda. O conflito com o namorado e pai do feto é interessante, pois ao mesmo tempo soa em seus ouvidos a disputa dos homens e suas propostas diferentes, tal qual está vivenciando, pois está conflitada no momento de escolha, dúvida e dor.

Mas a película tem grandes momentos marcantes, como a presença constante dos espíritos em diversas cenas, simbolizadas pelo soldado que morre ao ir para a guerra e faz contato direto com belos diálogos elucidativos com seu filho na floresta e o neto na estrada. As presenças são normais e não constrange. Tudo é muito natural e não há histeria ou medo, pois são recepcionados com amor e prazer. É dedicado explicitamente nas legendas aos espíritos que pululam os montes das escavações, símbolo da austeridade e das disputas ancestrais. Os sussuros se fazem presentes nos insetos e inundam os nossos controles auditivos de percepção.

O longa traz no seu bojo um enorme e magnífico sentimento de gratidão aos mortos do passado e encanta pelo seu grau elevado do sensorial aguçado. Uma proposta corajosa de mostrar o transcendental e o espiritual como naturalidade. Lembra o recente filme Tio Boonmie, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), de Apichatpong Weerasethakul, que se atrapalhou nos equívocos de roteiro, embora tenha o bizarro longa da Tailândia vencido o Festival de Cannes daquele ano.

Mas em Hanezu o sensorial está presente de forma harmônica, singela e bela num perfeito casamento com a espiritualidade que transcende os padrões dogmáticos de comportamentos regrados pelo conservadorismo exacerbado. Há vida e sentimento de amor e prazer nas frondosas árvores das florestas, nas águas dos córregos e rios, na terra em sua imensidão, no acasalamento dos pássaros e o nascimento dos filhotes. Contrario sensu do reino animal, há a morte induzida de uma vida humana que ficou no meio do caminho.

A diretora Naomi Kawase tem em sua filmografia os longas-metragens Shara (2000), Birth/Mother (2006) e A Floresta dos Lamentos (2007). É muito cuidadosa e artesanal na condução da trama, embora com uma leveza documental, faz o espectador mergulhar e ficar inebriado pelas sensações saborosas tiradas da natureza. Não hesita em misturar aborto com nascimento, rejeição com amor entre seres de espécies diferentes.

Vida e morte estão presentes como essência dos animais racionais e irracionais. A natureza está em tudo, nos melhores e piores momentos da humanidade e em todos do reino animal. Ou dando significado aos mortais numa contingência natural das coisas, ou elementos do mesmo universo, como atores da vida e sua existência do mundo. Um choque do presente e do passado. Eis um saboroso filme para ser degustado e sorvido, com uma boa dose reflexiva após o apagar das luzes da tela.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (O Garoto da Bicicleta)

















O Garoto da Bicicleta

Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, mais conhecidos como os irmãos Dardenne, tratam o novo filme com mais delicadeza e menos rudeza, embora sem perderem o foco e o cerne da questão. Os personagens geralmente parecem moribundos numa Bélgica que se esqueceu das classes menos abastadas. Filhos e pais estão em confronto de relacionamento permanente, decorrente das mazelas de uma sociedade que virou as costas para uma classe menos protegida, que busca nas drogas suas realizações pessoais e profissionais. Como também os pequenos furtos para sobreviverem são marcas registradas da dupla belga em seus filmes de excluídos que vagam pelas ruas.

O rigor profundo de uma estética que aborda com virilidade e violência são novamente reafirmações dos longas anteriores, tais como: Rosetta (1999) grande vencedor de Cannes daquele ano, O Filho (2002), A Criança (2005) também vencedor do Palma de Ouro e O Silêncio de Lorna (2008), para muitos o melhor de sua notável filmografia, na extraordinária abordagem de drogadição e gravidez psicológica. O Garoto da Bicicleta tem por tema um menino de 12 anos, que busca desesperadamente encontrar seu pai que o abandonou há um mês num orfanato. Cyril (Thomas Doret) não é nada dócil, tem um comportamento com sérios desvios de conduta, torna-se agressivo ao ser rejeitado definitivamente pelo pai ausente, que só quer se livrar dele e reconstruir com outra mulher uma nova família.

Cyril encarna o protótipo do estorvo e da incomodação ambulante, mas tem sorte e é adotado temporariamente pela cabeleireira Samantha (Cécile de France- de muito boa atuação, harmonizada com sua beleza encantadora. Estrelou em Irène (2002) e Além da Vida (2009). Nem mesmo o amor da adotante para acalmar a raiva do garoto é suficiente e sua vida vira de pernas para o ar, perdendo até o namorado. É o filme mais leve dos Irmãos Dardenne, onde a esperança está presente num roteiro que não afasta o otimismo de um futuro que poderá ser melhor. Mas para se chegar até lá, há uma relação tumultuada e conturbada de dois seres que estão numa busca incessante da felicidade. Não faltam momentos altos, seguidos de deslizes frequentes e perturbadores da serenidade.

O abandono paternal é a grande causa proposta na película, deixando como consequência a cooptação na rua pelos marginais e traficantes que rondam uma presa fácil de ser fisgada. A raiva e a insubordinação aliadas à falta de pulso e limites da mãe adotiva são questionadas e colocadas em xeque para serem debatidas amplamente. O longa não é um filme tão formal como os anteriores, mas ainda assim abocanhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes deste ano. Mesmo que chamado de alegrinho e mais livre, não foge da temática e sua reflexão é profunda, deixando o rigorismo desta vez de fora, mais comedido e relativamente clássico, porém sem se afastar de seu histórico coerente, consegue mesclar novos elementos como o perdão e a compaixão.

Longe de filigranas e emoção superficial, deixa o espectador à vontade para pensar e refletir, tirando conclusões esperançosas neste bom longa minimalista de aparente simplicidade e leveza, mas nada fácil se for observado o tema do abandono e a dor do relacionamento entre pais e filhos. Um estudo elegante numa construção de personagens com suas feridas abertas de um emocional rompido da desintegração familiar e como metáfora da sociedade. Mas a esperança é plantada e cultivada.

Mostra de Cinema São Paulo (Late Bloomers- O Amor Não Tem Fim)



















Late Bloomers- O Amor Não Tem Fim

Julie Gavras erra feio a mão com esta comédia de costumes, ao abordar um tema instigante e sempre interessante como a transição para a terceira idade de um casal cinquentão, logo após perceberem que estão sozinhos, pois seus três filhos já construíram seus futuros. A leveza que tentou passar à plateia foi um verdadeiro tiro pela culatra, considerando-se o resultado inócuo no melhor estilo dos filmes românticos de final feliz de Hollywood.

Jogou fora um tema que já foi abordado pelo cinema com excelentes resultados, como Ninho Vazio (2008), de Daniel Burman, sobre os filhos que sem de casa para o mundo, terão que descobrir como se acomodar à nova configuração de sua vida e salvar o casamento, e ainda o ótimo Dois Irmãos (2010), do mesmo diretor, numa abordagem provocadora e notável da terceira idade rejeitada. Também marcou com elegância o mesmo tema o filme brasileiro Chega de Saudades (2008), de Laís Bodansky, ao mostrar um baile em um clube de dança, com diversos personagens rondando o local.

No filme mais marcante de sua carreira, A Culpa é do Fidel (2006), Gavras obtém um resultado espantosamente memorável para uma diretora estreante à época. Agora perdeu-se por completo, embora com um elenco de primeira linha, tendo Adam (William Hurt) casado há mais de trinta anos com Mary (Isabela Rossellini), estão prestes a se separarem diante de uma rotina chata e dominada por irritações de parte a parte, sem tolerância de nenhum deles para bobagens que sempre aturaram, mas que agora resolveram colocar um ponto final. Evidentemente que os filhos se reúnem e não aceitam a separação, buscando de todas as formas uma maneira de evitar a desunião. Mary está sempre voltada aos idosos e busca prazer de vida na comunidade dos mais velhos, com projetos e soluções para o futuro, tentando adequar-se à sua idade, acaba por bater de frente com o marido, um bem-sucedido arquiteto muito próximo dos colegas mais jovens. Tem sede de juventude e não aceita pensar ou viver numa realidade que está chegando.

Não falta traição de ambos os protagonistas, com a clássica culpa posterior e o arrependimento dos infratores da moral e dos bons costumes. Os filhos montam uma artilharia para contornar a situação no velório da vovó materna, uma velhinha astuta com tiradas sarcásticas no melhor estilo da filosofia existencialista. A se lamentar seu desperdício no enredo e a ênfase gratuita do aproveitar a vida até seus últimos dias em todos os seus momentos, com clichês já batidos à exaustão como da “brilhante lição de vida”.

O filme não escapa do moralismo barato e a preservação da família unida e feliz para sempre. Embora houvesse ambição no projeto inicial, restou como resultado uma imensa babaquice vazia desta obra descartável de Gavras, pois prometia bem mais do que as conclusões precipitadas e decepcionantes pelo moralismo exacerbado e fora de propósito ilustradas no epílogo, com toques e requintes autobiográficos. Um final horroroso e frustrante, diante da expectativa aguardada desta promissora diretora que desandou de vez.

Debate em São Paulo

Após a exibição do filme, a diretora Julie Gavras participou de um bate-papo com o público. Durante a conversa, ela afirmou que o filme é autobiográfico, em razão de seus pais serem idosos. Falou da harmonia dos instrumentos de música utilizados na gravação e a relação deles com a leveza proposta do filme. Gavras foi lacônica nas respostas, parecendo um pouco irritada com as perguntas. Ou seria somente timidez?

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Mostra de Cinema São Paulo (O Desaparecimento do Gato)



















O Desaparecimento do Gato

Vem da Argentina um filme com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da reflexão magistral de Carlos Sorin que inova e sai dos dramas intimistas de seus últimos filmes para o suspense psicológico, com este magnífico longa-metragem sobre a loucura humana. Anteriormente já havia dado mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas obras Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008). Sempre comprometido com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida, muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares, ou pela crise econômica que assolou o país vizinho e ainda não se afastou totalmente.

Agora há o gato que foge de casa, logo após seu dono retornar de uma clínica de tratamento psiquiátrico, como o mote e ao mesmo tempo dá o norte da direção ao espectador para descobrir o grande enigma proposto, o que acontecerá somente na última cena. A loucura de Luís (Luis Luque- convincente no seu papel) está curada ou não? Os médicos psiquiátricos acertaram em mandá-lo de volta para seu lar com o aval da justiça? Ou houve precipitação médica e do judiciário decadente e burocrático? São questões propostas pelo diretor que são feitas através da esposa Beatriz (Beatriz Spelzini- de impecável atuação) e desenvolvidas até o epílogo, com grandes sacadas do enxuto e maravilhoso roteiro, tais como a percepção de Luís ao aproximar-se um temporal na cidade. Ou ainda a sugestiva perda de lucidez de Beatriz, com sua ida até a casa da filha pela madrugada em estado de choque, numa aparente demência humana.

O casal programa uma viagem ao Rio de Janeiro, na paradisíaca praia de Parati, como mola propulsora da suposta cura do paciente, visando celebrar e retornar ao estado de normalidade. Ou seria uma vinda para o paraíso da impunidade? Mas as surpresas maiores estão por vir e o suspense se instala na plateia. É tudo uma farsa ou é uma realidade que se tornará bonita?

Sorin conduz com maestria sem deixar pistas verdadeiras, pois as que afloram são descartadas por serem falsas. Mas há o gato preto Donatello, um bichano intuitivo de estimação da família, que teima em permanecer sumido com a chave do segredo desta perturbadora película da Argentina. O filme tem uma excelente estrutura dos personagens centrais, com uma elaboração criativa de cada um deles que é simplesmente notável. Não esquece da filha desligada que vive egoisticamente somente para seu novo namorado, um equatoriano que canta músicas regionais; bem como o filho ausente do casal que vive no exterior e manda um vídeo da família para felicitar o pai, quando este retorna para casa.

O cineasta arrasa com este que talvez seja seu melhor e mais maduro longa-metragem. Um filme superior pela sua proposta aparentemente singela, como em todos os outros de sua inquestionável filmografia, mas que com o desenrolar da trama cresce e prende a respiração, tirando o fôlego. Mas solta homeopaticamente com toda sutileza e elegância dos grandes diretores com talento maior e acima da média. O Desaparecimento do Gato é uma película singular, que não tem grandes imagens pirotécnicas, mantendo um conteúdo poderoso com as complexidades se encontrando em forma de barbárie metafórica embutidas no duelo da lucidez com a loucura, indo até as últimas consequências, como na reveladora cena final. Um fabuloso filme de reflexão sobre o ser humano que se insere como um dos melhores da 35ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

Mostra de Cinema São Paulo (A Ilusão Cômica)



A Ilusão Cômica

A Ilusão Cômica é o quinto filme de Mathieu Amalric, sendo uma adaptação moderna para o cinema da peça teatral do dramaturgo francês Pierre Corneille (1606-1684). Amalric dirigiu antes os filmes Mange Ta Soupe (1997), Le Stade de Wimbledon (2001), A Coisa Pública (2003) e o festejado Turnê (2010). Neste seu último longa-metragem, está o grande desafio do cineasta em trazer para a telona a história de um pai que contrata um mágico para procurar seu filho sumido há dez anos. Manteve os diálogos de Corneille, com suas rimas rebuscadas do barroco, transpondo para os nossos dias a peça clássica, num cenário bonito com ambientação no Hotel du Luvre.

Desta vez Amalric não consegue se sustentar como nos filmes anteriores passados no Brasil, onde marcou pelo bom A Coisa Pública e o elogiado Turnê. Perde força sua transposição e mescla teatral para o cinema, enrolando-se nas duas linguagens opostas e perigosas, quando tenta conciliar e filmar um clássico do século XVII. A força narrativa se esvai e se dilui num enredo confuso e dúbio, numa montagem quase que grotesca em seu todo, mas apressada demais para um texto tão expressivo e significativo do teatro. Os personagens parecem estar vagando no túnel do tempo dentro de uma caverna, com improvisações frágeis e sem nenhuma consistência dramática convincente.

Há personagens controversos e lutando com esmero para se livrarem dos fantasmas da traição e da perseguição obsessiva paternal, como o filho perdido e encontrado, beirando ao ridículo dos filmes da saga do seriado de Harry Potter. Não é um filme bom, muito pelo contrário, é muito irregular, pois peca tanto na emoção fria como na estrutura dos personagens fragilizados por uma desconstituição e descontinuidade de cenas absolutamente perdidas e sem complexidade num roteiro tosco e sem envolvimento harmônico com a trama.

Mesmo que o longa tivesse a intenção de obter bons resultados, surgiram sérios defeitos narrativos e confusos de duas linguagens distintas: o cinema e o teatro clássico. Sem falar que há induzimento para a previsibilidade no epílogo, embora seus propósitos iniciais vislumbrem uma iniciativa de adaptação respeitável, a inspiração esteve bem aquém do aguardado, deixando margem de desconfiança, em especial pelo atribulado roteiro de uma adaptação muito aquém do esperado.

Embora houvesse ambição no projeto inicial, restou como resultado um imenso vazio desta obra puramente descartável de Amalric, pois prometia bem mais do que as conclusões precipitadas e decepcionantes que ficaram marcadas no epílogo, exceto as belas imagens da Cidade Luz que oferece a boemia, o charme e a beleza, sempre acolhedora culturalmente como escreveu Hemingway em seu livro Paris É Uma Festa (1951). Sobra um jogo emaranhado de palavras inócuas e abstratas, num final melancólico e triste, tanto para o pai que retorna ao lugar de partida, como para o espectador frustrado por este mau filme, fruto de um erro enorme de planejamento.

Mostra de Cinema São Paulo (Belleville Tóquio)



Belleville Tóquio

Vem da França o drama Belleville Tóquio, tendo na direção Elise Girard com seu primeiro longa-metragem, mostrando um triângulo amoroso com direito a idas e vindas de Julien (Jérémi Elkaim), deixando na estação de Paris para Veneza sua mulher grávida Marie (Valérie Donzelli), ficando claro que iria se encontrar com outra mulher, mas a esposa não se propõe a fazer o papel de abandonada e vítima frustrada do casamento. Vai à luta e busca seu espaço como pessoa e profissional.

A diretora sabe aproveitar bem o cenário das belas ruas de Paris, utilizando nas fotografias um cinza claro com tons cinza-escuro na tonalidade esverdeada, tendo uma linda trilha sonora cantada pelo casal em uma das músicas, numa homenagem ao célebre compositor Enio Morricone. O filme busca discutir a gravidez indesejada e não programada pelo casal, mas não é só isso, pois no desenrolar da trama as frustrações do amor e as dificuldades na vida a dois vão aflorando, com as andanças de Marie em seu périplo de reflexão sobre a traição escancarada. Busca desesperadamente a reconciliação e o perdão expresso, tentando de qualquer forma a reconstrução do amor.

Julien deixa transparecer toda sua indignação e insatisfação pessoal com a proximidade do nascimento do filho, indo do paradoxal amor e paixão até transgredir para o ódio tresloucado e o rancor desvairado com as complexidades dos sentimentos, na clara e manifesta menção à sua própria vida particular, também em forma de nova homenagem explícita da cineasta com o longa O Inocente (1876), de LucchinoVisconti, na invejável interpretação de Giancarlo Giannini. Ainda há referências ao diretor Robert Aldrich, nas cenas em que Marie tem o apoio e o conforto moral no local de trabalho de seus superiores, que gerenciam um cinema de filmes cult e clássicos americanos.

A obstinação e a luta ferrenha para não deixar a peteca cair são bem explorados pela diretora, embora o filme perca em alguns momentos seu clímax e não haja um equilíbrio formal das cenas protagonizadas pelo casal em litígio. Ainda assim se sustenta e tem um resultado bem aceitável, sem ser uma obra maior, mas promissora, considerando-se como estreia de uma cineasta em busca de seu espaço.

Eis um bom drama pela estética e com razoável força de construção de personagens e imagens beirando a reveladoras. Tem no seu bojo e na essência uma reflexão do casamento e suas dificuldades, assim como debate a vinda do primeiro filho, quando não amplamente planejado, sem ter a pretensão de chegar a algum resultado definitivo, embora crucial, deixa margem para se discutir e se pensar, dando luz para um olhar panorâmico e questionador.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Riscado















Tormentos da Atriz

O diretor carioca Gustavo Pizzi dirige seu segundo longa-metragem Riscado, mostrando sua versatilidade e competência com este belo drama. Lançou-se ao cinema com o documentário Pretérito Perfeito (2006). Riscado abocanhou os prêmios de melhor atriz para Karine Teles, melhor direção, melhor roteiro, trilha sonora e prêmio da crítica no 39º. Festival de Gramado deste ano e ainda o de melhor atriz no Festival do Rio de Janeiro.

A trama é centrada na figura da aspirante a atriz Bianca Ventura, numa interpretação soberba de Karine Teles, que mesmo não sendo bela, esbanja carisma, talento e é extremamente cativante. É casada com o diretor Gustavo Pizzi. Por vezes chega a lembrar fisicamente a atriz gaúcha global Bárbara Paz. Impossível não elogiar a brilhante trilha sonora em harmonia e ajustada com o desenrolar do filme, em compasso de adequação invejável. Toda sua trajetória de freelance em festas de aniversário e na comovente cena da aposentadoria de um velho servidor de uma empresa pública com o ritual melancólico da despedida e os abraços fraternos dos colegas como prêmio de consolação; como também merece destaque a cena da coreografia das bananas, onde a dor dilacera por não falar francês em seu próprio filme, embora estivesse escalada como intérprete dela mesma como protagonista, o baque caracteriza-se pela perda solene no papel principal e a submissão à uma secundária atuação.

O filme embora seja um drama tem um tom documental que confunde o espectador menos desavisado, tornando seu roteiro sedutor. Pela maneira como aborda as questões íntimas das perdas e esperanças renovadas de sucesso dos personagens, lembra os filmes de Eduardo Coutinho Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2006). Há também uma forte inspiração na obra-prima Cabaret (1972) de Bob Fosse, com Liza Minnelli, tanto pelo sofrimento da busca do apogeu, como pelo entrecruzamento das histórias distintas, sem ser paradoxal. Um filme dentro de outro filme vem acontecer do meio para o fim, crescendo o drama e o clímax do enredo, ficando claro as terríveis dificuldades e impasses para a construção de uma atriz de rua numa profissional que busca seu espaço, enfrentando todos os percalços e complexidades de agentes e diretores inerentes à profissão e os medos interiores do ser humano colocados em xeque. A fama é muitas vezes repentina e os louros da glória nem sempre têm o glamour que é passado para os fãs.

A atriz ao fazer o teste e ser aprovada para uma grande produção internacional não resolve sua situação de busca pelo estrelato, porém tudo começa a encrencar-se, talvez pelo despreparo ou pela ingenuidade de sua vida acanhada em apresentações pequenas de festinhas cantando “parabéns a você”. São incluídas produções de vídeos caseiros para ajudar na ascensão da candidata. Bianca se veste e imita grandes divas do cinema como Carmem Miranda, Marylin Monroe e contracena com Bettie Page para animar seus clientes passageiros, além de rápidas incursões pelo teatro, mas tudo é muito difícil e complicado na carreira para chegar ao estrelato. Pizzi aborda e afasta o fator sorte na vida das pessoas. Debruça-se com elegância no esforço e nos atributos artísticos e recursos de um profissional. Não falar português numa produção francesa não é ter menos sorte, mas carência de um profissional no mundo globalizado. Não há cobrança e nem pieguice, mas o diretor desenvolve o tema com muita sensibilidade e realismo para chegar à dolorida conclusão como se fosse um misto de advertência com compaixão pela personagem entristecida. Fala dos holofotes, do universo artístico, da fama e do sucesso truncado por adversidades.

Riscado é um filme maduro que retrata e reflete o comportamento dos artistas em geral que buscam seu espaço, enfrentando as contrariedades e dificuldades da carreira almejada pelo ser humano em geral. Há as virtudes inerentes de um bom cinema nesta obra, como a reflexão dos aflitos obstinados por um imaginário e glamouroso estrelato, enfrentando os medos e angústias nas buscas pessoais de seus desejos de realizações profissionais, assim como todo o indivíduo que irresigna-se com os revés, chora pela aflição e luta com galhardia pela dignidade.